A cadeia de custódia digital como expressão do garantismo jurídico
O estudo analisa a cadeia de custódia digital como instrumento do garantismo jurídico, limitando o poder punitivo e assegurando a validade e integridade da prova penal.
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
Atualizado às 11:40
Introdução
O garantismo jurídico surge como reação à expansão arbitrária do poder punitivo e à fragilidade das garantias individuais frente ao Estado. Desenvolvida por Luigi Ferrajoli, essa teoria sustenta que a legitimidade do sistema penal depende da submissão do poder de punir a limites legais e racionais, fundados na presunção de inocência, no devido processo legal e na prova obtida de forma lícita.
Nesse contexto, a cadeia de custódia, especialmente a digital, assume papel central. Não se trata de mera formalidade técnica, mas de um instrumento epistêmico de controle da verdade processual, assegurando que as provas analisadas em juízo sejam efetivamente as mesmas apreendidas na investigação.
O problema de pesquisa que orienta este estudo consiste em compreender em que medida a cadeia de custódia digital representa uma manifestação contemporânea do garantismo jurídico, funcionando como limite racional e jurídico ao poder punitivo. O objetivo geral é demonstrar que a observância da cadeia de custódia constitui condição de validade constitucional da prova penal, e sua inobservância implica violação ao paradigma garantista e ao próprio Estado Democrático de Direito.
A metodologia adotada é qualitativa e teórica, com base na análise doutrinária e jurisprudencial, tomando como referência o julgamento do STJ no AgRg no RHC 143.169/RJ (Operação Open Doors), que declarou ilícitas provas digitais em razão da ausência de documentação da cadeia de custódia.
1. O garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli: Limites e racionalidade do poder punitivo
O garantismo jurídico, formulado por Luigi Ferrajoli em Diritto e ragione, nasce como reação ao Direito Penal autoritário e como reconstrução racional do Estado de Direito. Trata-se de uma teoria normativa que impõe ao poder punitivo um sistema de limites lógicos e jurídicos, assegurando que a punição só seja legítima se precedida de uma prova lícita e racionalmente obtida.
Ferrajoli estabelece uma distinção fundamental entre direito e poder: enquanto o poder é sempre uma força potencialmente arbitrária, o direito é a forma institucional de sua limitação. Assim, o garantismo não busca maximizar a punição, mas minimizar a violência estatal, mediante a subordinação estrita da persecução penal às regras do devido processo legal.
No plano processual, o garantismo impõe que toda condenação dependa de provas obtidas e valoradas sob critérios de legalidade e verificabilidade. A verdade processual não é um dado empírico absoluto, mas o resultado de um método controlável, racional e transparente - daí a centralidade da prova lícita e da cadeia de custódia como instrumentos de racionalização do juízo penal.
2. A evolução histórica das garantias da defesa e o aperfeiçoamento técnico da prova
A história do processo penal é, em essência, a história da luta contra o arbítrio. Da Inquisição medieval, fundada na confissão e na prova secreta, até o processo penal constitucional contemporâneo, houve uma transição do poder absoluto de punir para o poder juridicamente condicionado.
Nesse percurso, a defesa foi paulatinamente fortalecida, e as garantias processuais - como o contraditório, a publicidade e a necessidade de prova racional - passaram a constituir condições de legitimidade da punição. A cadeia de custódia, embora formalmente positivada apenas em 2019, é herdeira direta desse movimento.
Ela não foi uma criação ex novo, mas o aperfeiçoamento técnico da racionalidade probatória: sua função é assegurar a mesmidade e a autenticidade dos vestígios, permitindo à defesa controlar a origem, o manuseio e a integridade das provas apresentadas. Em termos históricos, representa o prolongamento natural da exigência iluminista de que ninguém seja condenado com base em provas que não possam ser verificadas ou contraditadas.
3. A cadeia de custódia digital como limite epistêmico ao poder punitivo
No ambiente digital, a volatilidade dos dados, a facilidade de alteração e a dependência de registros eletrônicos ampliam o risco de manipulação. Assim, a cadeia de custódia digital torna-se o instrumento técnico de preservação da verdade processual, garantindo que os vestígios apreendidos sejam idênticos aos analisados.
