Os (RIF) no processo penal: Limites e fragilidades probatórias
O artigo analisa o RIF como instrumento de inteligência, não de prova, e aponta que seu uso sem controle judicial viola direitos fundamentais e compromete a legalidade do processo penal.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2025
Atualizado às 16:38
1. Introdução
O enfrentamento à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo no Brasil é estruturado sobre um sistema normativo e institucional que inclui a atuação da UIF - Unidade de Inteligência Financeira, que aqui no Brasil é o Coaf. Essa unidade recebe comunicações obrigatórias de setores regulados, cruza bases de dados, analisa padrões e dissemina RIFs - Relatórios de Inteligência Financeira às autoridades competentes quando identifica indícios de ilicitudes ou transações consideradas atípicas.
Embora sua função seja eminentemente técnica e preventiva, o RIF passou a ocupar papel central em investigações criminais e processos penais, especialmente em delitos econômicos. Essa crescente utilização, no entanto, levantou questionamentos quanto aos limites de sua natureza jurídica e às consequências probatórias decorrentes de seu uso indevido.
Este artigo busca demonstrar que o RIF, por sua natureza informativa, não constitui prova processual, mas um instrumento de inteligência que deve orientar diligências sob controle jurisdicional. Além disso, argumenta-se que o RIF por encomenda, quando produzido ou requisitado de forma genérica, sem autorização judicial ou sem a instauração de procedimento formal, viola direitos fundamentais e contamina o acervo probatório.
2. Marco normativo e institucional
A lei 9.613/1998, que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro, instituiu o sistema brasileiro de prevenção e combate a essa prática, impondo deveres de comunicação a setores econômicos e conferindo à UIF (Coaf) competência para receber, analisar e disseminar informações financeiras suspeitas. A LC 105/01 regulamenta o sigilo bancário e suas hipóteses de compartilhamento, enquanto a lei nº 13.974/20 reforçou a autonomia técnica e operacional da UIF.
No plano internacional, a recomendação 29 do GAFI/FATF e as diretrizes do Egmont Group estabelecem parâmetros de governança e segurança no intercâmbio de informações, priorizando a proporcionalidade e a necessidade.
O STF, no julgamento do Tema 990 da repercussão geral, reconheceu a constitucionalidade do compartilhamento formal e sigiloso de dados da UIF com o Ministério Público e a Polícia, desde que observadas as finalidades legais e vedadas práticas genéricas ou prospectivas. Contudo, alguns julgadores da Corte repudiam o RIF por encomenda e exige autorização judicial quando se tratar de requisição ativa de dados.
Mais recentemente, o ministro Alexandre de Moraes, ao relatar o RE 1.537.165, suspendeu todos os processos que discutem a validade de provas obtidas a partir de relatórios do Coaf requisitados sem autorização judicial. A decisão, de repercussão geral (Tema 1.404), reflete a preocupação com a padronização do entendimento e com os impactos sociais e jurídicos decorrentes da utilização indevida desses dados.
Sob a ótica da legalidade estrita, o RIF por encomenda representa uma violação grave, pois implica devassa financeira sem objeto definido e sem controle jurisdicional, degenerando em pesca probatória e comprometendo a integridade da persecução penal.
3. Natureza jurídica do RIF: Documento de inteligência, não prova
O RIF é produto de análise técnica de comunicações de operações suspeitas e outras bases de dados. Sua finalidade é sinalizar padrões atípicos, subsidiar a tomada de decisão e orientar diligências investigativas.
Não se trata de meio de prova típico, tampouco de documento pericial ou contábil idôneo. Assim, não se submete à cadeia de custódia probatória prevista no art. 158-A do CPP. Por ser elaborado fora do contraditório, não pode sustentar isoladamente uma denúncia ou condenação.
O RIF pode, no máximo, oferecer justa causa para a abertura de investigação formal, desde que seus indícios sejam posteriormente corroborados por meios de prova lícitos. Quando transformado em atalho para a obtenção de provas sem autorização judicial, o RIF deixa de cumprir sua função legítima e passa a ameaçar garantias constitucionais.
4. O RIF por encomenda e os riscos da fishing expedition
Denomina-se RIF por encomenda o relatório produzido a partir de solicitações genéricas ou amplas, sem delimitação de escopo e sem prévia autorização judicial. Trata-se de prática incompatível com o Estado Democrático de Direito, pois viola a reserva de jurisdição, o princípio da finalidade, a proporcionalidade e a proibição de provas ilícitas (art. 157 do CPP).
