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Arquitetura da austeridade: Análise crítica da PEC 38/25

O texto analisa como a PEC 38/25 institui mecanismos constitucionais de teto de gastos e revisão de despesas que consolidam um regime permanente de austeridade e encolhimento do Estado Social.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Atualizado às 13:27

1. Introdução

A proposta de reforma administrativa (PEC 38/25)1 insere-se em um contexto de reconfiguração estrutural do Estado brasileiro. Mais do que ajustes técnicos ou gerenciais, a reforma constitucionaliza o equilíbrio orçamentário como eixo estruturante do modelo de Estado fiscalista.

2. A arquitetura da austeridade: Análise estrutural dos dispositivos de contenção fiscal

A reforma administrativa introduz um conjunto de dispositivos que, articulados, formam um sistema de contenção de despesas. Esses mecanismos não são isolados; operam em conjunto para limitar a capacidade fiscal dos Estados, municípios e do Distrito Federal.

2.1. Teto de gastos para Estados e municípios (arts. 28-A, 29-A e 32-A)

Os arts. 28-A, 29-A e 32-A2 instituem teto de gastos para os entes subnacionais, abrangendo despesas primárias de todos os Poderes e órgãos autônomos, inclusive gastos com pessoal ativo, inativo e pensionistas.

O mecanismo articula-se em três elementos: (i) uma limitação geral, que impede que o total das despesas ultrapasse o montante do ano anterior corrigido; (ii) uma regra de correção, que vincula o crescimento das despesas à variação da receita e à inflação; e (iii) um limite máximo para o crescimento real.

Em cenário de "receita baixa", quando a variação da receita primária ajustada fica abaixo da inflação, as despesas só podem crescer até o limite da inflação acumulada. Já em cenário de "receita alta", se a receita crescer acima da inflação, o gasto poderá aumentar em valor correspondente à inflação acrescida de uma parcela do crescimento real da receita (50% no ano seguinte à apuração de déficit e 70% nos demais casos), limitada, em qualquer hipótese, a 2,5% ao ano. O resultado é um regime em que, mesmo em períodos de bonança fiscal, o gasto público é programado para crescer menos que proporcionalmente.

2.2. Racionalização compulsória e encolhimento do ente municipal (art. 29)

O art. 29, em seus incisos III-A e V, introduz um gatilho de ajuste automático para municípios considerados fiscalmente frágeis. Se, na média de quatro anos, as despesas de custeio da administração superarem a receita corrente líquida (deduzidas as transferências), o município é forçado a uma "racionalização" compulsória no mandato seguinte. Essa racionalização inclui:

i) Limitação da estrutura: estabelecimento de um teto para o número de secretarias, que varia de 5 (para municípios com até 10 mil habitantes) a 10 (para municípios com mais de 500 mil habitantes); ii) Limitação de subsídios: fixação de um teto para os subsídios do prefeito, vice-prefeito e secretários, definido como percentual do subsídio do governador do Estado.

Ao uniformizar critérios e impor um encolhimento padronizado da estrutura administrativa, a norma desconsidera as realidades locais, fragiliza a capacidade de gestão, especialmente em municípios pequenos e dependentes de transferências, e pode comprometer a prestação de serviços básicos e a autonomia municipal.

2.3. A lógica fiscalista por trás da "extinção de privilégios" (art. 37, XXIII)

O art. 37, XXIII, reúne diversas vedações sob o argumento de combate a privilégios no serviço público. A análise de seu conteúdo revela, porém, uma lógica predominantemente fiscalista: reduzir pontos de crescimento da folha de pagamento. Entre as proibições, destacam-se:

i) a vedação de férias em período superior a 30 dias anuais, apresentada como aproximação ao regime do setor privado, mas que significa, na prática, redução de despesas diretas e indiretas associadas a afastamentos prolongados; ii) a proibição de adicionais por tempo de serviço (anuênios, quinquênios), apresentada como o fim de um "prêmio" automático por antiguidade, sem relação com o mérito. Sob a ótica fiscal, esses adicionais representam componentes de crescimento previsível da despesa com pessoal; iii) a extinção da licença-prêmio ou licença-assiduidade sob a justificativa de se tratar de benefício sem contrapartida direta de produtividade. Em termos fiscais, o objetivo é reduzir passivos trabalhistas (como pagamentos em pecúnia) e diminuir custos com afastamentos remunerados que exigem substituição;

iv) a vedação de progressão ou promoção exclusivamente por tempo de serviço, substituída por critérios de desempenho, o que permite maior controle sobre o ritmo de evolução salarial; v) por fim, a vedação ao aumento de remuneração com efeitos retroativos, sob o pretexto de moralização, constitui, na prática, instrumento de previsibilidade orçamentária.

