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Justiça do futuro: 5 fatos sobre a resolução de conflitos online

A revolução da resolução de conflitos online promete transformar a justiça, tornando-a mais ágil, personalizada e preventiva, com sistemas como o DSD e exemplos como o Voo TAM 3054.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Atualizado às 11:02

Se você já se sentiu frustrado com a lentidão, o custo e a complexidade dos processos judiciais tradicionais, saiba que não está sozinho. A percepção de que a justiça é um labirinto burocrático é um sentimento comum. No entanto, enquanto muitos de nós olhamos para os tribunais físicos em busca de soluções, um sistema de justiça paralelo, silencioso e digital, emergiu e já está resolvendo milhões de disputas com uma eficiência transformadora. Este ecossistema, conhecido como Resolução de Conflitos Online (ODR, da sigla em inglês), está redefinindo o acesso à justiça em escala global. Baseado em estudos recentes e exemplos práticos no Brasil e no exterior, este artigo revela cinco fatos surpreendentes sobre essa nova fronteira, demonstrando uma clara trajetória evolutiva: de ferramentas automatizadas a sistemas customizados e, finalmente, a uma governança preditiva. Prepare-se para descobrir que o futuro já chegou.

1. Existe um "Tribunal Invisível" que resolve 60 milhões de disputas por ano. A escala da justiça digital privada é, na maior parte do tempo, invisível. O que isso revela, no entanto, é a existência de um sistema de justiça privado e automatizado operando em uma escala que ofusca muitos Judiciários nacionais. O exemplo mais impressionante é o da plataforma de comércio eletrônico eBay que, sozinha, resolve mais de 60 milhões de disputas anualmente entre compradores e vendedores. Mais surpreendente ainda é que este sistema alcança uma taxa de satisfação superior a 90%. O sucesso do eBay se baseia em um engenhoso "método da escada" (ladder method), que estrutura a resolução do conflito em três etapas progressivas:

  1. Prevenção: Antes que um conflito se instale, o sistema oferece um vasto banco de dados com informações e respostas para as perguntas mais comuns dos usuários, eliminando o problema na origem.
  2. Mediação online: Se a prevenção falhar, um software conecta as duas partes para uma negociação direta. Utilizando inteligência artificial, o sistema analisa a disputa e sugere acordos com base em dados de milhões de casos anteriores, facilitando a busca por um consenso.
  3. Arbitragem: Caso as partes não cheguem a um acordo, o próprio sistema pode atuar como árbitro, tomando uma decisão final e vinculante para resolver a questão. O significado disso é profundo: milhões de casos que poderiam sobrecarregar o sistema judicial são resolvidos com eficiência e pouca ou nenhuma intervenção humana. O eBay representa o grande proof of concept do setor privado, demonstrando o poder de um processo digital bem-estruturado e abrindo caminho para que o setor público buscasse replicar esse sucesso.

2. A ferramento mais comum do governo já pode estar ultrapassada

Após o setor privado demonstrar a viabilidade da justiça digital em massa, o governo brasileiro deu seus primeiros passos. A plataforma Consumidor.gov.br se tornou a ferramenta preferida de muitas agências reguladoras, como ANAC (aviação) e ANATEL (telecomunicações), para lidar com reclamações. Embora represente um avanço, análises recentes indicam que este modelo inicial já pode ser considerado ultrapassado.

A principal crítica é que a plataforma não atende plenamente aos padrões mais avançados estabelecidos pela resolução 358 de 2020 do CNJ, que orienta a criação de sistemas mais sofisticados de conciliação e mediação (SIREC). O que isso demonstra é uma defasagem entre uma abordagem genérica e as melhores práticas atuais:

  • Negociação direta e assíncrona: O sistema se limita a uma troca de mensagens diretas entre consumidor e empresa, sem a presença de um terceiro para facilitar o diálogo.
  • Ausência de facilitador: A resolução do CNJ prevê a figura de um mediador ou conciliador como peça-chave, algo inexistente no fluxo do Consumidor.gov.br.
  • Falta de recursos tecnológicos avançados: A plataforma carece de funcionalidades exigidas pela resolução, como a sincronização de calendários ou a geração automatizada de atas e termos de acordo.

Isso representa uma mudança de paradigma: à medida que nossa compreensão sobre justiça digital evolui, a abordagem "one-size-fits-all" do Consumidor.gov.br se mostra insuficiente, exigindo uma evolução para modelos mais especializados e eficazes.

3. Uma agência brasileira criou seu próprio sistema e atingiu 91,6% de sucesso

Se o Consumidor.gov.br foi o primeiro passo, a ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar demonstrou o próximo nível de maturidade na justiça digital governamental. Em vez de adotar uma plataforma genérica, a ANS desenvolveu um sistema próprio, a NIP - Notificação de Intermediação Preliminar, para mediar disputas entre beneficiários e operadoras de planos de saúde.