O STJ, no julgamento do AgRg no RHC 143.169/RJ, reconheceu que a ausência de documentação da cadeia de custódia invalida a prova e suas derivações, por impossibilitar o controle sobre sua origem e integridade.
Essa decisão ilustra o caráter garantista do instituto: ao exigir rastreabilidade e documentação, o Judiciário reafirma que a confiança na atividade estatal não substitui a necessidade de prova legalmente válida. O controle da cadeia de custódia é, portanto, um limite epistêmico e jurídico imposto ao poder punitivo, funcionando como uma barreira racional contra o arbítrio e a presunção de veracidade da prova estatal.
4. A inversão indevida do ônus da prova e a crise garantista no processo penal
Em certos precedentes, observa-se a tendência de exigir da defesa a comprovação da quebra da cadeia de custódia ou a demonstração de prejuízo efetivo. Tal exigência, contudo, é incompatível com o garantismo jurídico, pois transfere ao acusado um ônus que pertence exclusivamente ao Estado.
O garantismo impõe que o ônus da prova da integridade recai sobre quem produz e apresenta a prova, jamais sobre quem a contesta. O acusado não tem meios técnicos, nem dever jurídico, de provar a adulteração do vestígio - até porque essa impossibilidade decorre da própria falta de documentação estatal.
A exigência de comprovação do prejuízo viola a lógica das nulidades processuais. No caso da cadeia de custódia, o prejuízo é presumido, pois a ausência de rastreabilidade destrói a confiabilidade da prova. A prova irregular não é apenas inválida, mas epistemicamente inexistente: não pode servir de fundamento a qualquer juízo de culpa.
Portanto, exigir da defesa a demonstração do dano equivale a inverter a presunção de inocência e romper o equilíbrio entre as partes - o que Ferrajoli qualificaria como regressão a um direito penal autorreferido, em que o Estado volta a ser juiz de si mesmo.
5. O garantismo como fundamento da cadeia de custódia no Estado Democrático de Direito
A cadeia de custódia, longe de ser uma inovação burocrática, é a tradução técnica contemporânea do garantismo jurídico. Ela concretiza os princípios ferrajolianos da legalidade, verificabilidade e racionalidade da prova, assegurando que o exercício do poder punitivo seja controlável e justificável à luz do direito.
Ferrajoli adverte que, em um Estado Democrático de Direito, não é a eficiência repressiva que legitima o sistema penal, mas a sua capacidade de autoimpor limites racionais. A cadeia de custódia é, portanto, um desses limites: um freio epistêmico que impede que a prova se converta em mero ato de fé estatal.
Quando o Estado não comprova a integridade do vestígio, o garantismo exige sua exclusão do processo, pois admitir a prova duvidosa é admitir o exercício do poder punitivo sem fundamento racional. Em última instância, a cadeia de custódia é o ponto de convergência entre tecnologia e garantismo, uma expressão moderna da velha máxima de Beccaria e Ferrajoli: melhor absolver um culpado do que condenar um inocente.
Considerações finais
A análise permitiu constatar que a cadeia de custódia digital é mais do que um requisito técnico - é uma garantia fundamental derivada do paradigma garantista. Sua função é resguardar a racionalidade do processo penal e impedir que o poder punitivo se exerça à margem da prova legalmente constituída.
A ausência de cadeia de custódia representa uma falha estrutural que contamina a integridade do sistema de justiça penal, tornando inviável a aferição da verdade processual. À luz de Ferrajoli, o controle da prova é o primeiro e mais decisivo controle do poder punitivo: onde não há legalidade e verificabilidade, não há legitimidade.
Conclui-se, assim, que a cadeia de custódia é o instrumento garantista por excelência, assegurando que a punição só se realize dentro dos limites do direito, sob critérios de racionalidade, transparência e integridade - fundamentos indispensáveis de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
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