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Rio de Janeiro: Colapso das políticas públicas sociais

O texto analisa o colapso das políticas públicas sociais no Rio de Janeiro. A segurança pública é o remédio para as mazelas sociais?

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Atualizado às 13:15

Introdução

Os últimos dias no Brasil têm sido marcados por intensos debates em torno da Operação Contenção, deflagrada no Rio de Janeiro contra o crime organizado. No calor das discussões, proliferam os chamados "especialistas" em segurança pública, que oferecem diagnósticos simplistas e soluções mágicas para um problema histórico e estrutural.

Enquanto os holofotes midiáticos transformam tragédias sociais em espetáculo de audiência, políticos de ideologias antagônicas se reúnem em palcos de vaidade, disputando protagonismo sobre o caos.

A hipocrisia institucional alcança o absurdo: partidos políticos promovem cursos com "professores" que jamais pisaram no chão de fábrica da segurança pública - vivem enclausurados em gabinetes climatizados, alheios à realidade das favelas e dos becos, onde o Estado só chega quando já perdeu.

Esses falsos peritos comparam modelos de operações policiais entre Rio e São Paulo, sem perceber que enfrentam inimigos distintos. No Rio, predomina uma facção agressiva e expansionista; em São Paulo, uma organização de perfil mafioso, hierarquizada e empresarial. São estruturas criminosas de naturezas diferentes, que exigem estratégias específicas, planejamento técnico e ação coordenada, não fórmulas de retórica vazia.

Deve-se compreender, antes de tudo, que a segurança pública é o último degrau da falência estatal. É o sintoma de que o Estado fracassou em suas funções primordiais: educação, saúde e dignidade social. Somente se fala em polícia quando o professor foi silenciado, o médico foi corrompido e o trabalhador foi esquecido.

A primeira presença estatal nas comunidades dominadas pelo crime deveria ser a presença do livro e do bisturi, não a do fuzil.

Quando o Estado recorre à teoria da TPB - tiros, porradas e balas, é porque já renunciou ao humanismo petrarquiano, à visão do homem como centro da justiça e da civilização.

Análise fático-contextual

O Estado do Rio de Janeiro tornou-se o espelho trincado da República: uma síntese cruel da ausência de políticas públicas e do domínio territorial das facções criminosas.

De acordo com dados recentes do Ministério da Justiça e de estudos acadêmicos de segurança pública, as milícias e facções controlam mais de 40% do território fluminense, impondo suas próprias leis, tributos e julgamentos.

Essa realidade não nasceu de um dia para o outro. É fruto da desorganização institucional, da corrupção sistêmica e da promiscuidade entre poder político e poder criminoso - um fenômeno que se repete em várias capitais, mas que, no Rio, alcançou a forma de um câncer social em metástase.

A falência das políticas públicas de prevenção, aliada ao esvaziamento das escolas e postos de saúde, abriu espaço para o poder paralelo. O jovem sem horizonte encontra no tráfico o salário e o pertencimento que o Estado lhe negou.

Assim, a guerra nas favelas é o retrato final de uma omissão coletiva, e não o início de uma batalha justa. É impossível exigir paz de quem nunca conheceu justiça.

O enfrentamento ao crime organizado deve seguir o que preceitua a lei 12.850/13 e os tratados internacionais como a Convenção de Palermo (2000), que definem o crime organizado como estrutura permanente, hierarquizada e com divisão de tarefas, exigindo atuação interinstitucional, investigativa e estratégica, jamais improvisada ou ideológica.

Sem a reconstrução da autoridade moral do Estado e sem a integração das polícias, do Ministério Público e do Judiciário sob um eixo ético, a guerra será eterna e a paz, uma miragem.

Reflexões finais

Há uma multidão de oportunistas travestidos de "especialistas", vendendo fórmulas prontas e ilusões douradas sobre segurança pública, como se a dor de um povo pudesse ser tratada em PowerPoint. São professores de vento, mercadores de esperança, que jamais sentiram o peso da poeira nas botas de quem enfrenta o crime em seu terreno mais árido.

