Quando o erro é da banca: Ilegalidades na correção de concursos
Aspectos práticos e pontuais dos limites da discricionariedade técnica das bancas examinadoras e o reconhecimento das ilegalidades pelo Poder Judiciário.
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
Atualizado às 11:40
1. Introdução
O concurso público constitui expressão concreta dos princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência na Administração Pública (art. 37, caput, CF/88). Trata-se de instrumento constitucional de acesso democrático aos cargos e funções públicas, razão pela qual sua realização deve observar rigorosamente os postulados da legalidade, isonomia e publicidade.
A experiência prática - seja por já ter sido candidato, examinador de provas e hoje advogado nesta área - revela um crescente número de ilegalidades nas provas discursivas, especialmente em certames de carreiras jurídicas, em que o juízo avaliativo das bancas examinadoras frequentemente se distancia dos parâmetros legais e constitucionais. Nesses casos, a intervenção do Poder Judiciário não se confunde com revisão de mérito, mas com o controle de legalidade dos atos administrativos que regem o procedimento concursal.
A Constituição e a jurisprudência reconhecem que a correção de prova subjetiva, embora esteja dentro das características de um ato administrativo discricionário, é dizer, mérito administrativo da banca examinadora, porém, submete-se aos princípios da motivação, legalidade, publicidade e vinculação ao edital.
2. A consolidação jurisprudencial do STF
O STF estabeleceu importantes balizas hermenêuticas sobre os limites e a legitimidade da intervenção judicial em matéria de concurso público. A jurisprudência da Corte Suprema sedimentou-se no sentido de que o controle de legalidade exercido pelo Poder Judiciário não configura invasão ao mérito administrativo, desde que demonstrada violação objetiva aos princípios constitucionais ou aos critérios editalícios.
No julgamento do ARE 814.379-AgR (relator ministro Roberto Barroso, 1ª turma, DJe 19/12/14), o STF consolidou o entendimento de que "o exame judicial da legalidade e abusividade dos atos administrativos não implica invasão do mérito administrativo".
A decisão reafirmou que o Poder Judiciário não pode substituir a banca examinadora na avaliação técnica do conteúdo das respostas, mas está autorizado - e, mais do que isso, obrigado - a sindicar a legalidade do procedimento avaliativo.
Essa orientação foi reforçada em diversos julgados posteriores, nos quais a Suprema Corte destacou que a discricionariedade técnica das bancas examinadoras não constitui carta branca para atuar à margem dos parâmetros legais. A autonomia técnica das bancas examinadoras encontra limite na estrita observância aos critérios objetivos fixados no edital, no dever de motivação dos atos avaliativos e na vinculação aos espelhos de correção previamente divulgados.
Nesse contexto, o STF distinguiu com clareza duas situações:
(a) o mérito administrativo, representado pela liberdade técnica da banca para valorar o conteúdo das respostas dentro dos parâmetros legais, esfera insindicável pelo Judiciário; e
(b) a legalidade do ato administrativo, que engloba a observância ao edital, aos espelhos de correção, ao dever de motivação e aos princípios constitucionais, esfera plenamente sindicável pela jurisdição.
Portanto, a intervenção judicial legítima não se caracteriza quando o candidato simplesmente discorda da nota atribuída, mas quando demonstra, de forma objetiva, que houve:
(i) erro material grosseiro na correção;
(ii) desrespeito ao espelho de correção previamente divulgado;
(iii) ausência ou insuficiência de motivação;
(iv) violação aos critérios editalícios; ou
(v) manifesta ilegalidade ou arbitrariedade na avaliação.
3. O dever de motivação e a vinculação administrativa
O dever de motivação é corolário do princípio da legalidade e requisito essencial de validade dos atos administrativos (art. 50 da lei 9.784/99). Na correção das provas subjetivas, a ausência de fundamentação clara ou a adoção de justificativas genéricas inviabiliza o exercício do contraditório e da ampla defesa, direitos constitucionalmente assegurados aos candidatos (art. 5º, LV, CF/88).
O TRF-1 já reconheceu a nulidade de correção genérica que não enfrentou os argumentos do candidato:
"É genérica a fundamentação adotada pela banca examinadora [...] não tendo enfrentado os pontos impugnados e os argumentos expostos pela candidata em seu recurso." (TRF1, AMS 0026029-87.2012.4.01.3400, Rel. Des. Souza Prudente, 5ª Turma, julgado em 11/12/2019).
