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Nada está oculto: O sentido das sensações e a gramática da dor

Neste artigo, mostro que, em Wittgenstein, dor e intenção não são segredos interiores, mas usos públicos. Essa virada sustenta a TSI: Imputar sentidos da conduta, não 'teatros mentais'.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Atualizado às 14:15

A filosofia de Ludwig Wittgenstein, em seu enfrentamento direto à doutrina cartesiana da mente, sustenta uma proposição radical: não há nada oculto. Esse enunciado, aparentemente provocador, desmantela um dos pilares do pensamento tradicional: a ideia de que os estados mentais são realidades internas, acessíveis apenas ao próprio sujeito, e que, portanto, escapam à observação e à linguagem comum.

O que Wittgenstein propõe é uma virada gramatical. Ele não nega a existência das sensações, tampouco ignora sua experiência imediata. Mas insiste que seu significado não se estabelece por referência a um objeto interno, e sim por sua inserção em práticas linguísticas públicas. Dizer que tenho dor não é relatar um fenômeno oculto; é participar de um jogo de linguagem em que o sentido da palavra "dor" está relacionado à conduta, ao uso, ao contexto, e não à introspecção.

Essa concepção desarticula a suposição de que existiria, por trás de cada conduta observável, um conteúdo mental privado que a justificaria. É esse pressuposto, herdado diretamente do cartesianismo, que ainda molda, de forma muitas vezes inconsciente, a estrutura da imputação penal tradicional. Quando o julgador pretende aferir a existência de dolo eventual com base na "aceitação do risco", "previsão" ou "indiferença" do agente, está operando com categorias cuja base é um conteúdo mental supostamente acessível por inferência, e não por manifestação objetiva. A dogmática penal se mantém, assim, presa ao mito do teatro interior. É justamente contra esse mito que Wittgenstein ergue sua crítica.

No §246 das Investigações Filosóficas, o autor formula uma pergunta decisiva: "Até que ponto minhas sensações são privadas?" Em seguida, desfaz a ilusão: "Só eu posso saber se sinto dor, o outro apenas pode supor. Em um sentido, isso é falso; em outro, é absurdo". Para Wittgenstein, não faz sentido dizer que "sei que estou com dor". Sentir dor já é suficiente. Não há um conhecimento adicional que confirme a sensação.

O conhecimento, nesse caso, é o próprio sentir. Assim, o uso da palavra "saber" no contexto das sensações é, no mínimo, equivocado, quando não inteiramente sem sentido. Da mesma forma, não se pode dizer que o outro só conhece minha dor por inferência, como se houvesse algo oculto sendo decifrado. O outro vê, ouve, interpreta, responde. Ele participa do mesmo jogo de linguagem. O comportamento, nesse cenário, não é uma pista da dor: é sua expressão.

A gramática das expressões psicológicas, como dor, desejo, intenção, é o ponto central da crítica wittgensteiniana. Para o autor, o significado dessas palavras não depende de um referencial oculto, mas da prática em que são utilizadas. Ao dizer "ele tem dor", não estou descrevendo um estado invisível, mas participando de um jogo de linguagem em que reconheço, compreendo e reajo a essa dor com base em sinais socialmente compartilhados. A dor, portanto, não é um objeto que se oculta no corpo; ela está imersa na forma como falamos, gesticulamos, reagimos. E é por isso que Wittgenstein afirma: "nada está oculto". Não há necessidade de buscar o que está "por trás" da expressão, a expressão já é suficiente.

Essa tese é ilustrada de maneira poderosa por meio do famoso exemplo da panela e do vapor. Imagine-se dizendo que, assim como a água ferve e o vapor se eleva, a imagem do vapor deveria se levantar da imagem da panela. Trata-se de uma crítica à tentativa de traduzir processos mentais como imagens interiores que acompanham a conduta. Wittgenstein mostra que essa imagem é equivocada: o comportamento que expressa dor não é acompanhado por um processo interior separado, mas é a própria manifestação da dor. O que importa não é o que ocorre por trás do rosto, mas o que o rosto mostra, e o que se faz com isso na linguagem.

No campo penal, essa concepção tem consequências imediatas. A responsabilidade penal não pode depender da postulação de estados mentais não manifestos. Quando se afirma que um agente "assumiu o risco" ou "quis o resultado", sem que sua conduta revele esse compromisso de atuar, recai-se num modelo inferencial que ignora a gramática pública da ação.

A Teoria Significativa da Imputação, ao adotar o modelo linguístico-filosófico de Wittgenstein, propõe uma reestruturação conceitual: o que se imputa é o sentido da conduta, construído a partir de seus caracteres significativos, e não a suposta existência de um conteúdo mental oculto.

Wittgenstein vai ainda mais longe. No §253, ele desafia a suposição de que a dor é uma experiência intransferível ao perguntar: "O outro não pode sentir minha dor - mas o que são minhas dores?" Aqui, ele destaca que a própria identidade da dor depende de critérios, e não de uma referência oculta. O que torna possível dizer que duas pessoas sentem a mesma dor não é o acesso à mente do outro, mas o uso compartilhado de uma linguagem que estabelece esses critérios. O ponto decisivo é que a linguagem não espelha objetos mentais; ela constitui formas de vida. E é por isso que Wittgenstein rejeita a imagem da mente como uma caixa fechada. O que está em questão não é o conteúdo, mas o critério de aplicação.

Essa crítica culmina na refutação das definições ostensivas privadas. Quando alguém diz que nomeou uma sensação apenas voltando-se interiormente para ela, sem qualquer critério externo de correção, está apenas participando de uma cerimônia sem sentido. O ato de nomear pressupõe que haja regras para o uso da palavra. Se essas regras não existem ou não podem ser compartilhadas, a nomeação falha. Daí a impossibilidade lógica de uma linguagem privada. Uma palavra como "dor" só tem significado porque está inserida num sistema de regras públicas, ou seja, porque se aprende o que ela significa, quando se usa, em que contexto se aplica. Assim, a gramática da dor é pública, e não privada. E o mesmo se aplica à intenção, ao querer, ao prever. Não há sentido em afirmar que alguém "teve a intenção" se sua conduta não manifesta, de forma clara, um compromisso de atuar.

Ao adotar essa compreensão, a Teoria Significativa da Imputação rompe com a tradição penal baseada em suposições mentais. Substitui-se o subjetivismo por uma análise objetiva da significação da conduta. Não se busca mais o "teatro da mente" do agente, mas os sentidos que sua ação comunica no mundo. A imputação deixa de ser um exercício de adivinhação psicológica e passa a ser um processo racional de interpretação da conduta humana à luz da linguagem, das regras e das formas de vida.

Este é o terceiro artigo da série Filosofia da Mente em Wittgenstein - A base filosófica da Teoria Significativa da Imputação. No próximo e último artigo, explorarei como essa filosofia da linguagem culmina na superação do modelo mentalista de responsabilidade penal e se articula com a ação significativa como base para um novo paradigma normativo da imputação.

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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Rudá, Antonio Sólon. Fundamentos de la teoría significativa de la imputación. 2ª ed. (Barcelona: Bosch, 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá

VIP Antonio Sanches Sólon Rudá

Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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