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A chacina da Penha

"O direito à vida não admite relativação, sob pena de se normalizar o descontrole estatal, as barbáries, as chacinas, independentemente de quem e do porquê."

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Atualizado às 14:36

Não! Não estamos saindo em defesa de criminosos. Defendemos a vida, em sua concepção fundamental. O principal dos direitos, garantido constitucionalmente e pré-requisito à existência e ao exercício de todos os demais.

O direito à vida não admite relativação, sob pena de se normalizar o descontrole estatal, as barbáries, as chacinas, independentemente de quem e do porquê. Numa sociedade civilizada não se flexibiliza direitos fundamentais.

A história nos confirma: todas as vezes que banalizamos a vida (ou a morte, para sermos mais exatos), rasgamos o fino limite entre o Direito e a barbárie estatal e atingimos patamares insustentáveis. Se outorgamos ao estado a opção de abolir o direito fundamental à vida, qual outro direito vamos recorrer à sua proteção? O holocausto talvez nos seja o exemplo mais emblemático: o extermínio de judeus, ciganos, pessoas com deficiência, homossexuais e opositores políticos com o objetivo de exterminar minorias consideradas indesejáveis.

E o que vimos em 28/10 último? Uma chacina, promovida pelas forças de segurança pública, na Comunidade do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, que levou à morte de ao menos 121 pessoas. Não vamos aqui entrar na discussão de quem ou quais pessoas, se bandidos ou mocinhos, traficantes, civis ou policiais. Não é essa a abordagem, porque o direito à vida não admite flexibilização ou rotulação, não permite um senão. A vida tem um valor único, individual e inigualável e não pode - sob qualquer hipótese, ao menos num estado de direito - ser ceifada ilegitimamente pelas forças estatais.

Ao menos 121 vidas foram assassinadas pelo Estado - e isso é inadmissível em nossa sociedade!

E tudo isso sob qual fundamento? Não vivemos um estado de exceção, não juridicamente, não politicamente. Não está autorizada a pena de morte.

Não é essa a função estatal, senão a de zelar pelas garantias fundamentais e prover os meios necessários, inclusive sociais, em prol de seus representados.

A justificativa que recebemos do governo foi de que a ADPF 635 (ou melhor, nas palavras de nosso governador em entrevista coletiva após a barbárie, a "maldita ADPF 635") - impôs grande restrição à atuação policial e um consequente aumento da criminalidade e maior organização bélica do crime organizado.

Pronto, estava legitimada a barbárie, justificada a chacina.

Ainda que correta essa afirmativa - o que em nada legitimaria a atuação policial - essa justificativa é mais uma grande desinformação.

Segundo dados do Ministério Público do Rio de janeiro, no período de 2020 a janeiro de 2025, as Polícias Civil e Militar comunicaram 4,6 mil operações em comunidades do Estado, ou seja, uma média de 03 operações por dia.

Mas o número real de operações policiais em comunidades pode ser ainda maior. Segundo o Geni-UFF - Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da UFF, as operações policiais foram subnotificadas pelo Estado, chegando-se, de fato, a 5.833 operações entre 2021 e 2024.

A decisão do STF no bojo da ADPF 635 determinou que o Estado do Rio de Janeiro elaborasse e encaminhasse ao Poder Judiciário um plano visando à redução da letalidade policial e ao controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança fluminenses, que contenha medidas objetivas, cronogramas específicos e previsão dos recursos necessários para a sua implementação, objetivando garantir a participação da sociedade civil e dos movimentos sociais nas políticas de segurança pública como ferramentas de acesso à justiça e de solução de conflitos.

Nada que justificasse a pecha de causadora dos distúrbios na segurança pública e do aumento da criminalidade no Rio de Janeiro.

Era mais um discurso vazio, uma propaganda eleitoreira. Nas palavras da moradora da comunidade e ativista negra: "o que aconteceu dentro da comunidade foi um genocídio. Toda véspera de eleição tem uma estratégia de entrar nas nossas comunidades, matar o nosso povo e causar o terror. Os corpos estão sendo usados politicamente. E os corpos que tombam são os nossos, do povo preto e do povo pobre. Não aguentamos mais".1

E ao final de tudo, caída a noite de 28/10, a apreensão e expectativa na comunidade - e em toda população do Rio de Janeiro - era pela manhã seguinte: quais políticas sociais e novas oportunidades o Estado teria reservado para aquela comunidade?

Como dar algum sentido ao choro de uma população tão machucada, carente e vulnerável socialmente? Como encarar a presença estatal sinônimo de cidadania e não de medo?

Mas a população amanheceu diante de um cenário de guerra, a consagração da derrota: mais de 60 corpos assassinados pelo Estado, enfileirados lado a lado, no meio da rua, na principal via de acesso à comunidade.

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1 Rute Sales, moradora do Complexo do Alemão e ativista negra, in https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-10/moradores-do-alemao-e-da-penha-protestam-contra-mortes-em-operacao

Fernando Teixeira Martins

VIP Fernando Teixeira Martins

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal e Criminologia. Professor Universitário e de Cursos Preparatórios a Carreiras Jurídicas. Advogado Criminalista.

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