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O marco legal das garantias e seus reflexos na recuperação judicial

Entre a segurança do crédito e a preservação da empresa: um equilíbrio necessário.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Atualizado em 6 de novembro de 2025 11:30

A promulgação da lei 14.711/23, conhecida como marco legal das garantias, representou um passo importante no aprimoramento do sistema jurídico brasileiro de crédito e execução de garantias. Seu art. 1º dispõe que a lei tem por objetivo "o aprimoramento das regras relativas ao tratamento do crédito e das garantias e às medidas extrajudiciais para recuperação de crédito".

O Congresso Nacional detectou uma deficiência na constituição e recuperação do crédito no cenário brasileiro, e se propôs a aprimorar parte do que se pode chamar de sistema de garantias. Com isso, a nova lei alterou quinze diplomas legais, destacando-se o CC, o CPC, a lei dos registros públicos e a lei do sistema de financiamento imobiliário (lei 9.514/1997).

Esta última lei, aliás, em conjunto com o decreto-lei 911/1969, são, provavelmente, os diplomas nos quais as alterações mais relevantes do marco legal das garantias estão presentes.

As alterações mais sensíveis concentram-se na alienação fiduciária de bem imóvel, uma das quatro modalidades de garantia de operações de financiamento imobiliário, cuja definição passou a admitir expressamente que o negócio jurídico pode garantir obrigação própria ou de terceiro, ampliando seu alcance e reforçando sua utilidade prática.

Logo, a atual definição legal de alienação fiduciária é de negócio jurídico pelo qual o fiduciante (como é chamado o devedor), com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, transfere, ao fiduciário (como é chamado o credor), a propriedade resolúvel de coisa imóvel.

O destaque, contudo, recai sobre as regras de consolidação da propriedade fiduciária, desde a constituição em mora até o leilão extrajudicial e a transferência da posse - medidas que visam à extrajudicialização da execução, conferindo maior segurança e celeridade ao credor.

Sabe-se que a alienação fiduciária1 é um instrumento jurídico que confere alguma segurança até mesmo em caso de crise da empresa fiduciante. A lei 11.101/05, conhecida como LREF - Lei de Recuperação de Empresas e Falências, traz algumas regras que protegem o credor fiduciário.

Dessa forma, a alienação fiduciária se mostra especialmente relevante no contexto de recuperação judicial. O art. 49, §3º da LREF estabelece que "o proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis não se submete aos efeitos da recuperação judicial", ou seja, o crédito garantido fiduciariamente não é sujeito à novação ou ao plano de soerguimento. O bem alienado fiduciariamente permanece sob titularidade resolúvel do credor, reforçando a segurança da garantia, não estando à disposição da empresa recuperanda para ser alienado.

A jurisprudência do STJ2 tem reiterado esse entendimento, que consolida a posição de prevalência da tutela do crédito fiduciário sobre a preservação da atividade da sociedade empresária em recuperação judicial, permitindo-se assim a execução de garantias. As decisões reforçam o caráter extraconcursal desses créditos, conforme a doutrina de Marcelo Barbosa Sacramone, para quem "o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis manterá os direitos de propriedade sobre a coisa, de forma que poderá retomá-la, diante do inadimplemento, não se submetendo aos efeitos da recuperação judicial do devedor."3

Outra proteção prevista ao credor de alienação fiduciária se dá no próprio financiamento da empresa em crise. O art. 69-A da LREF autoriza a celebração de contratos de financiamento com o devedor, com o objetivo de propiciar a reestruturação da empresa em crise. Tal operação pode ser  garantida pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos pertencentes ao ativo não circulante da recuperanda, desde que exista autorização judicial.

Tal crédito será extraconcursal, e nem a reversão, em segundo grau de jurisdição, da decisão autorizativa do financiamento poderá alterar sua natureza extraconcursal (art. 69-B). Além disso, as garantias constituídas e as preferências serão conservadas até o limite dos valores efetivamente entregues ao devedor antes da data da sentença, em caso de convolação em falência (art. 69-D, parágrafo único).

Tais dispositivos, conjugados com o marco legal das garantias, consolidam uma política legislativa de valorização das garantias reais e de fortalecimento do crédito, especialmente em operações de reestruturação financeira empresarial.