Corrigir sem motivar é negar transparência e, por consequência, afastar o controle social e jurisdicional sobre a legalidade do certame. A motivação não constitui mera formalidade burocrática, mas garantia instrumental da legalidade, permitindo que o candidato e o Poder Judiciário verifiquem a correção objetiva do procedimento avaliativo.
4. O espelho de correção e a natureza vinculada do ato avaliativo
A divulgação do espelho de correção e do padrão de resposta transforma a avaliação em ato vinculado. A partir do momento em que a banca examinadora estabelece e publica os critérios de correção, estes passam a integrar o bloco de legalidade do certame, vinculando não apenas os candidatos, mas a própria administração.
O STJ consolidou esse entendimento no AgInt no RMS 60.971/RS (relator ministro Benedito Gonçalves, 1ª turma, 8/4/24), reconhecendo que critérios genéricos e ausência de padrão de resposta publicado violam os princípios da publicidade e da motivação. Segundo a Corte Superior, o espelho de correção não é mera recomendação, mas parâmetro vinculante que deve ser rigorosamente observado no processo avaliativo.
O TJ/PE também já reconheceu a ilegalidade de atribuição de nota zero quando a resposta do candidato atendia ao espelho: "Tal situação caracteriza erro grosseiro e contrariedade ao próprio padrão de resposta elaborado pela banca." (TJPE - MS Cível nº 0066380-65.2023.8.17.2001 - 2ª Vara da Fazenda Pública da Capital).
Na mesma linha, o TJ/AP entendeu que deveria ser atribuída ao menos pontuação parcial à candidata que respondeu minimamente ao quesito, configurando violação ao princípio da legalidade a ausência total de pontuação (MS 0032102-48.2022.8.03.0001 - 1ª vara da fazenda pública de Macapá).
5. Ilegalidades comuns em provas subjetivas
A experiência jurídica demonstra a recorrência de determinadas práticas ilegais por parte das bancas examinadoras na condução de provas discursivas. Tais ilegalidades, quando demonstradas, autorizam a intervenção judicial para restabelecimento da legalidade e da isonomia.
5.1. Erro grave no enunciado da questão dissertativa
A formulação inadequada do enunciado, contendo ambiguidades, contradições internas ou premissas fáticas incorretas, compromete a possibilidade de resposta adequada pelo candidato. Quando o erro no enunciado induz o candidato a erro ou impossibilita resposta tecnicamente correta, configura-se vício insanável que autoriza a anulação da questão.
No RMS 49.896/RS (relator ministro Og Fernandes, 2ª turma, julgado em 20/4/17), o STJ declarou a nulidade de questão dissertativa em concurso para assessor do Ministério Público do Rio Grande do Sul que continha erro no enunciado, trocando os institutos "saída temporária" por "permissão de saída", ambos com regência nos arts. 120 a 125 da lei de execução penal.
A banca examinadora e o tribunal de origem reconheceram expressamente a existência do erro no enunciado. O ministro Og Fernandes foi enfático ao consignar que "é dever das bancas examinadoras zelarem pela correta formulação das questões, sob pena de agir em desconformidade com a lei e o edital, comprometendo, sem sombra de dúvidas, o empenho realizado pelos candidatos durante quase toda uma vida". O acórdão destacou que, se a própria banca reconhece o erro, não se pode ignorar tal constatação sob o argumento simplório de que o erro não influiria na resposta do candidato.
A decisão reafirmou que a nulidade reconhecida está em sintonia com a tese firmada pelo STF no RE 632.853/CE, pois diante de evidente ilegalidade, o Poder Judiciário não apenas pode, mas deve atuar para restabelecer a legalidade do certame. O controle jurisdicional, nessa hipótese, não adentra o juízo técnico sobre a dificuldade da questão, mas verifica a existência de vício objetivo que compromete a própria exigibilidade de resposta adequada.
5.2. Ausência de espelho adequado com pontuação destacada
A ausência de espelho de correção detalhado, com discriminação objetiva dos critérios de pontuação para cada item da resposta, viola frontalmente os princípios da publicidade, motivação e vinculação administrativa. Sem a prévia divulgação dos parâmetros avaliativos, torna-se impossível ao candidato conhecer os critérios que orientarão a correção, inviabilizando o exercício do contraditório e da ampla defesa.
