Quando o banco público aposta contra o cidadão
A "Bet da Caixa" é o maior blefe moral já feito em nome do interesse público.
quarta-feira, 12 de novembro de 2025
Atualizado às 10:29
Em O que o dinheiro não compra, o filósofo Michael Sandel, professor de Harvard, faz um alerta que deveria ecoar em todas as decisões de Estado: quando tudo passa a ser regido pela lógica do mercado, o próprio sentido moral das instituições se corrompe.
Sandel mostra que o problema não é o mercado existir, mas sim a sua invasão em esferas da vida pública que deveriam ser guiadas por valores morais, cívicos e sociais. Quando transformamos tudo em mercadoria - a educação, a saúde, o meio ambiente e até a esperança - perdemos o senso de limite e, com ele, o sentido do que é justo.
O pensamento de Sandel é fundamental para compreender o que está por trás da recente decisão da Caixa Econômica Federal de lançar sua própria plataforma de apostas esportivas, a chamada "Bet da Caixa". O argumento oficial é econômico: trata-se de um mercado bilionário, dominado por empresas privadas, e que poderia gerar lucro expressivo para o banco público.
Mas o que parece apenas uma decisão de negócios é, na verdade, uma escolha moral e política de alto impacto social. Quando o Estado decide lucrar com a aposta, ele redefine o que entende por interesse público. E esse é um caminho perigoso.
1. O dilema moral: O dinheiro pode tudo?
Michael Sandel ensina que há uma diferença essencial entre ter uma economia de mercado e viver em uma sociedade de mercado. A primeira usa o mercado como instrumento; a segunda deixa o mercado ditar o valor de tudo.
Ao criar uma "bet" estatal, a Caixa parece adotar a lógica da sociedade de mercado - onde o que dá lucro passa automaticamente a ser considerado legítimo. Mas o Estado não pode agir com a mentalidade de um cassino: seu papel não é maximizar ganhos, mas garantir direitos.
A Caixa nasceu com uma missão civilizatória: fomentar moradia, educação, saneamento, infraestrutura e inclusão financeira. Cada uma dessas áreas existe justamente para corrigir falhas do mercado, não para imitá-lo. Quando o banco público passa a lucrar com o vício e o desespero, ele abdica da sua função social e se torna mais uma empresa que aposta contra o cidadão.
O filósofo diria que esse é o momento em que "o mercado invade o domínio da moral". A aposta deixa de ser apenas entretenimento e passa a ser instrumento de política pública, o que coloca o próprio Estado na contramão de seu dever de proteção.
2. O olhar sociológico: O Estado como agente do risco
Sob o olhar da sociologia, o fenômeno das apostas online é um espelho das contradições contemporâneas: quanto maior a precariedade social, maior o apelo da promessa de enriquecimento fácil. É a dopamina do desespero, o escape da realidade.
As plataformas de apostas cresceram no vácuo da desigualdade. Seduzem sobretudo jovens, trabalhadores informais e pessoas em vulnerabilidade econômica. O que antes era lazer esporádico virou hábito cotidiano - e, em muitos casos, vício compulsivo.
Quando um banco público entra nesse mercado, o que se tem é a legitimação institucional de um problema social. O Estado, que deveria combater as causas do vício e do superendividamento, passa a lucrar com eles.
É uma inversão simbólica de enorme gravidade: a mesma Caixa que paga o Bolsa Família e financia o Minha Casa Minha Vida passa a disputar atenção com as casas de apostas que destroem o orçamento doméstico.
Não é por acaso que a Fenae - Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa já classificou a iniciativa como um "desvio preocupante da missão do banco".1 A crítica é mais do que corporativa - é institucional. Um banco que nasceu para garantir o direito à moradia não pode, ao mesmo tempo, estimular o vício que ameaça o teto das famílias brasileiras.
3. O olhar econômico: O lucro de curto prazo e o prejuízo coletivo
Economicamente, o discurso é tentador. O mercado de apostas movimenta bilhões, gera tributos e pode representar uma nova fonte de receitas. Mas essa análise ignora o custo social invisível embutido em cada aposta.
As "bets" têm sido uma das principais causas de superendividamento no Brasil. Os números crescem de forma silenciosa, mas devastadora: jovens que comprometem o salário em jogos, famílias que perdem o controle financeiro, aposentados que usam o benefício previdenciário para tentar "recuperar o que perderam ontem".
O que o Estado ganha em arrecadação, perde multiplicado em saúde pública, segurança e programas assistenciais. É o lucro moralmente invertido: o banco público vence quando o cidadão perde.
Um economista mais sensível à ética pública diria que a decisão da Caixa é um erro de horizonte: olha para o resultado imediato e ignora o impacto estrutural. O lucro é fácil, mas o preço social é alto - e pago pelo próprio contribuinte.
Quando a aposta se torna política pública, o Estado se transforma em agente do vício, e não em promotor do bem-estar. É o Estado jogando contra si mesmo.
4. A fronteira moral do Estado
O ponto central da filosofia de Sandel é o limite moral das decisões públicas. Nem tudo o que é rentável é legítimo. A função de um banco público é garantir acesso a direitos, não explorar fragilidades humanas.
Ao cruzar a fronteira e entrar no mercado das apostas, a Caixa abandona o papel de promotora do bem comum e assume o papel de empresária do azar. O argumento de que "outros bancos fariam o mesmo" não é justificativa - é a rendição da ética à lógica do mercado.
O verdadeiro Estado social não concorre com cassinos; ele os regula. O verdadeiro banco público não lucra com a perda do cidadão; ele o protege.
Conclusão: A aposta mais cara do Brasil
O caso da "Bet da Caixa" é mais do que uma questão empresarial. É um teste moral para o Estado brasileiro. Mostra o quanto estamos dispostos a negociar princípios em nome da rentabilidade.
Michael Sandel nos ensinou que há coisas que o dinheiro não deve comprar. Entre elas, a dignidade e a confiança pública. Qua
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1 https://veja.abril.com.br/coluna/radar/bet-da-caixa-e-desvio-preocupante-da-missao-do-banco-diz-fenae/. Acesso em 02/11/2025