Vivem enclausurados em gabinetes climatizados, longe dos becos, das vielas onde o Estado só chega quando já foi derrotado - quando a bandeira da legalidade se ajoelha diante da tirania das facções. Não há segurança pública possível em um Estado que terceiriza a própria alma. Mais do que criar leis simbólicas e punitivistas - verdadeiros espasmos legislativos de um sistema cansado - é preciso cumprir as leis já existentes, com fidelidade social, ética e institucional. O Rio de Janeiro, esse sagrado e trágico retrato da nação, é o espelho da alma brasileira: belo e enfermo, sublime e ferido. Transformou-se no câncer social em metástase, onde a corrupção, a desigualdade e a omissão estatal corroem o tecido humano da Pátria como ácido sobre a honra. Não há como curar o corpo da Nação sem tratar a mente do Estado.

O primeiro passo para o restabelecimento da paz - no Rio de Janeiro ou em qualquer território em convulsão - é cumprir integralmente o art. 6º da CF/88, que consagra os direitos sociais: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

Mais do que criar novas leis simbólicas e punitivistas, é preciso fazer valer as leis já existentes, com fidelidade social e institucional.

As soluções não virão de cursinhos promovidos por partidos, tampouco de slogans de ocasião, mas do compromisso real com os objetivos fundamentais da República, descritos no art. 3º da CF: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos sem preconceitos ou discriminação.

O Rio de Janeiro é o espelho da alma nacional. É o câncer social em metástase, onde a corrupção, a desigualdade e a omissão estatal corroem o tecido humano da pátria. Não há como curar o corpo da nação sem tratar a mente do Estado.

É urgente encerrar a ideologização das políticas de segurança e resgatar a essência humanista e republicana da lei.

Pois o verdadeiro antídoto contra o crime não é o chumbo - é o cumprimento da Constituição, o brilho da educação e a justiça social em movimento.

Segurança pública não é receita de bolo de chocolate, nem alquimia de gabinete. É ciência social e missão constitucional, tecida nas entranhas da própria dignidade humana. Nos momentos de crise, quando o tecido da sociedade se rasga e a esperança parece sangrar, surgem os falsos profetas da ordem, empunhando decretos e clamando pelo endurecimento das leis - como se o frio papel de um código fosse capaz de estancar a febre das ruas.

Esquecem-se de que nenhuma sociedade se regenera apenas com o aço da repressão, pois a lei, sem justiça social, é apenas um eco de poder. A verdadeira cura da insegurança não nasce da pólvora, mas do quadro negro da escola e do silêncio sereno de um hospital que acolhe. Nasce do olhar solidário do Estado sobre seus filhos abandonados, da redução das desigualdades, do resgate da cidadania, do cumprimento do art. 6º da CF/88, que consagra a educação, a saúde, o trabalho, a moradia e a segurança como direitos fundamentais, não privilégios de castas.

É preciso menos ideologias e mais humanismo, menos discursos inflamados e mais políticas afirmativas que libertem, e não aprisionem, o povo nas grades invisíveis da exclusão. A segurança pública, em seu sentido maior, é o poema da civilização em defesa da vida - e só floresce quando o Estado abandona a hipocrisia e se ajoelha diante da verdade: que nenhum povo será pacífico enquanto for ferido pela fome, pela ignorância e pelo abandono.

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BOTELHO, Jeferson. Direito Penal, Justiça e Sociedade: Ensaios de Resistência Jurídica. Belo Horizonte: Justiça & Saber, 2024.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940).

BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013 - Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal.

BRASIL. Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018 - Institui o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), 2000.

Jeferson Botelho

VIP Jeferson Botelho

Delegado Geral aposentado da PCMG; prof. de Direito Penal e Processo Penal; autor de obras jurídicas; advogado em Minas Gerais. Jurista. Mestre em Ciência das Religiões - Faculdade Unida Vitória/ES;

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