A responsabilidade das plataformas de streaming pela omissão de créditos autorais
Artigo analisa decisão do STJ que responsabiliza plataformas de streaming por omitir créditos autorais, reforçando o dever de diligência digital e a proteção dos direitos morais dos artistas.
terça-feira, 18 de novembro de 2025
Atualizado às 08:42
O avanço das plataformas de streaming transformou profundamente a forma como obras musicais são distribuídas, consumidas e monetizadas. Se, por um lado, o modelo digital ampliou exponencialmente o acesso à produção artística, por outro, trouxe desafios jurídicos inéditos à tutela dos direitos autorais, sobretudo no que se refere à correta atribuição da autoria e identificação de intérpretes e compositores.
Recentemente, o STJ voltou a se debruçar sobre a matéria, reafirmando o entendimento de que o streaming é modalidade de execução pública de obra musical e fonograma, sujeita às mesmas regras de proteção previstas na lei 9.610/1998 (LDA - Lei de Direitos Autorais). Trata-se do julgamento do REsp 2.167.762/SP, relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado pela 3ª turma em agosto de 2025.
O caso concreto
O compositor Vanderlei Camini ajuizou ação contra a plataforma Napster por disponibilizar suas obras sem a devida identificação de autoria. O TJ/SP reconheceu a violação ao direito moral do autor e fixou indenização no valor de R$ 25 mil, entendimento mantido pelo STJ.
Em sua defesa, a plataforma alegou não ter responsabilidade direta pela falta de informação, atribuindo a falha a terceiros (produtoras e titulares de fonogramas) que inserem os dados nos sistemas de registro (ISRC). O argumento, contudo, foi rejeitado pela Corte Superior, que reafirmou o dever das plataformas de zelar pela integridade das informações de autoria e interpretação das obras que exploram comercialmente.
O fundamento jurídico: o direito moral de paternidade
O cerne da discussão recai sobre o art. 24, II, da LDA, que consagra o direito do autor de ter seu nome indicado na obra sempre que esta for utilizada. Trata-se de um direito moral, personalíssimo e imprescritível, cuja violação gera dano moral in re ipsa, ou seja, prescinde de prova de prejuízo concreto.
O artigo 108 da mesma lei reforça esse entendimento ao prever que "há responsabilidade por danos morais quando, ao utilizar obra intelectual por qualquer meio, omite-se a menção ou o anúncio do nome do autor e do intérprete". Assim, o simples fato de a plataforma veicular uma música sem os créditos adequados já configura ato ilícito indenizável.
Streaming como execução pública: a base para a responsabilização
Desde o REsp 1.559.264/RJ (rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 2017), o STJ pacificou que o streaming constitui forma de execução pública, porque envolve a transmissão de obras musicais em ambiente de frequência coletiva (internet), com potencial de acesso simultâneo por inúmeros usuários.
Essa qualificação é crucial: ao ser considerada execução pública, a atividade das plataformas passa a se submeter aos mesmos deveres das emissoras de rádio, televisão e casas de espetáculo quanto ao respeito aos direitos autorais, incluindo o pagamento de valores devidos ao ECAD e a obrigação de creditar adequadamente os titulares das obras.
A responsabilidade das plataformas: risco da atividade e dever de diligência
O acórdão reforça uma tendência jurisprudencial: a responsabilidade das plataformas de streaming é objetiva, derivada do risco da atividade econômica que exercem. Ainda que a falha de crédito decorra de erro de terceiros (gravadoras, distribuidores, agregadores), a empresa que exerce controle sobre o ambiente de disponibilização é quem aufere o lucro e, portanto, assume o dever de garantir que as informações estejam corretas.
Em outras palavras, não se trata de responsabilidade subsidiária ou indireta, mas de um dever de diligência reforçado, coerente com a lógica das plataformas digitais como intermediárias que lucram com o conteúdo alheio.
Dano moral e valor da indenização
O STJ manteve a indenização de R$ 25 mil fixada pelo tribunal estadual, entendendo ser inviável revisá-la em recurso especial (súmula 7/STJ). O valor foi considerado proporcional ao número de obras violadas e ao porte econômico da plataforma, observando o caráter dúplice do dano moral autoral: compensatório e punitivo.
Mais do que a compensação individual, a condenação tem função pedagógica: reforça que, no ambiente digital, a omissão de créditos autorais não é uma mera falha técnica, mas uma violação à identidade criativa do artista.
Repercussão prática e tendências
A decisão da 3ª turma consolida uma linha de entendimento que já vinha se firmando em casos similares (como os REsps 2.112.705/RS e 1.716.465/SP): (i) o dano moral autoral é presumido; (ii) o streaming é execução pública, aplicando-se integralmente a LDA; (iii) as plataformas são responsáveis pela correção das informações de autoria e intérprete; (iv) o controle dos dados (ISRC, metadata) é um dever inerente à atividade de mediação digital de conteúdo.
Em um cenário de crescente judicialização das relações entre criadores e plataformas, o julgado representa um importante balizador para o mercado musical digital, ao reafirmar que a tecnologia não exime as plataformas do cumprimento das normas de proteção autoral, mas, sim, exige delas uma aplicação ainda mais rigorosa.
Esse entendimento, firmado pelo STJ, dialoga diretamente com a recente decisão do STF no RE 1.057.258, publicada em 5 de novembro de 2025. Ao reconhecer a constitucionalidade parcial e progressiva do art. 19 do Marco Civil da Internet, o STF inaugurou um modelo de responsabilidade compartilhada e preventiva das plataformas de aplicações digitais, impondo-lhes o dever de agir ativamente na prevenção e mitigação de danos decorrentes de conteúdos ilícitos ou violadores de direitos fundamentais.
Embora a decisão do Supremo tenha se dado em contexto distinto, voltado à moderação de conteúdo e à proteção contra discursos ilícitos, o raciocínio subjacente é análogo: quem detém o controle técnico e econômico sobre o ambiente digital assume também o ônus jurídico de garantir que sua operação não produza ou reproduza violações de direitos. No campo autoral, essa lógica reforça que o dever das plataformas não se limita à neutralidade técnica, mas envolve uma diligência positiva na identificação, correção e prevenção de omissões de crédito e demais infrações à integridade moral das obras.
Conclusão
O caso Napster x Camini marca mais um passo na consolidação de um paradigma jurídico compatível com a era do streaming: a valorização da autoria como núcleo da criação artística e a responsabilização efetiva dos intermediários que lucram com a sua difusão.
Aos artistas, compositores e intérpretes, a decisão oferece respaldo para a reivindicação de seus direitos morais. Às plataformas, impõe o desafio de aperfeiçoar seus sistemas de cadastro, gestão de metadados e compliance autoral. Ao Poder Judiciário, cabe a tarefa de manter o equilíbrio entre inovação tecnológica e respeito à criação intelectual, o bem mais essencial da economia criativa.


