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Entre direitos humanos e prerrogativas presidenciais, a ministra negra

Notas sobre mecanismos presentes na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância e sua influência nos critérios de escolha para o STF

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Atualizado às 10:23

Perante o gabinete do ministro André Mendonça, há mandado de segurança requerendo que o STF determine à presidência da República que se abstenha de indicar pessoas inseridas em perfil étnico-racial e de gênero historicamente dominante na Corte, e que proceda à indicação de pessoas inseridas em perfil étnico-racial e de gênero historicamente excluído, ou alternativamente, que faça a indicação de pessoas inseridas em perfil étnico-racial e de gênero historicamente sub-representado na Corte.

Esta medida visa assegurar a indicação de uma jurista negra ao STF, para encerrar um ciclo histórico e vergonhoso de exclusão. A tese apresentada gerou controvérsia para a opinião pública, e diversos questionamentos no mundo jurídico sobre a força e a aplicabilidade da legislação pertinente aos Direitos Humanos - majoritariamente oriunda de tratados internacionais - às instituições públicas.

Tradicionalmente, entende-se como prerrogativa exclusiva da presidência da República a escolha das pessoas que ocuparão assentos no STF; e fora dos requisitos firmados pelo art. 101 da Carta Magna, a presidência não está obrigada a observar mais nada.

Mas a legislação pertinente aos Direitos Humanos deve ser aplicável a todos os aspectos das instituições públicas; e que no caso das indicações ao STF, é imprescindível fazer cumprir estes dispositivos, pois integrantes do bloco constitucional. O debate, neste aspecto, é pertinente e necessário, pois afeta as estruturas políticas e jurídicas como um todo.

A CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher1, na legislação brasileira desde 2002, fixa deveres do Estado brasileiro para garantir plena participação feminina em todos os setores políticos, culturais, econômicos e jurídicos.

CIRDI - Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância2 na legislação brasileira desde 2022, também fixa deveres do Estado brasileiro para assegurar acesso de grupos sujeitos a racismo a todos os setores políticos, culturais, econômicos e jurídicos. Mais densa, a CIRDI conceitua práticas que podem configurar segregação, por setores públicos e privados, e determina que o Estado deve combatê-las.

É da CIRDI que emanam os conceitos de discriminação indireta - quando um dispositivo, prática ou critério parece neutro, mas seu uso traz uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico - e discriminação múltipla, que é a preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada, de modo concomitante, em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica e em outros critérios discriminatórios reconhecidos em instrumentos internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais em qualquer área da vida pública ou privada.

O Brasil assumiu nestas convenções a obrigação de firmar políticas para eliminar a discriminação contra a mulher, e erradicar a discriminação racial, conforme conceituada nas convenções; os arts. 2º, "D", "E", 3º e 7º da CEDAW e arts. 4º, VII, 5º e 9º da CIRDI falam especificamente do acesso destes grupos a cargos e funções públicas - como, por exemplo, uma vaga no STF.

Considerando os conceitos fixados e o dever de Estado em combatê-los "em todos os setores", tem-se necessária a observância dos padrões de preenchimento de cargos públicos, a identificação - ou não - de práticas aparentemente neutras que promovam desvantagem a dados grupos e de preferências cujo resultado prático seja a restrição ou exclusão de reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais a dados grupos.

É assim que estas convenções obrigam o Brasil a pautar gênero e raça nos cargos e funções públicas enquanto ação afirmativa, ou seja, examinar atentamente sua composição institucional e usar os critérios que historicamente são sinônimo de exclusão, para então pautá-los como critério de inclusão, em todos os setores, até que se atinja igualdade de condições. É medida de equilíbrio democrático. 

Por isso, elas integram requisitos constitucionais para preenchimento de cargos públicos. Sim, integram os requisitos constitucionais, pois a CIRDI é uma EC. Ela passou pela Câmara dos Deputados como PDC 861/17, e pelo Senado como PDL 562/20; foi aprovada nas Casas Legislativas de acordo com os critérios da EC 45/04.

A CEDAW, por ser anterior à EC 45/04, é norma supralegal. Ela poderia não ser considerada, se a CIRDI não fosse expressa em determinar a observância de critérios de discriminação e de inclusão "previstos em outros tratados internacionais" na hora de aplicar seus dispositivos.

