Justiça garante saque do FGTS para fertilização
Justiça autoriza uso do FGTS para custear fertilização in vitro, reconhecendo o direito à maternidade e a função social do fundo. Entenda os fundamentos da decisão.
terça-feira, 25 de novembro de 2025
Atualizado às 11:39
1. Introdução
A Justiça Federal do Rio Grande do Sul proferiu decisão autorizando o saque de valores depositados na conta vinculada do FGTS - Fundo de Garantia do Tempo de Serviço para custear tratamento de fertilização in vitro.
O caso ganha relevância por dois motivos centrais: (i) a reafirmação do caráter fundamental do direito à maternidade e ao planejamento familiar e (ii) a interpretação do art. 20 da lei 8.036/90 à luz da função social do FGTS e dos direitos fundamentais à saúde e à dignidade da pessoa humana.
Trata-se de precedente importante para a advocacia em Direito da Saúde e Direito do Trabalho, especialmente em casos em que o trabalhador busca utilizar recursos próprios, já constituídos em sua conta vinculada, para viabilizar tratamento médico de alto custo.
2. Contexto fático do caso concreto
No caso analisado pela Justiça Federal no Rio Grande do Sul, a parte autora é trabalhadora com saldo existente em sua conta vinculada do FGTS, que buscou a liberação dos valores para custear tratamento de fertilização in vitro.
O tratamento, indicado por equipe médica especializada, apresenta custo elevado, de difícil suporte com recursos ordinários do orçamento familiar. Diante da negativa administrativa de liberação do FGTS, sob o argumento de ausência de previsão específica no rol do art. 20 da lei 8.036/90, a parte ingressou com ação judicial visando a autorização judicial para o saque.
O juízo Federal reconheceu a legitimidade do pedido, entendendo que a negativa de liberação dos valores, nas circunstâncias do caso, ofenderia direitos fundamentais da autora e esvaziaria a própria função social do fundo.
3. Marco normativo do FGTS e hipóteses de saque
O FGTS é regido principalmente pela lei 8.036/90, que disciplina a formação da conta vinculada e as hipóteses de movimentação dos valores pelo trabalhador.
O art. 20 da referida lei elenca as situações em que se admite a movimentação da conta vinculada, como demissão sem justa causa, aposentadoria, aquisição de moradia própria, doenças graves, entre outras hipóteses. Em regra, a Caixa Econômica Federal interpreta esse rol de forma estritamente literal, o que leva à negatória de pedidos que não se enquadrem, de modo exato, em algum dos incisos.
Contudo, a própria natureza jurídica do FGTS - fundo de natureza trabalhista, com finalidade protetiva em relação ao trabalhador e sua família - permite uma leitura teleológica e constitucionalmente orientada do art. 20, especialmente quando estão em jogo direitos fundamentais como a saúde, a vida e a dignidade humana.
4. Fundamentos constitucionais: Saúde, maternidade e dignidade da pessoa humana
A decisão da Justiça Federal do Rio Grande do Sul dialoga diretamente com diversos comandos constitucionais, dentre os quais se destacam:
- Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88): A impossibilidade de acesso a tratamento indispensável para a realização do projeto de maternidade atinge o núcleo existencial da autora, repercutindo diretamente sobre sua dignidade.
- Direito à saúde (arts. 6º e 196 da CF/88): A saúde é direito de todos e dever do Estado, sendo garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, bem como ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
- Planejamento familiar e direito à maternidade (art. 226, § 7º, da CF/88): O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Nessa perspectiva, negar o acesso da autora ao tratamento de fertilização in vitro quando ela dispõe de recursos próprios, já depositados em sua conta vinculada do FGTS, representa restrição desproporcional ao exercício de seu direito ao planejamento familiar e à maternidade.
5. Interpretação do art. 20 da lei 8.036/90 pela Justiça Federal do RS
O ponto nuclear do precedente reside na interpretação que o juízo Federal confere ao art. 20 da lei 8.036/90.
Embora o dispositivo traga hipóteses específicas de saque, o entendimento adotado é o de que se trata de rol que não pode ser lido de forma absolutamente exaustiva quando confrontado com situações excepcionais de gravidade comprovada.
Nesse contexto, o FGTS é visto não apenas como uma reserva para perda do emprego ou aquisição de moradia, mas como um instrumento de proteção social do trabalhador.
