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A aplicação da teoria do processo estrutural à reorganização do sistema de propriedade intelectual na era digital

O artigo sustenta que a teoria do processo estrutural pode enfrentar o estado de desconformidade do sistema de propriedade intelectual, reorganizando-o diante dos novos desafios.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Atualizado às 13:05

1. Introdução

As transformações tecnológicas e a digitalização das formas de criação e difusão cultural têm imposto novos desafios ao sistema de propriedade intelectual brasileiro. A legislação autoral, ainda fortemente ancorada na lei 9.610/1998, mostra-se insuficiente para lidar com as novas formas de exploração econômica das criações intelectuais, como os serviços de streaming, as plataformas digitais e os mecanismos de inteligência artificial generativa.

Na última semana de outubro, o ministro Dias Toffoli, do STF, abriu audiência pública no âmbito do Tema 1.403 de repercussão geral, que discute os limites constitucionais na interpretação de contratos antigos de direitos autorais. A audiência foi convocada em razão da ação movida pelos artistas Roberto Carlos e Erasmo Carlos, na qual se questiona se os acordos firmados antes do surgimento das novas tecnologias de difusão musical permanecem válidos ou se devem ser reinterpretados à luz das transformações trazidas pelo ambiente digital.

Trata-se de julgamento emblemático, pois evidencia o descompasso entre a realidade contemporânea e a estrutura vigente. As lacunas existentes deixam a parte mais fraca da relação (autores, artistas e compositores) em situação de vulnerabilidade, o que reforça a necessidade de repensar o sistema de tutela autoral. A discussão que se estabelece no Supremo revela, portanto, um estado de desconformidade estruturada, nos termos propostos por Didier Jr., Zaneti Jr. e Oliveira (2020), que exige uma reorganização profunda do sistema jurídico e institucional de proteção dos direitos de propriedade intelectual de modo a compatibilizá-lo com as transformações tecnológicas e com os valores constitucionais de proteção à criação e à cultura.

Foi justamente diante desse contexto e da relevância da audiência pública que surgiu a proposta de elaboração deste artigo, que busca refletir, sob a perspectiva da teoria do processo estrutural, sobre os caminhos possíveis para uma reforma sistêmica da proteção dos direitos intelectuais no Brasil, especialmente no campo autoral, onde as mudanças tecnológicas impactam a eficácia das garantias fundamentais dos criadores.

2. O Processo Estrutural e o Estado de Desconformidade

Segundo a teoria em tela, o problema estrutural caracteriza-se pela existência de um estado de desconformidade estruturada, entendido como uma situação de desorganização sistêmica e permanente, ainda que não necessariamente ilícita, que rompe com o estado ideal de conformidade e exige uma intervenção reestruturante (Didier Jr. et al., 2020). Essa concepção permite identificar, no contexto da propriedade intelectual, uma série de disfunções que ultrapassam a esfera de violações individuais, evidenciando uma crise estrutural que compromete a efetividade dos direitos fundamentais de criação, inovação e acesso à cultura.

De modo geral, o sistema brasileiro de propriedade intelectual apresenta um estado de desconformidade generalizado, que se manifesta tanto em sua dimensão normativa quanto institucional. O sistema de patentes, por exemplo, revela-se ineficiente em virtude da morosidade e da insuficiência estrutural do INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial, retardando o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Essa lentidão, aliada ao baixo número de políticas públicas integradas, cria um ambiente de insegurança que desestimula a inovação e acentua o distanciamento do Brasil em relação a outros sistemas internacionais de proteção.

No campo dos direitos autorais, foco central deste texto, o estado de desconformidade  também é sensível. A legislação vigente, concebida sob um paradigma analógico, não acompanhou as transformações tecnológicas que redefiniram os meios de criação e circulação das obras intelectuais. A discussão em curso no Supremo Tribunal Federal (Tema 1.403), sobre a validade e a interpretação de contratos antigos de cessão e exploração de obras diante das novas tecnologias de distribuição, como os serviços de streaming, ilustra com clareza a defasagem normativa e a ausência de mecanismos atualizados de proteção.

Soma-se a esse cenário a ausência de regulamentação sobre as obras produzidas com o auxílio de inteligência artificial, que desafiam os conceitos tradicionais de autoria e titularidade. Ainda que existam iniciativas legislativas em tramitação, como o PL 2.338/23 e os debates promovidos pela Comissão Especial de Inteligência Artificial, tais esforços não se dedicam especificamente à problemática dos direitos autorais diante da inteligência artificial. A inexistência de parâmetros legais seguros quanto à proteção, exploração e atribuição de obras geradas ou assistidas por IA evidencia a insuficiência do sistema jurídico para lidar com fenômenos culturais e tecnológicos emergentes, comprometendo a segurança jurídica de criadores e exploradores econômicos.

