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Modernidade ou retrocesso? Conflito entre simbolismo e realidade na PEC 38/25

A reforma administrativa simboliza modernidade e eficiência, mas, na verdade, representa retrocesso: enfraquece o pacto federativo, a advocacia pública e o Estado Democrático de Direito.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Atualizado às 13:34

Os símbolos carregam grande carga de significado e, muitas vezes, passam despercebidos. Não há como desconsiderar a importância de algo que traduz o significado de um sentimento, de uma aparência ou de um fato histórico. O comportamento simbólico expressa a intenção do emissor de transmitir ao receptor uma informação que não é comunicada de forma direta. Os aplausos dos espectadores ao final de uma peça, por exemplo, tem como símbolo a manifestação de que o que foi apresentado agradou aos atores e aos demais espectadores.

Embora seja um exemplo do mundo privado, não se pode excluir esse raciocínio da esfera pública, especialmente da política. O propósito desse simbolismo é revelar intenções e ações com o fim de influenciar a decisão dos eleitores, bem como demonstrar alinhamento com setores defendidos por determinada ideologia política. Um efeito que pode ser intencional ou não é a eternização do nome na história por meio do símbolo. É inesquecível a imagem do deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, erguendo a então nova Constituição, que simbolizava o retorno da democracia brasileira.

Contudo, nem todos os marcos relacionados aos símbolos políticos são positivos. Recentemente, há grande interesse da classe política em deixar uma marca, sendo comumente citada a ideia de austeridade ou modernidade. A EC 38/25, esse possível símbolo, ignora por completo o programa constitucional brasileiro inaugurado em 1988. A denominada reforma administrativa, foi escolhida para ser esse legado. A mensagem que se pretende transmitir com essa proposta legislativa não é a que está expressa em seu conteúdo, mas o que ela denota de forma indireta.

A intenção formal da proposta da emenda constitucional é modernizar o serviço público, com o incremento de qualidade. Esse é um mantra repetido à exaustão no mundo político, servindo como fundamento para todo tipo de alegação. Apesar disso, há diversas previsões que destoam materialmente do objetivo declarado, destacando-se duas: o pacto federativo e a advocacia pública.

O pacto federativo brasileiro formou-se a partir da oposição das oligarquias ao poder centralizador da colônia. O resultado foi a proclamação da República e, posteriormente, a promulgação da Constituição de 1891, primeira a prever a federação, cujo objetivo era a manutenção das elites regionais, e não o efetivo compartilhamento de poder entre os entes federativos. Nesse contexto, instaurou-se um pacto federativo marcado pela forte autonomia das oligarquias regionais, sobretudo as do Sudeste, que controlavam o poder federal por meio da chamada política dos governadores. Essa fase inicial do federalismo brasileiro perdurou até o fim da ditadura militar, em 1985, e caracterizou-se mais pela continuidade de modelo e estrutura federativa em caráter hierárquico, com a União no topo da pirâmide, detendo o comando da política econômica e dos recursos financeiros.

A CF/88 representou uma tentativa de mudança estrutural no federalismo brasileiro ao estabelecer a cooperação como fio condutor das relações entre os entes federativos, ao reafirmar a autonomia dos estados e ao prever a autonomia dos municípios. Ao descentralizar serviços essenciais, como saúde e educação, buscou-se reduzir a concentração de poder na esfera federal, implantando um novo equilíbrio federativo destinado a superar o modelo centralizador da ditadura militar.

Esses instrumentos constitucionais, contudo, não lograram êxito integral em equilibrar a federação brasileira. Ainda assim, não se pode negar que o objetivo do constituinte foi descentralizar o poder da União - propósito que, mesmo não plenamente concretizado, deve sempre ser perseguido pelo constituinte derivado.

A reforma administrativa propõe o contrário, ao concentrar maiores poderes na União. Prevê, por exemplo, que a União detenha competência privativa para planejar a Estratégia Nacional de Governo Digital e a Política Nacional de Dados para o setor público em todos os entes federativos, além de legislar sobre normas gerais relativas ao ciclo laboral dos servidores públicos, à organização administrativa, ao governo digital, à transparência, à segurança cibernética e ao controle interno das administrações públicas.

A padronização de tratamento entre todos os entes federativos, típica de Estados unitários, desconsidera as peculiaridades locais e vai na contramão do federalismo cooperativo, o qual prevê competência legislativa concorrente dos estados e municípios em matéria de servidores públicos. Há, portanto, uma subversão do pacto federativo, que marginaliza as autonomias dos entes locais.

Outro ponto sensível na reforma é a questão da advocacia pública brasileira. Embora houvesse previsões anteriores, somente com a Constituição de 1988 ela passou a ser considerada função essencial à Justiça. Sua função primordial é o exercício da advocacia de Estado, com a defesa do patrimônio público e o controle da juridicidade da administração. Trata-se, portanto, de um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito, em razão de seu papel de controle e conformidade na construção e execução de políticas públicas.

Como seus membros são obrigatoriamente advogados, uma das formas de remuneração é por meio de honorários advocatícios. Essa modalidade de remuneração está em plena sintonia com o simbolismo de eficiência e modernidade que os proponentes da reforma alegam defender, pois implica pagamento condicionado ao êxito em ações judiciais. Assim, causa perplexidade a previsão de enfraquecimento - e até de possível extinção - dessa forma de remuneração na reforma administrativa.

Se o simbolismo da reforma é modernizar e tornar eficiente, previsões como essa se mostram incoerentes. Isso expõe que a mensagem transmitida não é a proclamada, mas sim a de precarização do serviço público e consequente enfraquecimento do Estado Democrático de Direito. Além disso, há uma intenção política de enfraquecer justamente aqueles que zelam pela Constituição, permitindo o retorno de práticas anteriores ao regime constitucional, marcadas pelo patrimonialismo estatal.

A difusão de notícias negativas sobre o serviço público, amplamente veiculadas pela imprensa, não deve ofuscar o verdadeiro significado da advocacia pública. Somente em 2024, o Estado do Rio Grande do Sul economizou 2,5 bilhões de reais graças à atuação da Procuradoria-Geral do Estado1. Não há política pública, obra ou contratação que prescinda da atuação da Advocacia Pública Brasileira.

Conclui-se, portanto, que os símbolos são importantes e têm múltiplos significados. Entretanto, é preciso reconhecer que, sobretudo na arena política, o símbolo externado pode não corresponder à intenção real da ação ou omissão. A PEC 38/25, chamada reforma administrativa, ostenta o símbolo de modernidade e eficiência do Estado, mas, na prática, visa à precarização do serviço público e ao enfraquecimento do Estado Democrático de Direito. Espera-se que, ao final, ela simbolize apenas o fracasso, em virtude de sua não aprovação.

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1 https://www.pge.rs.gov.br/atuacao-da-pge-rs-garante-economia-de-quase-r-2-5-bilhoes-aos-cofres-do-estado

Lucas Augusto Abreu Alves

VIP Lucas Augusto Abreu Alves

Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Mestrando em Direito Privado pela UFRGS, especialista em Direito Processual Civil pela UFF e graduado em Direito com láurea acadêmica pela UFRJ.

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