Grave dano à coletividade e racionalidade penal
Proposta de reconstrução do conceito de "grave dano à coletividade" (art. 12, I da lei 8.137/90), apresentando o teste de gravidade fiscal como parâmetro para incidência da majorante.
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
Atualizado às 09:57
A compreensão e a definição do que se deve entender por grave dano à coletividade, para fins de aplicação da causa de aumento de pena prevista no art. 12, inciso I, da lei 8.137/1990, permanece como um dos pontos menos explorados pela doutrina penal brasileira. A jurisprudência preencheu o espaço interpretativo delineando os contornos do conceito em meio a um cenário de discricionariedade judicial ampliada e de progressiva administrativização do Direito Penal, no qual parâmetros originalmente fazendários passaram a ser utilizados como critérios de valoração penal.
São ilustrativas as compreensões que se alternavam em reconhecer que o "expressivo valor do tributo" poderia ser considerado como "fundamento idôneo para amparar a majoração", bem como que para a incidência da causa de aumento o valor sonegado deveria superar aquele previsto na portaria 320/08 da PGFN (R$ 1.000.000,00) ou que o grave dano deveria ser equivalente ao conceito de crédito prioritário definido pela Fazenda local.
A 3ª seção do STJ uniformizou a jurisprudência no julgamento do REsp 1.849.120/SC. O caso versava sobre condenação pelo crime contra a ordem tributária previsto no art. 1º, inciso I, da lei 8.137/1990, em que o Tribunal de origem aplicara a causa de aumento de pena, sob o fundamento de que a conduta teria causado "grave dano à coletividade".
A controvérsia jurídica submetida ao STJ residia na forma de aferição desse "grave dano": se mediante critérios qualitativos, fundados na análise do impacto social e econômico efetivamente produzido pelo delito, ou por critérios quantitativos, vinculados ao valor do tributo suprimido e sua proporção em relação à arrecadação estatal.
No julgamento do recurso especial adotou-se um critério objetivo, fundado em parâmetros fiscais, com o propósito de reduzir a margem de subjetividade judicial na aplicação da majorante. Para sustentar essa orientação, o relator invocou três fundamentos principais: (i) o decreto estadual catarinense 2.949/09, que define como "crédito tributário prioritário" aquele cujo montante supera determinado valor; (ii) a necessidade de uniformidade e previsibilidade nas decisões penais tributárias; e (iii) a função da majorante como instrumento de censura agravada a condutas que ostentem relevância econômica e social expressiva.
A partir desses elementos, concluiu o ministro relator que a adoção dos parâmetros de crédito prioritário, definidos em âmbito administrativo-fiscal, conferiria objetividade e segurança à aplicação da majorante, evitando discricionariedade judicial e desigualdade entre contribuintes. No caso concreto, reconheceu-se a configuração do grave dano à coletividade, uma vez que o valor sonegado - aproximadamente R$ 3,4 milhões - ultrapassava o limite do crédito tributário considerado prioritário pela legislação estadual.
A ratio decidendi do acórdão estrutura-se em três eixos interpretativos. O primeiro é a busca de objetividade normativa, partindo da premissa de que o conceito de "grave dano" é indeterminado e, portanto, deve ser concretizado com base em parâmetros preexistentes no ordenamento. O segundo consiste na adoção de um padrão fazendário como medida de equivalência penal, ao entender que o crédito tributário de maior relevância para a Administração equivale, no campo sancionatório, ao dano coletivo referido na lei penal. Por fim, o terceiro eixo revela um pragmatismo institucional, ao privilegiar a praticidade administrativa e a previsibilidade do sistema punitivo fiscal, ainda que isso implique certa simplificação conceitual da norma penal, afastando o julgador de decidir com base em discricionariedade forte.
A vinculação proposta no julgamento do REsp 1.849.120/SC decorre de uma tentativa de transpor um critério administrativo para o plano penal, sob o justo argumento de conter o arbítrio judicial. Essa escolha metodológica, contudo, gera um paradoxo hermenêutico: embora parta de uma preocupação com a teoria da decisão - ao buscar limitar a discricionariedade do julgador - termina por ampliar o poder punitivo estatal, ao importar um critério econômico-fiscal, quantitativo e expansivo, desvinculado da demonstração empírica do dano social efetivo.
