Entre a toga e o palanque: As manifestações do STF e a imparcialidade
O artigo examina as manifestações políticas de ministros do STF e seus impactos sobre a imparcialidade judicial, debatendo os limites entre liberdade de expressão e dever de reserva.
sexta-feira, 7 de novembro de 2025
Atualizado às 13:48
A crescente exposição pública de ministros do STF tem provocado reflexões sobre os limites constitucionais da imparcialidade judicial e o papel simbólico do Judiciário em democracias constitucionais. Em tempos de intensa polarização ideológica, as manifestações políticas e ideológicas de magistrados tornam-se um tema sensível, afetando a credibilidade do sistema de justiça e a confiança social na neutralidade das decisões.
Desde a CF/88, o STF consolidou-se como guardião da Carta Magna e protagonista em decisões de grande repercussão política. Essa centralidade institucional, porém, vem acompanhada de um crescente protagonismo discursivo. Ministros, muitas vezes, ultrapassam os limites da função jurisdicional e adentram o espaço público com declarações que tangenciam a arena partidária, gerando a sensação de que a toga se confunde com o palanque, afinal não votamos em juízes ou ministros para agirem como políticos.
A CF/88, em seu art. 95, parágrafo único, III, é clara ao vedar a atividade político-partidária de juízes. Contudo, permanece o vácuo normativo quanto aos limites da liberdade de expressão dos magistrados. Essa lacuna alimenta a insegurança jurídica e permite interpretações amplas sobre o que seria uma manifestação legítima ou um comportamento incompatível com o dever de reserva. O desafio consiste em equilibrar o direito à liberdade de expressão com a exigência de imparcialidade judicial, valor essencial ao Estado Democrático de Direito.
Luigi Ferrajoli, em sua teoria do garantismo penal, ensina que a imparcialidade é o alicerce do sistema acusatório, exigindo a separação entre as funções de acusar, defender e julgar. O juiz, nessa perspectiva, deve manter uma postura equidistante em relação às partes e aos interesses em disputa, legitimando sua atuação pela observância dos princípios constitucionais e pela confiança pública na justiça. A imparcialidade não é apenas um atributo técnico: é uma virtude moral e institucional.
Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa reforçam que a imparcialidade constitui o princípio supremo do processo penal e base da estrutura dialética do sistema acusatório. A aplicação da teoria da dissonância cognitiva ao processo penal demonstra como pré-julgamentos ou contatos prévios com informações externas podem comprometer a originalidade cognitiva do juiz. Um magistrado que opina publicamente sobre temas políticos, portanto, arrisca-se a contaminar a percepção de neutralidade que sustenta o seu poder de julgar.
Essa dimensão simbólica da imparcialidade é destacada por Bárbara Gomes Lupetti Baptista, ao demonstrar que as práticas judiciais são orientadas por percepções subjetivas e crenças sobre o que significa "ser imparcial". Para a autora, o discurso sobre a imparcialidade é construído socialmente dentro do próprio campo jurídico e pode ser fragilizado por manifestações extrajudiciais que coloquem em dúvida a isenção do julgador. A imparcialidade, portanto, é tão perceptiva quanto real: não basta ser imparcial, é preciso parecer imparcial.
A relação entre imparcialidade e igualdade, observada por Bruno Amaro Lacerda, reforça que ambas derivam da posição de terceiro ocupada pelo juiz. A igualdade só se concretiza quando o julgador mantém distância de qualquer favoritismo, ideologia ou interesse pessoal. O princípio da isonomia processual, ao exigir tratamento idêntico a casos semelhantes, depende diretamente da confiança na imparcialidade judicial.
Michele Taruffo, por sua vez, sustenta que a imparcialidade está intrinsecamente ligada à busca pela verdade processual. Um magistrado influenciado por fatores externos não apenas se afasta da neutralidade, mas também compromete a própria veracidade de seu juízo. Assim, a imparcialidade ultrapassa a dimensão formal: é uma condição de possibilidade da justiça.
A jurisprudência do STJ reforça essa ideia. No emblemático REsp 83.732/RJ, reconheceu-se que a suspeição judicial pode ser declarada mesmo sem prova de má-fé, bastando a presença de circunstâncias objetivas capazes de afetar a confiança pública na isenção do juiz. A legitimidade de uma decisão, portanto, depende não só da imparcialidade efetiva, mas também da aparência de imparcialidade.
Lenio Streck, ao criticar o modelo do "juiz-herói", denuncia o ativismo judicial performático que transforma o julgador em protagonista político. Para Streck, a autocontenção é a verdadeira virtude judicial: o juiz não deve ser autor da norma, mas seu intérprete. A função jurisdicional exige sobriedade e silêncio, não protagonismo e espetáculo.
Nesse sentido, a lei orgânica da magistratura (LC 35/79) impõe ao juiz o dever de agir com independência, serenidade e precisão. Como lembra Celso Agrícola Barbi, não é o tecnicismo que afasta a confiança social, mas a percepção de parcialidade. As garantias constitucionais da magistratura não são privilégios pessoais, mas instrumentos destinados a assegurar que o juiz decida com base no Direito e não em convicções políticas ou morais.
A imparcialidade, contudo, não é uma virtude inata. Antoine Garapon observa que o juiz, enquanto ser humano, carrega experiências e preferências que o tornam vulnerável a inclinações e simpatias. Por isso, a ética é a essência da atividade jurisdicional: julgar requer humildade epistêmica e contenção. Como recorda Ferrajoli, o magistrado deve reconhecer os limites do próprio conhecimento e rejeitar qualquer arrogância cognitiva, pautando suas decisões no Direito e nas provas, jamais em suas opiniões públicas.
No contexto brasileiro, a função de ministro do STF intensifica esses dilemas. Decisões sobre temas de grande repercussão política e social colocam o tribunal sob constante escrutínio público. Manifestações extrajudiciais, nesse cenário, podem ser interpretadas como sinalizações sobre futuras decisões, afetando a credibilidade da Corte e a percepção de sua neutralidade. A toga, quando confundida com o palanque, fragiliza o pacto democrático e deslegitima o papel contramajoritário do Supremo.
A imparcialidade judicial, mais do que um requisito funcional, é a virtude que sustenta o poder de julgar. Quando presente, confere legitimidade à jurisdição e fortalece o Estado de Direito; quando ausente, transforma o juiz em militante e o tribunal em arena política. Em sociedades marcadas pela desconfiança nas instituições, a toga deve simbolizar serenidade, contenção e respeito - jamais partidarismo.
Como sintetiza Bezerra Filho (2025), "a imparcialidade confere dignidade à toga e atribui verdadeiro sentido ao ato de julgar". Um juiz imparcial decide com base no Direito, mas também com consciência; é essa combinação que legitima a justiça e dá vida ao Estado Democrático de Direito. E, como sempre se falou "A mulher de Cesar não basta ser honesta, precisa parecer honesta."