No RMS 49.896/RS, o STJ determinou que a banca deve divulgar, a tempo e modo, para fins de publicidade e eventual interposição de recurso, cada critério considerado, devidamente acompanhado, no mínimo, do respectivo valor da pontuação ou nota obtida pelo candidato, bem como das razões ou padrões de respostas que as justifiquem. As informações constantes dos espelhos se referem à motivação do ato administrativo consistente na atribuição de nota ao candidato.
O STJ destacou que a motivação deve ser apresentada anteriormente ou concomitante à prática do ato administrativo, pois caso se permita a motivação posterior, dar-se-ia ensejo para que fabriquem ou forjem motivações para burlar eventual impugnação ao ato. Essa ilegalidade foi especificamente reconhecida em diversos julgados que anularam correções realizadas sem observância de espelhos adequadamente discriminados.
5.3 Ausência de padrão de respostas na correção da prova
Aqui, o próprio CNJ analisou e julgou procedimento administrativo (PCA de 0006497-25.2021.2.00.0000) envolvendo o XLVIII Concurso Público para juiz substituto do TJ/RJ, no qual candidatos questionavam a falta de divulgação dos espelhos das provas subjetivas.
A decisão destacou que o Estado do Rio de Janeiro possui legislação específica (lei estadual 1.919/1991) que obrigava a divulgação dos gabaritos com respostas resolvidas e justificativas de todas as questões no prazo de até dez dias. O CNJ reconheceu que, embora seus precedentes anteriores dispensassem tal exigência, a existência de lei estadual específica impede o afastamento de sua aplicação, sob pena de exercício indevido do controle de constitucionalidade.
A decisão alinhou-se à jurisprudência recente do STJ, que passou a exigir a publicação dos espelhos das provas escritas antes ou concomitantemente com a divulgação dos resultados. Essa publicação é considerada essencial para garantir a motivação do ato administrativo e a observância aos princípios da publicidade e da ampla defesa. O STJ tem entendido que os candidatos devem ter acesso ao padrão de resposta esperado, à pontuação de cada critério e às notas atribuídas, viabilizando o exercício pleno do direito ao contraditório e à ampla defesa na esfera administrativa.
Reconhecendo que havia prática administrativa reiterada em sentido contrário, o CNJ aplicou regime de transição previsto nos arts. 23 e 24 da lei de introdução às normas do Direito brasileiro, julgando improcedente o pedido de anulação das provas já realizadas.
Contudo, determinou a divulgação efetiva do espelho da prova subjetiva, a reabertura dos prazos para vista e recursos, e a obrigatoriedade de divulgação dos espelhos nas etapas subsequentes do concurso. Fixou-se tese vinculante no sentido de que o TJ/RJ deve divulgar os espelhos de prova em todos os concursos públicos que realizar, observando a lei estadual 1.919/1991 e os princípios constitucionais da transparência e motivação dos atos administrativos.
5.4. Nota zero com resposta parcialmente correta
Trata-se, possivelmente, da ilegalidade mais grave e recorrente nas provas discursivas. A atribuição de nota zero a candidato que atendeu, ainda que parcialmente, aos critérios do espelho de correção configura erro grosseiro e violação objetiva ao princípio da vinculação administrativa.
O TJ/PE, no MS Cível 0066380-65.2023.8.17.2001, enfrentou precisamente essa situação, reconhecendo a ilegalidade manifesta da atribuição de nota zero quando a resposta do candidato contemplava elementos do espelho de correção. A decisão destacou que "tal situação caracteriza erro grosseiro e contrariedade ao próprio padrão de resposta elaborado pela banca", determinando a reavaliação da prova com observância ao espelho.
Em outra oportunidade, já neste ano de 2025, o TJ/PE também assim entendeu nos autos do processo de 0080209-45.2025.8.17.2001, sobretudo quando a própria banca ao publicar o edital e o padrão de respostas definitivo, institui um sistema de correção proporcional para os quesitos discursivos, que previam notas entre 0,00 e o valor máximo, de modo que este sistema vincula a banca examinadora:
"4.3) - Ilegalidade na atribuição de nota zero: A concessão de nota ZERO (a mais baixa na escala) a uma resposta que contém, de forma objetiva, parte do conteúdo exigido, ignora o próprio critério de pontuação proporcional estabelecido no edital. Tal conduta excede os limites da discricionariedade e configura erro grosseiro e manifesta violação ao princípio da legalidade."
Do mesmo modo, também o TJ/AP, no MS 0032102-48.2022.8.03.0001, determinou a atribuição de pontuação parcial à candidata que havia respondido minimamente ao quesito, por entender que a ausência total de pontuação violava o princípio da proporcionalidade e da legalidade. A Corte estadual afirmou que, uma vez demonstrado que a resposta contemplou, ainda que de forma incompleta, os elementos do padrão de correção, a atribuição de nota zero constitui ilegalidade objetiva passível de correção judicial.