Essa insuficiência coloca os autores e criadores em posição de vulnerabilidade frente às grandes plataformas e conglomerados culturais, permitindo que a parte mais fraca da relação sofra restrições em seus direitos fundamentais de criação e remuneração justa, gerando ainda um possível efeito secundário: a desmotivação por parte dos autores para a criação de novas obras e, por consequência, o enfraquecimento cultural no cenário brasileiro.

Tais fatores revelam a urgência de uma reorganização normativa e institucional, que alcance não apenas a lei 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais), mas também a Lei nº 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial) e demais normas. A reestruturação deve envolver, ainda, o fortalecimento e modernização dos órgãos responsáveis pela gestão e fiscalização desses direitos, em especial o INPI, no âmbito da propriedade industrial, de modo a garantir maior eficiência e integração entre as políticas de inovação e de proteção intelectual.

Portanto, no atual cenário, o processo estrutural parece oferecer uma via apta a enfrentar o problema, permitindo reconhecer juridicamente a existência desse estado de desconformidade e estabelecer, de forma coordenada e progressiva, medidas de reestruturação que restabeleçam o equilíbrio entre a exploração econômica, a tutela dos direitos fundamentais de propriedade intelectual e o incentivo à criação e à inovação no país.

3. As Características do Processo Estrutural e Pertinência

Como dispõe a teoria apresentada pelos seus autores, o processo estrutural se caracteriza por: (a) pautar-se na discussão sobre um problema estrutural; (b) buscar uma transição para um estado ideal de coisas; (c) desenvolver-se em um procedimento bifásico; (d) apresentar flexibilidade procedimental; e (e) privilegiar a consensualidade.

Esses elementos se apresentam pertinentes ao contexto da propriedade intelectual, especialmente na proteção dos direitos autorais, cuja crise de conformidade demanda um tratamento que ultrapasse a lógica tradicional de resolução de litígios isolados.

O primeiro aspecto, a discussão sobre o problema estrutural, impõe reconhecer que as disfunções existentes no sistema não resultam apenas de lacunas normativas pontuais, mas de um modelo institucional defasado, incapaz de acompanhar a velocidade da inovação tecnológica e das novas formas de exploração das obras intelectuais. A partir desse reconhecimento, torna-se possível avançar para o segundo elemento: a busca pela transição a um estado ideal de coisas, que consiste na reorganização normativa e administrativa do sistema de proteção intelectual, de modo a compatibilizar as garantias constitucionais dos autores e criadores com as exigências econômicas e tecnológicas contemporâneas.

O procedimento bifásico do processo estrutural também se mostra perfeitamente ajustado a essa realidade. Na primeira fase, ocorre o reconhecimento judicial do estado de desconformidade e na segunda fase, desenvolve-se o plano de reestruturação, que pode incluir a participação de especialistas, representantes do Estado, entidades de classe e setores econômicos envolvidos, garantindo uma construção plural e tecnicamente orientada das soluções.

A flexibilidade procedimental, outro traço marcante do processo estrutural, é indispensável para permitir a adoção de medidas progressivas e adaptáveis, que possam acompanhar a constante mutação tecnológica. Essa flexibilidade autoriza o emprego de instrumentos atípicos, como audiências públicas e planos de cumprimento escalonado, que asseguram uma execução eficiente e dialogada das decisões judiciais.

Por fim, a consensualidade assume papel essencial na implementação de medidas estruturais, pois a solução dos conflitos que permeiam a propriedade intelectual depende da harmonização de interesses diversos: autores, intérpretes, produtores, plataformas digitais, Estado e sociedade civil. A construção consensual de políticas e normas permite alcançar maior legitimidade e efetividade nas transformações institucionais, promovendo equilíbrio entre segurança jurídica, inovação tecnológica e tutela dos direitos fundamentais.

4. Multiplicidade de Interesses e a Busca de Harmonização

O processo estrutural, conforme apontam Didier Jr., Zaneti Jr. e Oliveira (2020), tem como uma de suas características centrais a presença de múltiplos interesses que precisam ser considerados no processo de reorganização de um sistema em desconformidade. No campo autoral, essa multiplicidade é especialmente visível, pois o sistema envolve autores, intérpretes, produtores, editoras, plataformas digitais, entidades de gestão coletiva, consumidores e o próprio Estado. Cada um desses sujeitos exerce um papel na cadeia criativa e produtiva, e todos são afetados, em maior ou menor medida, pelas lacunas e ineficiências do regime jurídico atual.