E é ela, a CIRDI, quem está no centro do debate, pois essa EC, que pauta direitos humanos fundamentais para grupos historicamente sujeitos a práticas discriminatórias, determina expressamente que o Estado tem que fazer com que sistemas políticos e jurídicos reflitam adequadamente a diversidade de suas sociedades, a fim de atender às necessidades legítimas de todos os setores da população. 

A conclusão inevitável, diante do status de EC da CIRDI, de suas determinações expressas acerca de acesso às funções públicas e à representação quantitativa e qualitativa no sistema jurídico, é de que a CIRDI impõe o uso de critérios étnico-raciais e de gênero em conjunto com os critérios firmados pelo art. 101 da Constituição Federal para a escolha de quem vai ocupar assento no STF. 

Analisando o histórico de nomeações ao STF, desde a Proclamação da República até hoje, é inegável a preferência por um perfil étnico-racial e de gênero que impõe sub-representação e exclusão a outros. As pessoas que passaram pela presidência da República nomearam, até o momento, 172 pessoas para o cargo. Nestas 172 nomeações, em 168 ocasiões, "preferiu-se" pessoas brancas; em 169 ocasiões, "preferiu-se" homens; e em 165 ocasiões, "preferiu-se" homens brancos.

O desequilíbrio étnico-racial e de gênero é gritante em simples contagem, e faz questionar as razões da prevalência destas "preferências", que se revelam discriminatórias. A série histórica, só no STF, evidencia que, na hora de se ocupar cargos e funções públicas, a preferência do Estado brasileiro tem raça e gênero, sempre escolhendo os homens brancos, em detrimento e prejuízo de todo o notório e notável saber jurídico que não é masculino, nem branco, existente no Brasil.

Essa preferência, pela CIRDI, é discriminação indireta (é uma prática reiterada que parece neutra, mas impõe desvantagem à população negra, indígena e feminina no Brasil) e múltipla, pois a preferência histórica baseada (conscientemente ou não) no gênero masculino e na raça branca resulta na restrição e na exclusão do exercício, em condições de igualdade, de direito humano fundamental da população negra, indígena e feminina no Brasil de participar das instituições democráticas como um todo, e de ter nelas voz e voto.

A campanha "Ministra Negra JÁ" busca conscientizar setores políticos e jurídicos deste padrão histórico e discriminatório e chama atenção para o provimento de cargos como um todo: no STF, na Advocacia Geral da União, na Procuradoria Geral da República, nas Cortes Superiores, e em todos os espaços de poder, influência e decisão vinculados ao Poder Judiciário que, por tradição, dependem de indicações presidenciais, a preferência histórica é demonstrada e revela um padrão discriminatório de Estado constante e pernicioso.

O quadro de sub-representação feminina, negra e indígena é reiterado, a ponto de haver um apartheid histórico para mulheres negras e indígenas. Então, o Brasil não está cumprindo o dever firmado na CIRDI - e considerando que falamos de uma EC, tem-se uma verdadeira anomia no histórico de indicações para o STF, em fragorosa inconstitucionalidade.

Para reparar este cenário, na hora de indicar alguém para o STF, a presidência deve olhar o Censo para saber qual a composição da sociedade; olhar o Tribunal, para saber como está sua composição, e ponderar o perfil histórico de dominância; observar quais perfis sociais estão sub-representados, e quais perfis estão excluídos dessa composição, tanto em série histórica quanto no empirismo da atualidade; e ao realizar o diagnóstico, empenhar ação afirmativa, selecionando entre perfis sub-representados e excluídos as pessoas entre 35 e 70 anos com reputação ilibada e notável saber jurídico.

O foco de indicação é a população negra e feminina, o maior segmento populacional que temos no Brasil. De acordo com o Censo 20223, 28,5% da população brasileira é composta por mulheres negras; elas, no entanto, estão excluídas da Corte desde sua formação republicana. É importante reconhecer a diferença entre sub-representação e exclusão para compreender este foco.

Homens negros e mulheres brancas estão presentes na Corte. Muito aquém de sua real dimensão social, mas estão lá.Mas mulheres negras, mulheres indígenas e homens indígenas nunca puderam entrar lá, apesar de terem dimensão social significativa. Estes são segmentos populacionais vivendo em apartheid jurídico; e indicá-los é sinalização urgente ao cumprimento das normas. É preciso incluir (trazer quem nunca esteve), para depois equilibrar (trazer quem está aquém do que realmente retrata a sociedade).