A decisão reconhece que:
- O objetivo primordial do FGTS é dar proteção ao trabalhador em momentos de especial vulnerabilidade;
- A impossibilidade de custear tratamento de fertilização in vitro coloca a autora em situação de vulnerabilidade existencial e psicológica, dada a relevância do projeto de maternidade;
- A interpretação do art. 20 deve ser realizada de modo sistemático, harmonizando a legislação infraconstitucional com o texto da CF/88.
Com base nesses elementos, o juízo conclui que a situação concreta guarda equivalência de gravidade com as hipóteses expressamente previstas em lei, legitimando, de forma excepcional, a movimentação da conta vinculada.
6. Função social do FGTS e proteção do projeto de vida
Outro aspecto relevante do precedente é a valorização da função social do FGTS.
O fundo não se presta apenas a resguardar o trabalhador em situações econômicas específicas, mas também a proteger seu projeto de vida, especialmente quando está em jogo um direito fundamental de alta densidade, como a maternidade.
Ao permitir que a autora utilize recursos próprios, acumulados ao longo de sua vida laboral, para custear tratamento de fertilização in vitro, a Justiça Federal:
- Reforça a ideia de que o FGTS não é um "ativo morto", vinculado exclusivamente a eventos taxativamente listados;
- Concretiza a função social do fundo, permitindo que ele cumpra papel efetivo na promoção da saúde e da dignidade da trabalhadora;
- Evita que a rigidez administrativa inviabilize o exercício de direitos constitucionais.
7. Alcance do precedente e cautelas na sua aplicação
O precedente da Justiça Federal do Rio Grande do Sul não significa que qualquer tratamento médico poderá, automaticamente, ser custeado com recursos do FGTS. A própria ratio da decisão pressupõe:
- Situação concreta de relevância e gravidade, devidamente comprovada por laudos médicos;
- Demonstração de que o tratamento é essencial para a concretização de um direito fundamental (no caso, o direito à maternidade e ao planejamento familiar);
- Comprovação da incapacidade de custeio integral por meios ordinários, sem prejuízo do mínimo existencial da trabalhadora e de sua família.
Assim, a utilização do precedente exige análise cuidadosa de cada caso, a fim de evitar banalização da tese e de manter a integridade do entendimento construído pela Justiça Federal.
8. Repercussões práticas para a atuação advocatícia
Do ponto de vista prático, o precedente oferece importantes parâmetros para a advocacia em ações que visem à liberação do FGTS para custeio de tratamentos de saúde, em especial fertilização in vitro:
Em primeiro lugar, é essencial que a petição inicial descreva com precisão o quadro clínico, a indicação médica do tratamento e o impacto da negativa de custeio sobre o projeto de maternidade da autora.
Em segundo lugar, recomenda-se demonstrar, de forma clara, a compatibilidade do pedido com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da saúde e do planejamento familiar, além da função social do FGTS. Nessa linha, a negativa administrativa baseada em leitura meramente literal do art. 20 da lei 8.036/90 deve ser enfrentada como interpretação restritiva incompatível com a Constituição.
Por fim, é importante destacar na peça que a autora não pleiteia benefício gracioso, mas apenas a utilização de valores que já lhe pertencem, depositados compulsoriamente ao longo do vínculo de emprego. O Judiciário, nessa hipótese, atua para viabilizar o uso legítimo desses recursos em situação de alta relevância social e existencial.
9. Conclusão
A decisão da Justiça Federal do Rio Grande do Sul que autoriza o saque do FGTS para custear tratamento de fertilização in vitro constitui importante precedente na proteção do direito à maternidade e na concretização da função social do FGTS.
Ao reconhecer que o rol do art. 20 da lei 8.036/90 não pode ser interpretado de forma cega e descolada da Constituição, o Judiciário reafirma que a legislação infraconstitucional deve servir aos direitos fundamentais, e não o contrário.
Para a advocacia, o caso demonstra que é possível - em situações específicas, bem fundamentadas e robustamente comprovadas - buscar judicialmente a liberação de valores do FGTS para viabilizar tratamentos médicos de alto custo, sobretudo quando relacionados à realização do projeto de vida e à proteção da dignidade da pessoa humana.