Ademais, a decisão promove uma confusão entre esferas normativas distintas. O conceito de "crédito prioritário" pertence ao domínio da Administração Tributária e destina-se à organização da cobrança executiva de créditos fiscais, não à valoração penal da gravidade da conduta. Essa impropriedade hermenêutica torna-se ainda mais evidente quando se observa, no plano empírico, a absoluta desconexão entre o critério administrativo adotado e a realidade econômico-fiscal dos entes federativos. O parâmetro fixo de "crédito prioritário", pensado apenas para fins de cobrança fazendária, ignora as diferenças estruturais entre os orçamentos estaduais e produz resultados arbitrários, como se verá a partir de um exemplo concreto.
O cenário econômico do Estado do Pará demonstra com clareza a inadequação do critério nominal. A CFFO - Comissão de Fiscalização Financeira e Orçamentária informou, em audiência pública realizada em 25/2/25, que a receita estadual cresceu 125% desde 2018, alcançando, em 2024, R$ 58,5 bilhões de receita bruta e R$ 45,4 bilhões líquida. Desse total, R$ 37,1 bilhões correspondem a receitas próprias - impostos e taxas - e R$ 19,4 bilhões a transferências federais, refletindo autonomia fiscal crescente. Assim, a receita própria do Estado corresponde a cerca de dois terços (66%), enquanto os repasses Federais representam 34%.
No tocante ao ICMS, a arrecadação mensal, que em 2019 era de cerca de R$ 1 bilhão, superou atualmente R$ 2 bilhões por mês, totalizando R$ 24,3 bilhões apenas em 2024. Segundo dados divulgados pela SEPLAD e pelo jornal O Liberal (15/1/25), o Estado arrecadou R$ 16,9 bilhões em 2021, R$ 19,9 bilhões em 2022 (somente ICMS) , R$ 46,7 bilhões em 2023, R$ 55,5 bilhões em 2024 e, nos primeiros 14 dias de 2025, já havia recolhido R$ 2,7 bilhões em tributos o que demonstra certa solidez das finanças.
Nesse contexto, o valor atualmente definido como crédito tributário prioritário no Estado do Pará, conforme o decreto Estadual 2.747/22, é de 180.000 (cento e oitenta mil) UPF-PA. Considerando o valor unitário da UPF-PA - Unidade Padrão Fiscal do Estado do Pará fixado em R$ 4,813 pela portaria SEFA 708/24, o montante totaliza R$ 864.234,00 (oitocentos e sessenta e quatro mil, duzentos e trinta e quatro reais) - quantia absolutamente inexpressiva sob a perspectiva macroeconômica e fiscal.
Quando confrontado com a receita líquida estadual de R$ 45,4 bilhões, esse valor representa apenas 0,0019%; e, em relação à receita própria de R$ 37,1 bilhões, corresponde a 0,0023%. Tais proporções, estatisticamente desprezíveis, revelam completa incapacidade do valor do crédito prioritário produzir qualquer repercussão econômica ou social relevante que possa ser denominada de grave dano à coletividade. A desproporção torna-se ainda mais evidente quando o valor é comparado à arrecadação anual de ICMS, que atingiu R$ 24,3 bilhões em 2024: o crédito prioritário equivale a meros 0,0036% dessa cifra - menos do que a arrecadação de um único dia de atividade fiscal ordinária.
Diante desses dados, é insustentável, sob qualquer critério racional de lesividade, admitir que um valor de tal magnitude possa configurar "grave dano à coletividade" para fins de majoração de pena. A aplicação automática desse parâmetro, desprovida de correlação empírica com o impacto social efetivo, traduz não apenas um erro metodológico, mas uma violação ao próprio princípio da proporcionalidade penal, ao deslocar o foco do desvalor do fato para um número meramente contábil, desvinculado da realidade material da lesão.
