A força dos precedentes no processo civil contemporâneo
Os precedentes como expressão da razão institucional do Judiciário e condição essencial para a segurança jurídica e a igualdade decisória no processo civil.
quinta-feira, 13 de novembro de 2025
Atualizado às 11:17
O sistema de precedentes obrigatórios inaugurado pelo CPC de 2015 representa uma das mais significativas transformações do direito processual brasileiro. Mais do que uma inovação técnica, trata-se de uma verdadeira mudança de paradigma: a substituição da cultura da decisão individual pela cultura da coerência institucional. A partir desse modelo, o juiz deixa de ser um intérprete isolado para integrar uma estrutura de raciocínio compartilhado, comprometida com a integridade e a estabilidade do direito.
Luiz Guilherme Marinoni, talvez o autor que mais profundamente se dedicou ao tema, construiu, ao longo de suas obras, uma teoria dos precedentes que ultrapassa a mera vinculação formal. Em títulos como Precedentes Obrigatórios, A Força dos Precedentes e Precedentes e Segurança Jurídica, Marinoni defende que a autoridade do precedente não decorre de hierarquia, mas da racionalidade do seu conteúdo. O precedente, em sua visão, é um ato normativo jurisdicional que traduz uma razão pública para decidir, destinada a garantir previsibilidade e igualdade de tratamento aos jurisdicionados.
A força do precedente, portanto, não é a força da toga, mas a força da razão institucional. É a capacidade do raciocínio jurídico de projetar estabilidade, de gerar confiança e de servir como ponto de partida para a solução de casos futuros análogos. Quando um tribunal define a ratio decidendi de uma controvérsia e a ele se atribui caráter obrigatório, o que se está protegendo não é apenas o resultado de um julgamento, mas a integridade do sistema jurídico como um todo. Essa compreensão, como insiste Marinoni, tem fundamento ético e político, pois decorre da exigência democrática de que o Poder Judiciário atue de modo consistente e responsável perante a sociedade.
Nesse contexto, o art. 926 do CPC, ao impor aos tribunais o dever de manter sua jurisprudência estável, íntegra e coerente, não cria uma simples diretriz administrativa: consagra uma obrigação institucional de fidelidade ao direito. Decidir de modo divergente, sem justificativa racional e transparente, é romper a confiança pública na justiça. Por isso, o precedente deve ser visto como instrumento de isonomia substancial e de contenção do voluntarismo judicial. O juiz permanece livre para interpretar, mas essa liberdade é uma liberdade responsável, delimitada pela necessidade de preservar a coerência do ordenamento e o respeito à história argumentativa das decisões anteriores.
Essa concepção também redefine o papel da advocacia. O advogado contemporâneo não atua apenas com base na literalidade da lei, mas a partir de uma hermenêutica dos precedentes. Sua tarefa é identificar a ratio decidendi, demonstrar a distinção ou a similitude entre casos, e participar ativamente da construção argumentativa que assegura a integridade do direito. Argumentar por precedentes é argumentar por coerência. É compreender que cada decisão judicial, quando bem fundamentada e observada em sua essência, contribui para o fortalecimento do sistema e para a credibilidade da jurisdição.
Marinoni adverte que a aplicação dos precedentes não reduz o juiz a um repetidor de fórmulas. O precedente não é dogma, mas parâmetro racional de decisão. A técnica do distinguishing, por exemplo, é expressão da liberdade de decidir dentro do sistema, permitindo ao magistrado reconhecer quando um caso concreto apresenta particularidades que justificam solução distinta. O que não se admite é a ruptura arbitrária com o raciocínio consolidado, pois isso comprometeria o princípio da segurança jurídica e transformaria a jurisdição em um exercício pessoal de poder.
A introdução dos precedentes obrigatórios, longe de significar engessamento, promove uma forma superior de liberdade: a liberdade dentro da razão. Ao exigir que o juiz observe a coerência institucional, o CPC não impõe submissão, mas responsabilidade. E é essa responsabilidade que confere legitimidade à jurisdição. O cidadão tem direito de saber que o mesmo caso será decidido da mesma forma, independentemente da pessoa do julgador. Essa previsibilidade, que é também expressão de igualdade, constitui o verdadeiro núcleo democrático do processo civil contemporâneo.
Assim, ao refletir sobre a força dos precedentes, Marinoni demonstra que a função do processo não é apenas resolver conflitos, mas produzir e preservar o direito. Cada precedente bem construído é um passo em direção à racionalidade do sistema, e cada decisão que o respeita é um gesto de fidelidade ao Estado de Direito. Nesse sentido, o precedente é menos um eco do passado e mais uma promessa de futuro - um compromisso com a estabilidade das instituições e com a confiança dos cidadãos na justiça.
Por tudo isso, a teoria dos precedentes no processo civil brasileiro representa uma das maiores conquistas dogmáticas das últimas décadas. É a consolidação de um modelo de jurisdição que não se guia pela vontade individual, mas pela razão pública; que não se apoia na autoridade do cargo, mas na autoridade do argumento. E é nessa visão de direito - racional, previsível e responsável - que se reconhece a grande contribuição de Marinoni à ciência processual contemporânea.
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Referências
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 3. ed. São Paulo: RT, 2022.
MARINONI, Luiz Guilherme. A Força dos Precedentes. 2. ed. São Paulo: RT, 2021.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes e Segurança Jurídica. 3. ed. São Paulo: RT, 2024.
MARINONI; ARENHART; MITIDIERO. Curso de Processo Civil. 6. ed. São Paulo: RT, 2024.


