Responsabilização penal pós-reforma tributária
Apesar de focar na redução do contencioso e na otimização da arrecadação, a reforma tributária também trouxe reflexos penais.
quarta-feira, 12 de novembro de 2025
Atualizado às 10:29
A reforma tributária continua ganhando destaque. Com a promessa de ser uma medida "neutra" do ponto de vista arrecadatório, que contribuiria para a simplificação normativa e para a redução do contencioso tributário, o PL 68/24 ganhou tração e logo foi aprovado, convertendo-se na LC 214/25, que, dentre outras providências, instituiu o IBS - Imposto sobre Bens e Serviços, a CBS - Contribuição Social sobre Bens e Serviços e o IS - Imposto Seletivo.
Embora os efeitos de maior impacto ainda não tenham sido produzidos (dado ao fato de que somente a partir do ano de 2026 será iniciada a vigência da CBS, do IBS e do sistema de split payment, por exemplo), os primeiros passos da implementação da reforma já começaram a ser dados. Exemplo disso é o projeto-piloto, iniciado no mês de julho deste ano, no qual 66 (sessenta e seis) empresas (que em breve se tornarão quinhentas) passaram a testar e a contribuir para o aprimoramento dos sistemas e processos relativos à CBS e ao IBS.
O detalhe, é que mesmo com toda essa movimentação, pouco se tem comentado a respeito dos reflexos penais potencialmente decorrentes da reforma; e o motivo parece ser o fato de que, do ponto de vista criminal, a LC supramencionada não trouxe novidades expressas (o que pode ser constatado porque, ainda que tenha sido estabelecida a possibilidade de incidência do regime especial de fiscalização nos casos em que restar constatada a incidência do contribuinte em conduta que configure crime contra a ordem tributária e que tenha sido disciplinada a emissão da representação fiscal para fins penais, nenhuma novidade real surgiu em relação à estas matérias que, diga-se de passagem, são tratadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos, desde a lei 9.430/96).
Isso não significa, contudo, que a reforma não produzirá reflexos relevantes na esfera criminal.
Afirma-se isto, porque dentre as inovações propostas pela LC 214/25, está, como já dito, a figura do split payment.
Longe de querer exaurir o assunto, em linhas gerais, pode-se dizer que o split payment é um sistema que, através da intervenção de prestadores de serviços de pagamento eletrônico e/ou instituições operadoras de sistemas de pagamentos, possibilitará o recolhimento do tributo na liquidação da operação financeira, o que significa, em outras palavras, que ao realizar a venda de seus produtos através de funcionalidades disponibilizadas pelas entidades supramencionadas, a empresa não mais receberá o valor total da operação, mas sim e tão somente o produto líquido da venda (leia-se: o valor resultante da operação após a dedução dos tributos).
Tal sistema, irá operar em 3 modalidades.
Na primeira, que doutrinariamente vem sendo chamada de split payment superinteligente/online, o sistema fará, em tempo real, a aferição dos créditos tributários do contribuinte (a partir de dados da Receita e do Comitê Gestor) para evitar retenções tributárias indevidas/desnecessárias.
Na segunda (denominada de split payment inteligente/offline), o sistema realizará as retenções sem considerar os créditos tributários do contribuinte, que serão analisados posteriormente, em até 3 dias úteis.
Na terceira e última (split payment simplificado), o sistema fará a retenção tributária com base em uma alíquota fixa (estabelecida pela Receita e pelo Comitê Gestor), a ser definida ao lume de critérios como o setor econômico e o histórico de crédito, relegando para um segundo momento a aferição da existência de crédito ou débito residual.
A esta altura, poderia surgir a seguinte indagação: afinal, qual é o reflexo penal disso tudo?
O primeiro reflexo, é que na prática, o número de apropriações indébitas tributárias (art. 2º, II, da lei 8.137/90) tende a reduzir drasticamente, pois como o split payment impedirá que os valores devidos em razão do IBS (que "absorverá" o ICMS e o ISS) ingressem no caixa da companhia, a rigor, não haverá espaço para a apropriação indevida (ressalvada a hipótese de não serem repassados os débitos tributários residuais que os prestadores de serviços de pagamento eletrônico e/ou instituições operadoras de sistemas de pagamentos não tiverem retido em razão da utilização do split payment simplificado).
Por outro lado, o segundo reflexo se manifestará no aumento do número de crimes de sonegação (art. 1º, I, II, III e/ou IV, da lei 8.137/90), que tende a acontecer porque, sem o capital de giro propiciado pela apropriação de tributos, haverá empresas que passarão a se valer de "escrita contábil criativa" para, com isso, reduzirem a sua carga tributária e se manterem competitivas no mercado.