Essas vedações, vistas por entidades sindicais como supressão de direitos e não como eliminação de privilégios, configuram um esforço consistente de contenção da despesa com pessoal, pilar clássico das políticas de austeridade.

2.4. O spending review como ferramenta constitucional de ajuste permanente (art. 165)

As alterações propostas ao art. 165 constitucionalizam a "revisão de gastos" (spending review) como um processo contínuo e integrado ao ciclo orçamentário. Os §§ 2º-A, 2º-B e 2º-C3 determinam que o Poder Executivo realizará essa revisão de forma permanente, com o objetivo de realocar recursos, e que suas medidas deverão constar de anexo específico da LDO - Lei de Diretrizes Orçamentárias.

O que, em tese, poderia servir à melhoria da qualidade do gasto converte-se em verdadeiro mandamento constitucional de busca permanente por cortes e "economias", transformando a spending review, de instrumento discricionário de gestão, em mecanismo estrutural de austeridade, independente de ciclos econômicos ou de prioridades definidas democraticamente.

3. Sinergia dos mecanismos e viés estrutural de encolhimento

O teto de gastos para Estados e municípios, a racionalização compulsória de estruturas municipais, as vedações remuneratórias sob o rótulo de combate a privilégios e a institucionalização da spending review compõem uma arquitetura integrada de austeridade.

Em momentos de crescimento da receita, as regras limitam o incremento das despesas, impedindo que o Estado acompanhe, com a mesma intensidade, a expansão das necessidades sociais. Em períodos de queda da receita ou de crise, os mecanismos aceleram o ajuste para baixo, comprimindo ainda mais o gasto público. Ao longo do tempo, a trajetória resultante é a contração relativa do setor público na economia.

4. Críticas e consequências: Serviço público e direitos sociais em risco

A proposta tem sido alvo de críticas de entidades representativas de servidores públicos, sindicatos e setores da academia. As objeções apontam que as consequências vão além do ajuste fiscal, incidindo sobre a estrutura do serviço público, a qualidade das políticas públicas e a própria ideia de Estado Social afirmada em 1988.

4.1. O impacto na qualidade dos serviços públicos

A promessa de maior eficiência é contestada diante de um desenho normativo que tende a produzir subfinanciamento crônico em áreas essenciais, como saúde, educação e segurança. A combinação de tetos rígidos, limitação de estruturas administrativas e compressão de direitos remuneratórios pode resultar na deterioração da qualidade e do alcance dos serviços públicos, afetando sobretudo as camadas mais vulneráveis da população.

4.2. A incompatibilidade com o Estado Social de 1988

Do ponto de vista jurídico-constitucional, a crítica mais profunda recai sobre a compatibilidade do modelo fiscalista da reforma com o projeto de Estado de Bem-Estar Social consagrado em 1988. A Constituição pressupõe um setor público dotado de capacidade financeira suficiente para garantir direitos sociais universais e reduzir desigualdades.

Ao impor uma "camisa de força fiscal" permanente, a reforma esvazia a promessa constitucional, convertendo direitos em metas condicionadas à disponibilidade orçamentária que a própria emenda se encarrega de restringir. A proposta, assim, não se limita a reformar a Administração Pública: ela redefine o papel do Estado na sociedade brasileira, aproximando-o de um Estado mínimo e afastando-o do modelo social de 1988.

5. Conclusão: A constitucionalização da austeridade

A análise da proposta de reforma administrativa de 2025 revela que, sob o discurso de modernização gerencial, há um projeto de constitucionalização da austeridade fiscal. Os mecanismos de controle de despesas formam uma arquitetura normativa coesa, voltada ao encolhimento duradouro do Estado.

Esse desenho limita a capacidade de investimento, reduz a margem de resposta às demandas sociais e desloca do debate democrático a definição sobre o tamanho e o papel do Estado, aproximando-se de uma cláusula pétrea informal em torno de um Estado fiscalmente contido.

Diante do risco de aprofundamento das desigualdades e de precarização dos serviços públicos, a mobilização crítica da sociedade civil, dos servidores e da comunidade acadêmica torna-se essencial para defender o modelo de Estado Social e Democrático de Direito prometido pela CF/88.

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1 BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 38, de 2025. Ementa: altera a Constituição Federal para .... Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 3 nov. 2025.

2 Idem.

3 BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 38, de 2025. Ementa: altera a Constituição Federal para .... Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 3 nov. 2025.

Gustavo Roberto Januário

VIP Gustavo Roberto Januário

Procurador Federal desde 2015. Especialista em Processo Civil pela USP e em Advocacia Pública pela ESAGU. Aluno especial do Mestrado em Constitucionalismo e Democracia pela FDSM.

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