A função do processo estrutural, nesse contexto, é promover a harmonização entre esses interesses distintos, garantindo que nenhum deles prevaleça de forma absoluta em detrimento dos demais. Essa harmonização deve se traduzir em um equilíbrio entre a proteção jurídica conferida aos autores, a viabilidade econômica da exploração das obras intelectuais e o acesso democrático da sociedade à cultura. A estrutura procedimental proposta por Didier Jr. et al. (2020) permite a construção desse equilíbrio por meio de uma atuação coordenada entre os diversos atores e instituições envolvidas, com base em critérios de razoabilidade, proporcionalidade e efetividade dos direitos fundamentais.

A complexidade das relações no campo autoral exige, portanto, que as soluções estruturais sejam construídas de modo dialogado e progressivo, de forma a compatibilizar os valores constitucionais da liberdade de criação, da valorização do trabalho intelectual e da difusão cultural. Nesse sentido, o processo estrutural não apenas organiza a resposta jurídica, mas também contribui para o restabelecimento de um ambiente de cooperação institucional e de estabilidade normativa, essencial para que o sistema de propriedade intelectual possa cumprir sua função social e constitucional de promoção do desenvolvimento cultural e tecnológico do país (Didier Jr. et al., 2020, p. 115-118).

5. Conclusão

A aplicação da teoria do processo estrutural ao sistema de propriedade intelectual brasileiro permite reconhecer que há um problema de desconformidade normativa e institucional cuja superação exige um esforço coordenado entre os diversos atores do sistema jurídico, legislativo e administrativo. O modelo proposto por Didier Jr., Zaneti Jr. e Oliveira oferece uma base teórica sólida para compreender e enfrentar disfunções complexas e multifatoriais, como as que se verificam na tutela dos direitos autorais, especialmente diante das transformações tecnológicas que desafiam a legislação vigente.

A adoção de um processo estrutural no âmbito da propriedade intelectual possibilita uma abordagem mais racional e participativa para a reorganização do sistema, permitindo que a proteção dos direitos dos criadores e inventores seja efetiva e compatível com os valores constitucionais da liberdade de criação, da inovação e do acesso à cultura. Esse modelo é particularmente útil para lidar com as novas formas de exploração das obras intelectuais, como as plataformas digitais, os serviços de streaming e as produções assistidas por inteligência artificial, situações que evidenciam a necessidade de constante atualização e adaptação institucional.

É importante destacar, contudo, que a teoria desenvolvida por Didier Jr., Zaneti Jr. e Oliveira (2020) é muito mais ampla do que a forma como foi aqui abordada. O presente trabalho tem apenas o intuito de aplicar, de modo introdutório e reflexivo, parte das ideias centrais do processo estrutural ao contexto específico da propriedade intelectual, com ênfase na proteção autoral. O artigo original dos autores, de natureza teórica e densa, merece leitura integral e atenta, especialmente por aqueles que se interessam em compreender os fundamentos mais profundos dessa construção doutrinária e suas potenciais aplicações em outras áreas do direito público e privado.

Assim, reconhece-se que este é um artigo breve e de natureza contributiva, cujo propósito é estimular o debate jurídico e acrescentar elementos à reflexão coletiva sobre os caminhos possíveis para tornar o sistema de proteção dos direitos intelectuais mais robusto, atualizado e eficiente. É fundamental que a comunidade acadêmica, os juristas e os formuladores de políticas públicas aprofundem o estudo sobre a aplicação da teoria estrutural nesse campo, a fim de propor soluções concretas e coerentes com a realidade tecnológica e social contemporânea.

Em última análise, espera-se que o aprimoramento da tutela jurídica da propriedade intelectual, em especial dos direitos autorais, fortaleça o ambiente de criação, inovação e desenvolvimento científico e cultural no Brasil, assegurando que o país possa se destacar cada vez mais como referência em produção cultural, tecnológica e científica, sem abrir mão da efetividade dos direitos fundamentais que garantem e valorizam o trabalho intelectual.

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Referências bibliográficas

DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n. 75, jan./mar. 2020.

FISS, Owen. Two Models of Adjudication. In: DIDIER JR., Fredie; JORDÃO, Eduardo Ferreira (coord.). Teoria do Processo: Panorama Doutrinário Mundial. Salvador: Juspodivm, 2008.

ARENHHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (orgs.). Processos Estruturais. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2019.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Ministro Dias Toffoli abre audiência pública sobre direitos autorais na era digital. Brasília, 2023. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/ministro-dias-toffoli-abre-audiencia-publica-sobre-direitos-autorais-na-era-digital/. Acesso em: 05 nov. 2025.

Indhira Batista Santos Soares

Indhira Batista Santos Soares

Advogada, mestre em Propriedade Intelectual pela Academia do INPI, especialista em Direito e Assistência Jurídica pelo CDH da Universidade de Coimbra e diretora de integração da Associação Paulista da Propriedade Intelectual no Distrito Federal.

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