Para além destas ponderações, há uma outra circunstância relevante a ser sopesada.
Ela consiste no fato de que não são raros os casos em que a complexidade das regras tributárias acaba fazendo com que as vias criminais sejam acionadas para apurar se em determinado caso o contribuinte: se valeu de uma interpretação normativa razoável para, com base em planejamento elisivo, buscar a redução de sua carga tributária (elusão); desencadeou a supressão ou redução de tributo, por comportamento culposo (v.g. hipótese de erro); ou, dolosamente, perpetrou atos destinados a "suprimir ou reduzir tributo" ("sonegações").
E se há alguma dúvida a respeito da densidade normativa que impera na área tributária, ela certamente se dissipa com o estudo que foi desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação, o qual apurou que desde a promulgação da CF/88: foram editadas 45.814 normas tributárias Federais, 170.758 normas tributárias estaduais e 300.816 normas tributárias municipais, sendo que deste total de normas (517.388), em setembro de 2024, 35.996 ainda estavam em vigor.
Neste cenário e considerando que a simplificação normativa almejada pela reforma só se concretizará no ano de 2033 (eis que até lá, os contribuintes deverão realizar a apuração de seus tributos conciliando não só as regras relacionadas ao IBS, a CBS e ao IS, como também as regras atinentes ao ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins), há uma grande chance de que, a densificação da normatização fiscal, contribua (pelo menos momentaneamente) para o incremento do número de autuações que, mais tarde, poderão culminar na instauração de inquéritos e processos criminais.
Ao lume de todas estas circunstâncias, percebe-se que se de um lado, a reforma tributária contribuirá para a redução do índice de apropriações indébitas fiscais, de outro, ela poderá desencadear um aumento expressivo no número de sonegações, desencadeado, sobretudo, pelo impacto que o split payment gerará no fluxo de caixa das empresas e pelo incremento da complexidade normativa.
________________________________
BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS); cria o Comitê Gestor do IBS e altera a legislação tributária. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 02 jul. 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp214.htm. Acesso em: 23 set. 2025.
BRASIL. Gov.BR. Reforma Tributária do Consumo: portal em fase de testes com 66 empresas. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202506/reforma-tributaria-consumo-novo-portal-testes-com-66-empresas-1o-de-julho. Acesso em: 23 set. 2025.
BRASIL. Gov.BR. Piloto para testar sistemas da Reforma Tributária do Consumo - CBS tem início em 1º de julho. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2025/junho/piloto-para-testar-sistemas-da-reforma-tributaria-do-consumo-cbs-tem-inicio-em-1o-de-julho. Acesso em: 23 set. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 dez. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8137.htm. Acesso em: 23 set. 2025.
KUHN, Alex Sandro; DE ANGELIS, Ângelo. O mecanismo do split payment na reforma tributária. In: HOFFMANN, Susy Gomes (coord.). Reforma tributária: IBS e CBS na Constituição e na Lei Complementar 214/2025. Série Cursos de Extensão APET. São Paulo: APET, 2025.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Legislação criminal especial comentada: volume único. 10ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2021.
MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. 5ª ed. Barueri - SP: Atlas, 2022.
MACHADO SEGUNDO, Hugo de Britto. LC 214/2025 comentada: reforma tributária - IBS, CBS e IS. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2025.
MARTELLO, Alexandro. Reforma tributária: sistema 150 vezes maior que o Pix não vai aumentar a fiscalização, diz Receita. G1 - Economia, Brasília, 15 set. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2025/09/15/reforma-tributaria-sistema-150-vezes-maior-que-o-pix-nao-vai-aumentar-a-fiscalizacao-diz-receita.ghtml. Acesso em: 23 set. 2025.
OLENIKE, J. E.; AMARAL, G. L.; AMARAL, L. M. F.; YAZBEK, C. Quantidade de normas editadas no Brasil: 36 anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: IBPT, 2024. Disponível em: https://ibpt.org.br/estudo-quantidade-de-normas-editadas-no-brasil-2024/. Acesso em: 09 out. 2025.
PALSEN, Leandro. Tratado de direito penal tributário brasileiro. São Paulo - SP: Saraiva, 2022.
TEIXEIRA, Alexandre Alkmim. To split or not to split: o split payment como mecanismo de recolhimento do IVA e seus potenciais impactos no Brasil. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo: IBDT, v. 50, ano 40, p. 27-46, 1º quadrimestre 2022. Disponível em: https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/2139/1921. Acesso em: 28 set. 2025.