Apesar da proteção do credor fiduciário, o legislador não se afastou da observância ao princípio da preservação da empresa. O mesmo art. 49, §3º, prevê que, se o bem objeto da alienação fiduciária for essencial à atividade empresarial, sua retirada ou venda fica vedada por até 180 dias após o deferimento do processamento da recuperação - prazo que pode ser prorrogado por igual período.

Eventuais atos de constrição que recaiam sobre os bens considerados essenciais podem, inclusive, serem suspensos por determinação judicial do juízo recuperacional (art. 7°-A, LREF).

Desse modo, verifica-se que a disciplina da alienação fiduciária no contexto de crise da empresa devedora confere, ao credor fiduciário, direitos que outros credores não possuem, em observância ao aprimoramento das regras de garantias - ideal da lei 14.711/23 -, mas harmoniza a proteção do detentor da garantia com o ideal de "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor" (art. 47, LREF)4 - princípio fundamental da LREF, conhecido como princípio da preservação da empresa -, por meio da blindagem aos bens considerados essenciais a atividade da empresa em crise.

O marco legal das garantias, ao promover a desjudicialização e o fortalecimento das garantias fiduciárias, contribui para um ambiente de crédito mais previsível e eficiente. Entretanto, sua aplicação no contexto da recuperação judicial deve ser harmonizada com o propósito maior da LREF, qual seja, a superação da crise econômico-financeira do devedor.

A conciliação entre a segurança jurídica do credor e a preservação da empresa viável constitui o verdadeiro desafio interpretativo dessa nova fase do direito empresarial brasileiro.

________

1 "Esse forte instituto, agora franqueado a todos os contratantes, que implica a transferência de propriedade resolúvel ao credor, pondo-o a salvo do concurso de outros credores, somados à rápida execução no caso de inadimplemento, certamente se tornará a mais popular das garantias reais, pondo de lado o penhor e a hipoteca. [...] A propriedade fiduciária constitui patrimônio de afetação, porque despida de dois dos poderes federados do domínio - jus utendi e fruendi -, que se encontram nas mãos do devedor fiduciante. O credor fiduciário tem apenas ojus abutendi e, mesmo assim, sujeitos à condição resolutiva, destinado, afetado somente a servir de garantia ao cumprimento de uma obrigação." LOUREIRO, Francisco Eduardo. In: PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado. 2. ed. São Paulo: Manole, 2019. pp. 1.363-1.364.

2 REsp 1.758.746/GO, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 25.09.2018, DJe de 28.09.2018; REsp 1.263.500/ES, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 05.02.2013, DJe de 12.04.2013; REsp 1.202.918/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 07.03.2013, DJe de 10.04.2013; REsp 1.412.529/SP, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 17.12.2015, DJe de 02.03.2016 e CC 131.656/PE, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 08.10.2014, DJe de 20.10.2014.

3 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 6. ed. São Paulo, Saraiva Jur, 2025, p. 232.

4 "É unânime o entendimento de que não existe recuperação judicial possível, sem o chamado "dinheiro novo". Qualquer empresa em atividade normal necessita de crédito para poder implementar seus projetos, o que faz normalmente valendo-se de seus contatos no campo financeiro, assumindo empréstimos em banco e colhendo dinheiro de investidores em geral. Essa necessidade de capital mais se acentua quando a empresa entra em recuperação judicial, já palmilhando um campo de crise confessada pelo próprio pedido de recuperação. Nesse momento em que se mais necessita de aportes financeiros, o que corre sempre é que os financiadores acabam se retraindo, criando dificuldades intransponíveis para o fornecimento de crédito." BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101/2005 - comentada artigo por artigo. 17. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025. p. 310.

Eliézer Francisco Buzatto

Eliézer Francisco Buzatto

Sócio do escritório Oliveira e Olivi Advogados Associados. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (2017) e em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2022). Atualmente cursa MBA em Gestão Empresarial na Fundação Getúlio Vargas e MBA em IA e Precedentes do STF/STJ na Universidade do Oeste de Santa Catarina, além de ser membro do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (IBRADEM).

Gustavo Borges de Oliveira

Gustavo Borges de Oliveira

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (FDRP - USP). Advogado do escritório Oliveira e Olivi Advogados Associados.

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