O resultado é impressionante: em 2020, o sistema NIP alcançou uma taxa de resolução histórica de 91,6% em um universo de 150.756 reclamações, atendendo a um mercado de mais de 48 milhões de beneficiários. O sucesso vem do modelo bespoke e setorial. A distinção crucial aqui é que, embora a ANS se refira à NIP como uma "mediação", o procedimento funciona, na prática, como um eficaz mecanismo de resolução pré-sanção. O resultado não deriva de um diálogo facilitado, mas do incentivo para que as empresas cumpram as normas do setor sob a pena iminente de instauração de um processo administrativo, o que explica sua altíssima taxa de conformidade.

Os benefícios vão além do consumidor, impactando a própria agência, como destacado em relatórios:

"Os benefícios da NIP impactam na rotina da ANS, uma vez que diminui a quantidade de processos administrativos. Com isso, a agência também ganha mais fôlego para se dedicar efetivamente à fiscalização e à análise das situações de maior gravidade."

O caso da ANS prova que a evolução de ferramentas genéricas para sistemas especializados e adaptados ao contexto de um setor é o caminho para resultados superiores.

4. Para crises reais, a solução vai além de um simples site: O caso do Voo TAM 3054

Quando lidamos com conflitos de alta complexidade e forte impacto emocional, uma plataforma tecnológica, por mais especializada que seja, não é suficiente. É aqui que a evolução da justiça digital dá um salto do ferramental para o sistêmico, com o conceito de DSD - Desenho de Sistemas de Disputas.

DSD não é criar um site customizado; é "a organização deliberada e intencional de procedimentos ou mecanismos processuais, que interagem entre si, e, quando aplicáveis, de recursos materiais e humanos, para a construção de sistemas de prevenção, gerenciamento e resolução de disputas." O principal exemplo brasileiro é a Câmara de Indenização Voo 3054 (CI3054), criada após o trágico acidente aéreo da TAM em 2007, que resultou em 199 mortes. A complexidade da situação, envolvendo profundos fatores emocionais, psicológicos e econômicos, exigia uma abordagem muito mais sensível do que um processo judicial.

A CI3054 não foi apenas uma alternativa, mas um sistema inteiramente desenhado para aquela tragédia, com base nos princípios do DSD. O sucesso foi notável: a câmara encerrou suas atividades em 2009 com uma taxa de resolução de 92% dos casos que atendeu. A grande lição aqui é que, para os conflitos mais sensíveis, a abordagem mais poderosa não é apenas aplicar tecnologia, mas desenhar cuidadosamente todo o processo de resolução para se adequar ao contexto único e humano da disputa.

5. O objetivo não é apenas acabar com a briga, mas evitar a próxima

O verdadeiro potencial dessa evolução não está apenas em resolver conflitos individuais, mas em transformar a governança. As plataformas de ODR são, em essência, poderosas ferramentas de coleta e análise de dados, o que representa uma mudança de um modelo reativo para um modelo preditivo.

Esses sistemas coletam informações sobre reclamações: frequência por empresa, problemas recorrentes, tempo de resposta e taxas de resolução. Com isso, agências reguladoras podem monitorar setores com uma eficiência sem precedentes, conferindo "selos de melhores práticas" ou identificando falhas sistêmicas. Como aponta um estudo sobre o tema:

"A utilização de ODR nesses segmentos alcança além da solução de conflitos e proporciona o aprimoramento da gestão das atividades das agências, na medida em que elas usufruem de um melhor acesso a esses dados e conseguem monitorar de forma mais eficiente o seu segmento."

Isso transforma os dados de sistemas como o do eBay de um mero registro de transações em um mapa de falhas de mercado em tempo real. Permite que um regulador, usando uma plataforma no estilo da ANS, vá além de punir um plano de saúde por uma única violação e passe a identificar e corrigir uma falha sistêmica em suas políticas de cobertura antes que ela afete milhares de outros beneficiários. A justiça digital deixa de ser um mecanismo para encerrar uma briga e se torna uma ferramenta estratégica para evitar a próxima.

Conclusão

A jornada da justiça digital nos levou de simples formulários a sistemas que resolvem dezenas de milhões de casos; de plataformas genéricas que já pedem evolução a sistemas desenhados sob medida para as maiores tragédias; e, finalmente, de um modelo reativo a um sistema de governança preditiva. O futuro da justiça não é apenas digital; ele é inteligente, baseado em dados e, acima de tudo, hiper-personalizado e preditivo, adaptado às necessidades de cada conflito. A tecnologia já está aqui, redefinindo silenciosamente o que significa ter acesso à justiça de forma transformadora. Se a tecnologia já consegue resolver milhões de conflitos de consumo e indenizar vítimas de tragédias de forma justa e rápida, qual será a próxima barreira que a justiça digital irá romper em nossa sociedade?

Caio Vinicius Pereira da Silva

VIP Caio Vinicius Pereira da Silva

Caio Vinicius Pereira Pacheco - Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - Formado em Analista Fiscal e Gestão Tributária pelo SENAC - Pesquisador Jurídico - CEA/AMBIMA

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