Ainda mais grave é o fato de que o valor de referência - em regra calculado por unidade padrão fiscal (UPFPA, etc.) - é volátil, dependente de variações inflacionárias e de políticas monetárias locais, definidas pela Secretaria Fazendária. Com o tempo, uma conduta que não representava grave dano pode vir a sê-lo apenas por força da atualização monetária ou de uma nova política fiscal, fenômenos absolutamente alheios ao fato e ao dolo do agente. O inverso também é verdadeiro. Essa oscilação demonstra o caráter artificial e exógeno do critério, que rompe o vínculo causal entre conduta e resultado e fere a exigência de contemporaneidade do juízo de gravidade. A majoração da pena passaria, assim, a depender de fatores macroeconômicos e não do desvalor do fato, violando frontalmente o princípio da irretroatividade da lei penal mais severa e a própria estrutura de imputação subjetiva.
Do ponto de vista formal, há ainda uma falha de hierarquia normativa. Atribuir a um ato administrativo ou a uma lei estadual o poder de definir a incidência de uma causa de aumento prevista em lei Federal é subverter a hierarquia das normas e ofender a reserva de lei penal da União, prevista no art. 22, inciso I, da CF/88. A gravidade penal não pode ser regionalizada nem delegada à Fazenda Pública, sob pena de fragmentar a unidade da ordem jurídica e comprometer a isonomia.
A crítica foi formulada com notável precisão por Lenio Luiz Streck, ao demonstrar que portarias e atos administrativos - a exemplo da portaria 75/12 do Ministério da Fazenda - não possuem densidade normativa suficiente para fixar limites de insignificância ou definir a intensidade da lesividade em matéria penal.
Tais normas foram criadas apenas para fins de gestão fazendária, e não para mensurar o dano social. Utilizá-las como parâmetro penal significa terceirizar a cidadania, transformando critérios técnicos do Executivo em definições de política criminal. O problema da administrativização do Direito Penal reside no fato de que quando o Judiciário se ancora em portarias e tabelas fiscais para definir o alcance de tipos penais, abdica de sua função contramajoritária e entrega a interpretação do delito à burocracia estatal. É o fenômeno em que a crença no número substitui o raciocínio jurídico e a justiça cede lugar à contabilidade.
Essa crítica é reforçada pela pirâmide kelseniana, conforme explica Norberto Bobbio, ao afirmar que "as normas inferiores derivam das superiores" e que "é a norma fundamental que dá unidade a todas as outras, fazendo das normas esparsas um conjunto coerente e hierarquicamente ordenado". No campo penal, essa hierarquia é uma garantia de liberdade: impede que o poder punitivo seja ampliado por decisões administrativas ou por mutações econômicas que escapam ao controle democrático. Assim, do mesmo modo que uma portaria do Ministério da Fazenda não pode redefinir o princípio da insignificância, tampouco uma Portaria da Secretaria da Fazenda Estadual pode estabelecer o que seja "grave dano à coletividade" para fins de agravamento de pena em crime tributário.
A consequência hermenêutica é evidente: a gravidade deveria ser aferida à luz do próprio sistema penal, mediante prova concreta da repercussão social do fato. A mera superação de determinado valor nominal não autoriza o agravamento da sanção. É necessário comprovar empiricamente que a conduta produziu, de forma contemporânea aos fatos, prejuízo fiscal ou econômico de dimensão coletiva - por exemplo, comprometendo políticas públicas essenciais, afetando a execução orçamentária ou gerando distorções relevantes na livre concorrência. Não por outro motivo, o art. 12, I da lei 8.137/1990 prevê a incidência da causa de aumento quando a sonegação fiscal "ocasionar grave dano à coletividade".
Para garantir coerência e objetividade, seria recomendável adotar-se um critério de verificação baseado na teoria racional da prova, como, por exemplo, um TGF - Teste de Gravidade Fiscal, composto por cinco dimensões analíticas: (a) aferição proporcional do valor sonegado em relação à receita corrente líquida ou tributária própria; (b) demonstração de impacto real sobre a execução de serviços públicos essenciais; (c) verificação de eventual distorção concorrencial ou vantagem ilícita no mercado; (d) contemporaneidade dos dados utilizados, vedando-se a retroação de índices monetários; e (e) fundamentação judicial específica, evitando dupla valoração dos mesmos elementos.
Esse modelo não cria novo tipo penal, mas fornece parâmetros racionais para a aplicação da causa de aumento, preservando a legalidade, a proporcionalidade e a individualização da pena. Nesse sentido, inclusive, o TGF proposto também é capaz de fornecer soluções adequadas e proporcionais às diferentes Fazendas (Federal, Estadual e municipal), sem que, para tanto, seja necessário recorrer-se a critérios tão voláteis, quanto a definição do valor das Unidades Padrão Fiscal.