Chegamos assim à conclusão de que a indicação de uma jurista negra ao STF (e a outros órgãos) é, de fato, obrigação da presidência: existem dispositivos constitucionais que garantem e protegem os direitos humanos de grupos minorizados e reconhecem seu acesso a espaços de poder como um direito humano à igualdade, e determinam que o Estado brasileiro assegure este direito em todos os sistemas políticos e jurídicos.

A constatação de que o Brasil está violando direitos humanos por impedir acesso da população feminina, negra e indígena a esse espaço de poder é inevitável. Indicações esporádicas não servem como "esforço inclusivo". Isso é tokenismo, e só dá combustível para o racismo arraigado em nossa sociedade.

Não é possível culpar o atual presidente da República pela História do Brasil. Cada pessoa eleita é responsável pelo que faz no exercício de seu mandato, e neste contexto, a presidência só pode ser chamada a tratar do período de 1/1/2023 a 31/12/2026, mandato vigente, onde responde pela inconstitucionalidade instaurada no STF ao exercer a prerrogativa de indicar juristas ao cargo.

É seu dever observar os critérios aqui explicitados. Em duas oportunidades, a presidência da República não procedeu desta forma, e violou direito humano fundamental da população negra e feminina do país. E agora, tenciona violar direitos humanos novamente, sem observar os comandos da CIRDI, para indicar mais um homem branco à Corte4.

Diante deste cenário, é necessário tomar uma medida mais extrema, mas legítima, pois nenhum ato político, por mais exclusivo que seja, é livre de escrutínio das leis - que não são ilhas normativas isoladas; elas devem servir à principiologia constitucional básica da satisfação das garantias constitucionais, que formam a base do Estado Democrático de Direito.

Se há necessidade de examinar a compatibilidade do ato com a principiologia constitucional, e avaliar o cumprimento de todos os critérios constitucionais envolvidos, a única solução é submeter a demanda ao órgão competente para a tarefa. Este órgão é o STF. Não se trata de violar a principiologia de separação dos poderes, mas de entregar ao órgão responsável pela guarda da Constituição - e de suas emendas - a análise de possível violação. 

Indicar uma mulher negra para o STF requer a coragem de desafiar o "lugar" das mulheres negras, e rechaçar os conceitos de "mérito", "gabarito" e "competência" vigentes, que sempre as excluem, para pelo menos começar o processo de desconstrução das estruturas racistas que sustentam o Brasil.

Mulheres negras, historicamente, são forçadas a papeis sociais subordinados e coisificados. Mas a simbologia da mucama não poderia ser aplicada a uma autoridade de Estado - e desafiar o racismo historicamente semeado é uma coragem que falta a todas as pessoas que ocuparam a presidência da República.

Chamar as instituições à sua responsabilidade pela manutenção do apartheid jurídico e pelo racismo semeado na constante negativa às mulheres negras de pleno acesso a todos os espaços de poder, influência e decisão é dever de todo e qualquer jurista no Brasil que tenha o mínimo de conhecimento acerca dos sistemas jurídicos que opera; as ferramentas, bem dissecadas pelo texto, estão todas lá.

O que ocorre no MS 40573 não é diferente do que ocorre na ADPF 635, ou no HC 143.641, ou na ADPF 442, ou no MI 4733. Todas estas ações tratam direitos humanos fundamentais perante o STF, usando remédios constitucionais adequados às partes proponentes, arguindo a força e a pertinência da legislação de direitos humanos - em maioria, tratados e convenções - para resguardar dados grupos sociais de violações sistemáticas perpetuadas pelo Estado brasileiro, ou pelos entes federados, lembrando as instituições daquilo que deveria ser inegável: as nossas Humanidades. 

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1 BRASIL. Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto no 89.460, de 20 de março de 1984.. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm. Acesso em: 22 out. 2025.

2 BRASIL. Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022. Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D10932.htm. Acesso em: 22 out. 2025.

3 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Panorama. Censo 2022, Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/index.html. Acesso em: 24 out. 2025.

4 BONIN, Robson. Lula já decidiu indicar Jorge Messias ao STF, diz Jaques Wagner. Veja, [S. l.], 21 out. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/lula-ja-decidiu-indicar-jorge-messias-ao-stf-diz-jaques-wagner/. Acesso em: 24 out. 2025.

Raphaella Reis de Oliveira

Raphaella Reis de Oliveira

Advogada trabalhista, integrante da Rede Feminista de Juristas, de Geledés Instituto da Mulher Negra, do Instituto da Advocacia Negra Brasileira e do Movimento ELO - Incluir e Transformar.

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