A legitimidade do Banco Central na gestão do Pix
A acusação dos EUA ignora leis e padrões globais. O Pix é legítimo, promove inclusão financeira e segue boas práticas internacionais.
quarta-feira, 12 de novembro de 2025
Atualizado às 14:12
A crescente pressão política da administração Trump sobre o Brasil, materializada na investigação conduzida pelo USTR sob a seção 301 da lei de comércio dos EUA, reacende o debate sobre os limites entre soberania regulatória e competição internacional. A alegação de que o BCB - Banco Central do Brasil pratica concorrência desleal, ao operar o PIX, carece de fundamento jurídico e ignora tanto a legislação brasileira quanto os padrões internacionais aplicáveis.
O PIX é um sistema de pagamento instantâneo, criado e operado pelo BCB desde 2020, com base nas competências conferidas pelas leis 4.595/1964 e 12.865/13. É regulado por resoluções públicas e sujeito à supervisão contínua, incluindo aspectos de segurança cibernética, prevenção à lavagem de dinheiro (AML/CFT) e estabilidade monetária. Sua criação respondeu à necessidade de inclusão financeira, competição no setor de pagamentos e redução de custos transacionais.
Centraliza-se a crítica dos EUA no fato de o BCB ser regulador e operador do sistema, o que supostamente excluiria competidores privados. Contudo, essa alegação ignora que:
(i) A operação do PIX é respaldada por legislação específica, consulta pública e regulamentação clara;
(ii) Não há exclusão de empresas estrangeiras: PayPal, Zelle, Venmo e outras seguem operando no Brasil;
(iii) O modelo de operador público é adotado por bancos centrais relevantes, como o Federal Reserve (FedNow), Banco Central Europeu (TARGET) e Banco da China (ChinaPay);
(iv) O PIX proporcionou acesso digital a 40 milhões de brasileiros que não tinham acesso ao sistema financeiro formal.
Os números falam por si: mais de 68 bilhões de transações em 2024, movimentando US$ 5 trilhões, com impacto direto na formalização econômica e inclusão social. O custo médio por transação é de 0,22%, contra 1,5% a 2% das plataformas privadas. Trata-se de um ganho de bem-estar com elevação do PIB per capita e mitigação de custos de transação.
Do ponto de vista do direito internacional, a alegação norte-americana falha em múltiplos aspectos. A seção 301 é instrumento unilateral, incompatível com os compromissos dos EUA no Acordo de Marrakech e com o sistema de solução de controvérsias da OMC. O Art. I.3(b) do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS) exclui expressamente da sua aplicação os serviços prestados no exercício da autoridade governamental.
Quanto à crítica sobre "level playing field", parte-se de uma premissa falaciosa: que eficiência estatal constitui, por si só, infração comercial. Ora, a ausência de tarifas abusivas e a universalização do serviço não são infrações, mas boas práticas. A política pública de promover inclusão financeira é amplamente respaldada por organismos como o Banco Mundial, o BIS, o G20 e o FMI1.
Neste sentido, a posição do BIS é clara: incentiva que bancos centrais desenvolvam sistemas de pagamento instantâneo2. O Brasil é citado como caso exemplar em relatórios internacionais. O roadmap do G20 e o handbook do Banco Mundial reconhecem o papel de regulador, operador e catalisador atribuído aos bancos centrais, especialmente quando o setor privado é concentrado e excludente.
Na investigação da seção 301, argumenta-se que o BCB falha em governança, mas se ignora que o PIX está submetido a um modelo de governança transparente, com aprimoramentos contínuos por meio de resoluções como a 506/25. O sistema é auditável, seguro, interoperável e alinhado com o padrão PFMI (CPMI-IOSCO).
No caso concreto, a tentativa de construir um caso de violação comercial revela um protecionismo dissimulado: o incômodo não é com o modelo, mas com o sucesso do PIX. A eficiência brasileira desloca oligopólios e reduz margens de lucro de plataformas e cartões norte-americanos. Só que isso não é violação de regras - é concorrência legítima baseada em inovação.
É fundamental lembrar que os princípios do comércio internacional foram criados para proteger a previsibilidade jurídica e a boa-fé, não para garantir hegemonia de mercado. O Brasil respeita tais princípios. Ao operar o PIX, cumpre seu dever institucional de garantir inclusão a instrumentos financeiros, promover estabilidade monetária e estimular inovação.
Em síntese, a legitimidade do BCB neste caso é inquestionável. A retórica da seção 301 é politicamente motivada, juridicamente inconsistente e economicamente contraditória. Se os EUA quiserem debater política digital e inclusão financeira, o Brasil tem muito a ensinar.
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1 O PIX não é apenas legítimo sob leis brasileiras (Lei nº 12.865/2013, Resolução BCB nº 1/2020), mas também cumpre plenamente com: PFMI (Princípios para Infraestruturas de Mercado Financeiro)?. CPMI Recommendations (Recomendações do Comitê para Pagamentos e Infraestruturas de Mercado)?. Core Principles for Systemically Important Payment Systems (Princípios Centrais do BIS)?. G20 Roadmap for Cross-Border Payments (Roadmap do G20). ?World Bank Framework (Marco do Banco Mundial)?. FSB Policy Recommendations (Recomendações de Política do FSB)?. AML/CFT Standards (Padrões Internacionais de Conformidade Financeira.
2 O Banco para Compensações Internacionais (BIS-Bank for International Settlements) reconhece explicitamente o papel dos bancos centrais como operadores de sistemas de pagamento instantâneos. BIS, Core Principles for Sistemically Important Payment Systems. www.bis.org/cpmi
Welber Barral
Sócio de Barral Parente Pinheiro Advogados, com escritórios em São Paulo, Brasília e Buenos Aires.