A propósito, o TGF - Teste de Gravidade Fiscal encontra respaldo nos parâmetros positivados pela LC 101/00 (lei de responsabilidade fiscal), que explicita, em diversos dispositivos, situações concretas de risco à coletividade decorrentes de desequilíbrio fiscal - especialmente nos arts. 1º, §1º, 9º, §4º, 11 e 14. Esses dispositivos permitem afirmar que o grave dano à coletividade somente se caracteriza quando a sonegação fiscal gera risco real ou efetivo abalo ao equilíbrio entre receitas e despesas, impede o cumprimento das metas fiscais, provoca contingenciamento de despesas públicas ou equivale, em impacto orçamentário, às renúncias de receita que demandam compensação formal.
Aplicando-se o TGF ao caso concreto, observa-se que o valor definido como crédito prioritário no Estado do Pará (R$ 864.234,00 - oitocentos e sessenta e quatro mil e duzentos e trinta e quatro reais) representa apenas 0,0019% da receita líquida e 0,0023% da receita própria estadual, conforme dados oficiais, sendo incapaz, portanto, de gerar qualquer risco mensurável de desequilíbrio fiscal, de contingenciamento de despesas ou de descumprimento de metas quadrimestrais. Do ponto de vista setorial, o montante corresponde a 0,0036% da arrecadação anual de ICMS, sendo muito inferior à média de arrecadação diária que gira em torno de 66 milhões de reais, proporções estatisticamente irrelevantes e absorvidas sem qualquer repercussão orçamentária.
Sob todos os vetores do teste - equilíbrio fiscal, contingenciamento, metas e equivalência a renúncia relevante - a equiparação do grave dano à coletividade ao valor do crédito prioritário não ultrapassa nenhum deles. O valor é fiscalmente irrelevante, socialmente neutro e penalmente atípico para fins de majoração.
Reconduzido a esse plano hermenêutico, o conceito de "grave dano à coletividade" deixa de ser um número e recupera sua natureza de conceito jurídico aberto, a ser preenchido segundo a prova e a razão pública. O Direito Penal retoma sua autonomia frente à economia e à administração, e a majoração de pena passa a depender de fatos, não de índices.
Cumpre registrar que a solução metodológica ventilada pelo TGF - Teste de Gravidade Fiscal encontra respaldo direto na jurisprudência consolidada dos tribunais superiores quanto à dosimetria da pena, segundo a qual toda exasperação superior a 1/6, o reconhecimento de causas de aumento ou de diminuição, de circunstâncias agravantes ou atenuantes e a negativação de vetores do art. 59 do CP exigem fundamentação concreta e idônea.
Essa exigência decorre não apenas da teoria racional da prova, mas também da teoria da decisão judicial, ambas voltadas a assegurar segurança jurídica, previsibilidade e isonomia na aplicação da pena. O TGF, ao propor parâmetros objetivos e auditáveis para o reconhecimento do "grave dano à coletividade", insere-se harmonicamente nessa tradição jurisprudencial, reforçando o dever de fundamentar de modo racional e empírico as decisões judiciais em matéria penal.
Em conclusão, a utilização do crédito prioritário como critério de equiparação viola a hierarquia normativa, afronta a reserva legal penal, introduz arbitrariedade econômica no juízo de culpabilidade e desvirtua o programa normativo da lei. A demonstração de "grave dano à coletividade" deve decorrer de prova empírica, contemporânea e contextual, e não de presunções derivadas de atos administrativos ou leis estaduais. Essa leitura - além de constitucional e sistematicamente coerente - harmoniza-se com o entendimento jurisprudencial dominante de que a individualização da pena deve observar padrões objetivos, com baixa margem de discricionariedade e motivação clara, concreta e controlável, em homenagem ao princípio da legalidade, à racionalidade da prova e à igualdade de tratamento de todos os jurisdicionados.
Somente assim o Direito Penal preserva sua vocação garantista: proteger bens jurídicos reais, com rigor técnico e proporcionalidade, sem se submeter ao fetiche burocrático dos números.