5.5. Questão elaborada em dissonância à jurisprudência dominante
A exigência de resposta em desacordo com a jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores, com texto expresso de lei ou com entendimento doutrinário amplamente majoritário configura ilegalidade que autoriza a anulação da questão ou a aceitação de resposta divergente do gabarito oficial.
Em concursos para carreiras jurídicas, é inadmissível que a banca examinadora considere incorreta resposta fundamentada em jurisprudência pacífica do STF ou do STJ, ou que exija posicionamento contrário a súmula vinculante ou texto legal inequívoco. Tal prática viola o princípio da razoabilidade e compromete a própria finalidade do certame, que é selecionar candidatos tecnicamente preparados.
O STJ enfrentou essa questão de forma paradigmática no julgamento do RMS 73.285/RS (relator ministro. Teodoro Silva Santos, 2ª turma, j. 11/6/24). No caso concreto, a Corte Superior reconheceu a ilegalidade da recusa de atribuição de pontuação a candidata cuja resposta estava em harmonia com precedente obrigatório do próprio STJ (Tema 872).
A decisão ressaltou que tal recusa "nega a competência constitucional desta Corte Superior para uniformizar a interpretação da lei federal, ofende as normas legais que estruturam o sistema de precedentes no direito brasileiro e viola a norma editalícia que prevê expressamente a jurisprudência dos Tribunais Superiores no conteúdo programático de avaliação". O acórdão reafirmou que, embora o Judiciário não possa substituir a banca examinadora, a inobservância de precedente obrigatório constitui ilegalidade manifesta que autoriza a intervenção judicial.
6. Considerações Finais
Como visto, o controle judicial das provas subjetivas de concursos públicos constitui instrumento essencial de reafirmação do Estado de Direito e da supremacia da CF.
A consolidação jurisprudencial operada pelo STF e pelos Tribunais Superiores estabeleceu balizas claras para a atuação do Poder Judiciário, preservando a autonomia técnica das bancas examinadoras sem, contudo, permitir que essa autonomia se transforme em arbitrariedade.
A análise das ilegalidades mais recorrentes em provas discursivas demonstra que a intervenção judicial não representa ameaça à separação dos Poderes, mas garantia de que o concurso público - símbolo máximo da igualdade republicana e do acesso democrático à função pública - se realize sob a égide da transparência, da motivação e da estrita legalidade.
As decisões judiciais analisadas convergem no sentido de que a discricionariedade técnica da banca examinadora encontra limite incontornável na observância aos critérios objetivos fixados no edital, no dever de motivação dos atos avaliativos e na vinculação aos espelhos de correção. Demonstrada violação objetiva a qualquer desses parâmetros, legitima-se a atuação judicial corretiva.
Em síntese, a intervenção judicial em matéria de prova discursiva não visa questionar a capacidade técnica das bancas examinadoras nem substituir seu juízo avaliativo, mas assegurar que o princípio da legalidade não seja relativizado sob o pretexto da autonomia técnica. O que se protege, em última análise, é o próprio sistema constitucional de acesso aos cargos públicos, fundado na meritocracia transparente e na igualdade de oportunidades.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 out. 2025.
BRASIL. Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 out. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE nº 814.379-AgR. Relator: Min. Roberto Barroso. 1ª Turma. DJe: 19 dez. 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no RMS 60.971/RS. Relator: Min. Benedito Gonçalves. 1ª Turma. Julgado em: 08 abr. 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS 49.896/RS. Relator: Min. Og Fernandes. 2ª Turma. Julgado em: 20 abr. 2017. DJe: 02 mai. 2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS 73.285/RS. Relator: Min. Teodoro Silva Santos. 2ª Turma. Julgado em: 11 jun. 2024. DJe: 19 jun. 2024.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. AMS 0026029-87.2012.4.01.3400. Relator: Des. Souza Prudente. 5ª Turma. Julgado em: 11 dez. 2019.
PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça. MS Cível nº 0066380-65.2023.8.17.2001. 2ª Vara da Fazenda Pública da Capital. Julgado em: 2023.
AMAPÁ. Tribunal de Justiça. MS nº 0032102-48.2022.8.03.0001. 1ª Vara da Fazenda Pública de Macapá. Julgado em: 2022.


