Imunidade do ITBI e limites da competência tributária municipal
O artigo demonstra que o art. 156 da Constituição consagra imunidade tributária e não mera não incidência, limitando o poder dos municípios de tributar e avaliar bens em integralização de capital.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:19
Introdução
A correta compreensão da natureza jurídica das limitações ao poder de tributar é essencial para a aplicação coerente do Direito Tributário. Entre as hipóteses que frequentemente geram confusão interpretativa está o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis, o ITBI, cuja regra do art. 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal, utiliza a expressão "não incide". Muitos autores e, sobretudo, administrações municipais interpretam essa redação como mera hipótese de não incidência. No entanto, a leitura sistemática da Constituição, a doutrina tributária e a jurisprudência consolidada do STF revelam que estamos diante de uma verdadeira imunidade tributária, uma limitação constitucional da competência municipal, e não de simples ausência de fato gerador.
Compreender essa distinção não é mero exercício acadêmico. Tem consequências práticas profundas, pois determina o limite de atuação dos municípios na exigência e na fiscalização do ITBI, especialmente nas operações de integralização de capital social. Se o legislador constituinte retirou expressamente essa hipótese do campo de incidência, o ente municipal não pode pretender tributar nem reavaliar o valor de bens constitucionalmente imunes.
2. Imunidade e não incidência: distinções conceituais
Na clássica formulação de Geraldo Ataliba, a imunidade tributária é "uma não incidência constitucionalmente qualificada", isto é, uma situação em que a própria Constituição retira a competência tributária do ente federativo, impedindo a incidência do tributo mesmo que o fato gerador se realize no mundo concreto. Já a não incidência simples ocorre quando o fato praticado não se enquadra na hipótese de incidência definida pela lei, sem interferência direta da Constituição.
Roque Antonio Carrazza, ao tratar do tema, esclarece que "a imunidade não é favor fiscal, mas verdadeira norma negativa de competência", pois, ao invés de dispensar o pagamento de um tributo devido, o que seria próprio da isenção, ela "impede o nascimento da obrigação tributária, limitando o poder de tributar do Estado" (CARRAZZA, Imunidades Tributárias, Malheiros, 2019).
Portanto, enquanto a não incidência se refere a uma ausência natural de hipótese tributável, a imunidade é uma ausência imposta pelo texto constitucional, que veda a tributação ainda que o fato, em tese, se enquadrasse na descrição legal de um tributo.
3. A regra do art. 156, § 2º, I da Constituição Federal
Dispõe a Constituição:
"Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
II - transmissão 'inter vivos', a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição;
§ 2º O imposto previsto no inciso II:
I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil."
A expressão "não incide" levou alguns a sustentar que o dispositivo não trata de imunidade, mas de simples não incidência. Essa interpretação literal, porém, contraria o sistema constitucional e a teleologia do dispositivo. A Constituição Federal é quem define as competências tributárias e, ao estabelecer que o ITBI não incide em determinadas hipóteses, ela não está apenas descrevendo ausência de fato gerador, mas retirando dos municípios a própria competência para tributar esses atos.
Como ensina Paulo de Barros Carvalho, a imunidade "atua sobre a competência tributária, e não sobre a norma de incidência", sendo, portanto, "norma constitucional de estrutura que limita o poder de tributar" (Curso de Direito Tributário, Saraiva, 2021). Assim, o art. 156, § 2º, I, da Constituição não é simples norma de exclusão do campo de incidência, mas um comando constitucional impeditivo da tributação, caracterizando, inequivocamente, imunidade tributária.
4. A posição consolidada do STF
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica em reconhecer que a regra do art. 156, § 2º, I, consagra uma imunidade tributária. No RE 796.376/SC (Tema 796 da repercussão geral), o Tribunal fixou a seguinte tese:
"A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado." (Rel. min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. 5/8/2020, DJe 25/8/2020)
Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes foi categórico ao afirmar que "a Constituição de 1988 imunizou a integralização do capital por meio de bens imóveis, não incidindo o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito". É inequívoco, portanto, que o Supremo tratou o dispositivo como imunidade e não como hipótese de não incidência.
Mais recentemente, no RE 1.495.108/SP (repercussão geral reconhecida em 5/11/2024), o STF reafirmou essa compreensão, ao declarar que o art. 156, § 2º, I, "contempla duas hipóteses de imunidade do ITBI: (i) a transmissão para realização de capital social e (ii) as transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica". O voto condutor, proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, destacou ainda que a exceção referente à "atividade preponderante" aplica-se apenas à segunda hipótese, e não à integralização de capital, consolidando a tese de que a integralização de bens ao capital social é imune, independentemente da atividade da empresa.