A Constituição Federal, no art. 5º, XII, assegura o sigilo de dados bancários, cuja quebra somente é possível mediante ordem judicial. Assim, requisições diretas de RIF por parte de órgãos de persecução penal configuram ingerência indevida na esfera privada. Ademais, a UIF tem por finalidade exclusiva a prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, não podendo ser utilizada como atalho investigativo para fins diversos.
A obtenção de relatórios fora desses parâmetros gera provas ilícitas por derivação, contaminando todo o conjunto probatório, conforme a teoria dos frutos da árvore envenenada.
5. Pedido de RIF sem Inquérito ou PIC: Fragilidade da justa causa
O compartilhamento de informações da UIF exige a existência de um procedimento formalmente instaurado, seja inquérito policial, seja PIC - Procedimento Investigatório Criminal. Essa formalização garante controle judicial e delimita a atuação estatal.
A ausência de procedimento - como ocorre em verificações preliminares informais - transforma a atividade de investigação em prática clandestina e inquisitorial, sem transparência, sem numeração e sem responsabilidade institucional.
Portanto, apenas quando há formalidade processual é possível assegurar: (i) a delimitação objetiva do objeto investigado; (ii) a responsabilização do órgão requisitante; e (iii) a possibilidade de controle judicial. Fora dessas condições, o RIF obtido deve ser considerado ilícito e todas as provas dele derivadas devem ser desentranhadas.
6. Cadeia de custódia informacional e governança do RIF
Apesar de ser instrumento de inteligência, o RIF deve obedecer a padrões de rastreabilidade e governança, permitindo identificar quem solicitou, recebeu e acessou o documento, em qual procedimento e com que finalidade. Essa trilha de auditoria reforça a legitimidade do uso do relatório e previne vazamentos e abusos.
A ausência dessa cadeia de custódia informacional abre margem para arbitrariedades e violações graves de direitos fundamentais, contrariando os princípios da necessidade e minimização de dados previstos na LGPD (lei 13.709/18).
A extrapolação dos limites legais enseja consequências severas: nulidade da prova (art. 157, CPP), responsabilização funcional e civil do agente público, e eventual reparação por dano moral ao investigado.
7. Consequências processuais do uso indevido
O RIF obtido por requisição indevida é uma fonte contaminada que viola diretamente o sigilo de dados e a reserva de jurisdição. Todas as provas subsequentes derivadas dessa origem ilícita tornam-se igualmente imprestáveis.
A doutrina e a jurisprudência brasileiras, alinhadas ao modelo norte-americano, adotaram a teoria dos frutos da árvore envenenada, segundo a qual as provas derivadas de fonte ilícita devem ser desentranhadas, salvo se demonstrada a fonte independente ou a descoberta inevitável - hipóteses que devem ser comprovadas concretamente pelo órgão acusatório.
Se, após a exclusão das provas ilícitas, não restarem elementos de materialidade ou indícios mínimos de autoria, impõe-se o trancamento do inquérito ou da ação penal, não como medida de benevolência, mas como exigência do devido processo legal e da integridade jurisdicional.
8. Considerações finais
O RIF desempenha papel relevante na prevenção e combate à criminalidade econômica, mas sua natureza é meramente informativa. Ele não substitui a prova judicial e deve ser utilizado com observância estrita à legalidade e às garantias fundamentais.
O uso indevido do RIF - especialmente quando requisitado sem autorização judicial, fora de procedimento formal ou com finalidade genérica - contamina o processo penal, viola o sigilo de dados e compromete a legitimidade das investigações.
Portanto, o RIF deve ser tratado como instrumento técnico de inteligência, sujeito à cadeia de custódia informacional, à finalidade específica e ao controle jurisdicional. Somente assim será possível compatibilizar a eficiência investigativa com a proteção dos direitos fundamentais e a credibilidade do sistema de Justiça penal.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
BRASIL. Lei nº 9.613/1998. Dispõe sobre crimes de lavagem de dinheiro.
BRASIL. Lei Complementar nº 105/2001. Sigilo das operações financeiras.
BRASIL. Lei nº 13.709/2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
BRASIL. Lei nº 13.964/2019. Pacote Anticrime.
FATF/GAFI. Recommendation 29 and Interpretive Note on Financial Intelligence Units.
EGMONT GROUP. Principles for Information Exchange Between FIUs.
STF. Tema 990 e Tema 1.404 da Repercussão Geral.
STJ. Jurisprudência consolidada sobre reserva de jurisdição e requisição ativa de dados à UIF.


