Entre a regulação e a emoção: STF publica acórdão com (re)leitura do art. 19 do Marco Civil da Internet
O Supremo redefine a responsabilidade das plataformas digitais, ao julgar o artigo do MCI, e cria um novo e incerto cenário regulatório no país.
terça-feira, 11 de novembro de 2025
Atualizado em 10 de novembro de 2025 14:19
A história da regulação da internet no Brasil é marcada por um constante esforço de equilíbrio entre a liberdade e a responsabilidade. Desde que o MCI - Marco Civil da Internet entrou em vigor em 2014, o país buscou instituir um modelo de governança digital que, inspirado em princípios como a neutralidade e a liberdade de expressão, também delimitasse a responsabilidade dos intermediários tecnológicos.
O art. 19 do MCI foi um marco nesse sentido: ao exigir ordem judicial específica para que provedores de aplicação respondessem por conteúdo de terceiros, a legislação sinalizou um modelo de proteção à livre manifestação, ao mesmo tempo em que impunha freios à censura privada e ao arbítrio das plataformas. Passados mais de dez anos da promulgação da lei 12.965/14, o STF julgou os Temas 533 e 987, reconhecendo a inconstitucionalidade parcial do art. 19.
A Corte entendeu que a exigência de ordem judicial prévia, como regra geral e única para responsabilização civil dos provedores, implicaria uma proteção insuficiente a bens jurídicos de alta relevância constitucional, como a dignidade humana, a democracia e a integridade das instituições.
O resultado deste julgamento, todavia, é um novo - e, talvez, confuso - marco interpretativo. O STF cria um regime híbrido de responsabilidade, em que a necessidade de ordem judicial convive com deveres de cuidado, presunções de responsabilidade e obrigações de autorregulação, que transformam profundamente o papel das plataformas digitais.
O Tribunal, em evidente esforço hermenêutico, passa a exercer uma função quase regulatória, construindo normas gerais sobre moderação, notificação, publicidade e representação no país.
Esse movimento do Supremo - de substituir o silêncio legislativo por uma estrutura normativa de condutas - é, em parte, compreensível pelo contexto de omissão do Congresso Nacional, por exemplo, na discussão do PL 2.630/20. De outro lado, esse movimento revela, também uma inflexão perigosa: Ao adotar um regime de "inconstitucionalidade progressiva", o Tribunal reconhece uma espécie de estado de omissão parcial do legislador e, ao mesmo tempo, cria regras que se assemelham a um DSA brasileiro - Digital Services Act brasileiro, sem a legitimidade do processo legislativo.
Como observei no artigo Moderação de Conteúdo pelas Mídias Sociais, a prática da moderação é inevitável e necessária, mas deve permanecer submetida a limites jurídicos claros e democráticos. Quando o Judiciário assume o papel de regulador, ainda que movido pela boa intenção de proteger direitos fundamentais, corre-se o risco de substituir o debate institucional e técnico plural por uma jurisdição de urgência, moldada pelas circunstâncias do momento.
A decisão do STF chega tardiamente. O dispositivo de lei que agora se reputa parcialmente inconstitucional vigora desde 2014. A demora de mais de uma década para sua análise cria um paradoxo: o Tribunal julga o tema no auge da polarização digital, quando as paixões políticas e sociais estão mais acirradas e o ambiente público, mais inflamado. E como bem sabemos, quando a emoção toma parte no julgamento, a objetividade dá lugar à subjetividade.
Ao afirmar a "inconstitucionalidade progressiva" do art. 19, o STF reconhece um vício de origem em uma norma que, por dez anos, serviu de pilar para o equilíbrio entre liberdade e responsabilidade na rede. O problema não é o reconhecimento da evolução tecnológica - necessária e legítima -, mas o contexto emocional e político em que essa virada interpretativa ocorre. Uma tese que deveria ser produto de reflexão técnica sobre regulação da comunicação digital, nasce sob o impacto de um ambiente de desinformação e de desconfiança institucional.
Evidentemente que a decisão do STF não transitou em julgado, portanto, não tem aplicação imediata. O próprio STF modulou seus efeitos, restringindo-os ao futuro, sendo que o STJ, em recente julgado (AgInt na TutPrv no AREsp 2049359/SP), já advertiu para a manutenção do regime vigente do art. 19 até o trânsito em julgado da decisão. Trata-se de um ponto essencial para a segurança jurídica. Enquanto a decisão não se tornar definitiva, as plataformas permanecem sujeitas ao regime atual - o mesmo que, aliás, tem servido de referência internacional, inclusive no debate europeu sobre o Digital Services Act.
O julgamento do STF sobre o art. 19 do Marco Civil da Internet é um divisor de águas no constitucionalismo digital brasileiro. Ele amplia o campo de atuação dos provedores, reforça deveres de prevenção e impõe obrigações de transparência e representação. Mas inaugura um tempo de insegurança regulatória, em que o limite entre a tutela jurisdicional e a intervenção normativa se torna tênue.
A autorregulação, um dos instrumentos que defendo como essencial para a moderação responsável, corre o risco de ser substituída por um modelo de heterorregulação judicial. O desafio que se impõe, agora, é encontrar um ponto de equilíbrio entre a legítima preocupação do Supremo com a proteção de direitos e o respeito aos processos institucionais da democracia.
Em síntese, o STF parece reconhecer a importância de uma regulação mais robusta, mas o faz em um momento em que o calor das paixões pode comprometer a frieza da razão jurídica. Talvez seja o preço de um tempo em que a urgência supera a prudência - e o Judiciário, pressionado pelas circunstâncias, assume papéis que o legislador, por omissão, deixou vagos.
Caio Miachon Tenório
Advogado e sócio no escritório Lee, Brock, Camargo Advogados, Mestre e Doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.