5. A aplicação prática pelos Tribunais Estaduais
A doutrina constitucional do Supremo tem sido amplamente acolhida pelos tribunais estaduais, que vêm reconhecendo a natureza imunitória da norma e repelindo as tentativas municipais de reavaliar bens imunes.
No TJ/GO, o desembargador Sebastião Luiz Fleury, relator da apelação cível 5033353-94.2023.8.09.0136 (Comarca de Rialma), decidiu que:
"Na incorporação de imóvel ao patrimônio de pessoa jurídica, para integralização do capital social, não há incidência do ITBI (art. 156, § 2º, inciso I, da CF). A imunidade da operação de integralização de capital pelo sócio é incondicionada, independentemente do valor do imóvel ser o declarado no imposto de renda ou o valor de mercado." (TJ/GO, 7ª Câmara Cível, julgado em 2025)
No mesmo sentido, o TJ/MG, na remessa necessária 5000974-04.2022.8.13.0111, relatada pelo desembargador Alberto Vilas Boas, reafirmou que:
"A imunidade do ITBI prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal alcança a integralização de bens imóveis ao capital social, desde que não haja excedente destinado à formação de reserva de capital." (TJ/MG, 1ª Câmara Cível, j. 27/5/2025)
Essas decisões afastam de modo definitivo a tese municipalista de que o dispositivo seria mera não incidência. Ao contrário, reconhecem que a imunidade tem base constitucional direta, o que exclui a possibilidade de o município exercer juízo de valor sobre o ato ou sobre o montante integralizado.
6. Efeitos práticos da qualificação como imunidade
Reconhecer a natureza de imunidade tributária tem implicações diretas:
- O município não tem competência para tributar essas operações, ainda que desconfie do valor atribuído pelo contribuinte.
- Não há espaço para "avaliação administrativa" ou cobrança com base em valor venal de mercado, pois isso importaria em invasão de competência constitucionalmente limitada.
- A fiscalização municipal restringe-se à verificação formal da presença dos pressupostos da imunidade, como a destinação do bem à integralização de capital e a inexistência de reserva de capital.
- Qualquer tentativa de tributar o ato viola a hierarquia constitucional e sujeita o lançamento à nulidade absoluta, por ofensa ao art. 146, inciso II, da Constituição, que reserva à lei complementar a definição de limitações ao poder de tributar.
Em última análise, o erro de tratar a imunidade como simples não incidência legitima práticas arbitrárias de avaliação municipal, travestidas de legalidade, mas que afrontam a supremacia da Constituição e a segurança jurídica das relações patrimoniais.
7. Conclusão
A Constituição de 1988 estabeleceu um sistema tributário fundado na repartição de competências e na proteção de valores estruturais como a livre iniciativa e a segurança jurídica. Ao prever, no art. 156, § 2º, I, que o ITBI "não incide" sobre a integralização de capital, o constituinte não descreveu uma hipótese fora do campo tributável, mas retirou expressamente do poder municipal a competência para tributar tais operações. Trata-se, portanto, de imunidade tributária, e não de simples não incidência.
Essa distinção, reconhecida pela doutrina de Geraldo Ataliba, Roque Carrazza e Paulo de Barros Carvalho, e reafirmada pela jurisprudência do STF e dos Tribunais de Justiça estaduais, tem efeito vinculante sobre a atuação municipal. Sendo o ato constitucionalmente imune, não cabe à prefeitura avaliar, tributar ou questionar a operação, sob pena de violar a supremacia da Constituição e as limitações do poder de tributar.
Em síntese, a imunidade do ITBI na integralização de capital é cláusula constitucional de proteção à livre iniciativa e à capitalização empresarial, e sua desconsideração pelo fisco municipal representa não apenas erro técnico, mas ofensa direta à ordem constitucional tributária.
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Referências bibliográficas e jurisprudenciais
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 2018.
CARRAZZA, Roque Antonio. Imunidades Tributárias. São Paulo: Malheiros, 2019.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 156, § 2º, I.
STF, Recurso Extraordinário nº 796.376/SC, Tema 796, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 25/8/2020.
STF, Recurso Extraordinário nº 1.495.108/SP, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 05.11.2024.
TJ/GO, Apelação Cível nº 5033353-94.2023.8.09.0136, Rel. Des. Sebastião Luiz Fleury, 7ª Câmara Cível, julgado em 2025.
TJ/MG, Remessa Necessária nº 5000974-04.2022.8.13.0111, Rel. Des. Alberto Vilas Boas, 1ª Câmara Cível, julgado em 27/5/2025.


