O juiz de paz da roça e o Brasil atual: Entre a sátira de Martins Pena e o poder humano
Martins Pena transformou o juiz de paz em sátira, mas sua crítica segue atual: o poder sem vocação pública degenera em vaidade. A peça inspira reflexão sobre ética, cidadania e humildade na Justiça.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2025
Atualizado às 08:48
Em 1833, Martins Pena escreveu O Juiz de Paz da Roça, uma das primeiras e mais importantes comédias do teatro nacional. À primeira vista, é apenas uma peça de costumes: um retrato divertido da vida rural, das pequenas autoridades e dos costumes do interior. Mas, sob o riso, há uma crítica sutil e profunda. O autor usa o humor como lente para revelar a fragilidade das instituições recém-criadas no Brasil Imperial, entre elas o cargo de juiz de paz - instituído pela Constituição de 1824 como símbolo de uma Justiça próxima do povo.
Quase dois séculos depois, o texto ainda soa perturbadoramente atual. O "juiz de paz da roça" talvez não habite mais os engenhos ou vilas do Império, mas suas sombras continuam presentes sempre que o exercício da autoridade se confunde com a vaidade, e o cargo é usado como vitrine pessoal em vez de missão pública.
É o poder exercido sem consciência ética, o mesmo que Martins Pena transformou em riso, mas que hoje merece reflexão.
O contexto histórico e a sátira de Martins Pena
O cargo de juiz de paz surgiu como instrumento de descentralização da Justiça, permitindo que cidadãos de reconhecida probidade pudessem julgar pequenas causas e promover a conciliação nas freguesias. Era uma tentativa nobre de aproximar o Estado das realidades locais. Contudo, a ausência de preparo técnico e de critérios rigorosos para o exercício da função transformou o ideal republicano em caricatura.
É essa distorção que Martins Pena explora com genialidade: Manoel João, o protagonista da peça, é um homem simples, vaidoso, que se encanta com as formalidades do cargo e se perde entre disputas domésticas e intrigas amorosas. Sua figura é risível, mas revela a tensão permanente entre autoridade e competência, entre a vaidade humana e a ética pública.
Em tom farsesco, o autor constrói uma crítica que vai além do personagem: atinge o modo como a sociedade brasileira lida com o poder, e talvez por isso O Juiz de Paz da Roça continue sendo uma das sátiras mais precisas sobre o personalismo e o improviso institucional, traços que, lamentavelmente, ainda nos acompanham.
O "pequeno poder" e suas novas roupagens
Se o juiz de paz de Martins Pena media casamentos e intrigas familiares com pompa e desinformação, o Brasil moderno ainda lida com manifestações do mesmo fenômeno, o "pequeno poder", conceito que o cientista político José Murilo de Carvalho descreveu como a tendência de transformar cargos administrativos em espaços de mando pessoal.
Hoje, o abuso de autoridade não se expressa apenas no campo jurídico: pode estar na repartição pública, na escola, na associação de moradores, nas redes sociais. A crítica de O Juiz de Paz da Roça não é, portanto, um retrato do passado, mas um diagnóstico atemporal da tentação humana de dominar em vez de servir.
Martins Pena parece ter intuído, com a pena de um comediógrafo e a lucidez de um sociólogo, que o poder sem vocação pública tende a se tornar ridículo, e que o riso é, muitas vezes, a forma mais eficaz de advertência moral.
Do teatro à cidadania: O papel atual do juiz de paz
O juiz de paz contemporâneo, vinculado aos tribunais e submetido a critérios de nomeação e fiscalização, é a antítese do personagem criado por Martins Pena. Hoje, trata-se de um agente da cidadania e da pacificação social, com funções que vão da conciliação à celebração de casamentos civis, um espaço simbólico em que o Direito toca a vida real das pessoas.
Em tempos de polarizações e liquidez emocional, o juiz de paz atua onde o Estado e o afeto se encontram.
Cada cerimônia é, ao mesmo tempo, um ato jurídico e um gesto pedagógico, que reafirma o valor do compromisso, da escuta e da responsabilidade afetiva. Essa dimensão humanista da função contrasta com a imagem caricatural do passado e mostra que a Justiça também pode ser exercida com leveza, sensibilidade e amor ao público.
Como lembrou Norberto Bobbio, "o poder político é justo quando é limitado e orientado ao bem comum".
Essa frase poderia resumir o que Martins Pena pretendia ensinar com o riso: que a autoridade, para ser legítima, precisa estar a serviço de algo maior do que o próprio ego.
O riso como advertência moral
Ao final, O Juiz de Paz da Roça nos recorda que a comédia pode ser um ato de cidadania. Martins Pena fez rir para fazer pensar e, no rastro de sua ironia, deixou um alerta que o Brasil ainda não deveria esquecer: sem preparo e sem ética, a toga vira fantasia.
Revisitar a obra é mais do que um exercício literário: é um convite à introspecção institucional. Em tempos de redes sociais, em que a visibilidade às vezes se sobrepõe à vocação, a sátira de 1833 recupera um valor essencial: a humildade diante da missão pública.
O juiz de paz, hoje, não é mais o personagem que inspira o riso, mas aquele que testemunha e promove os encontros humanos mais autênticos, e talvez essa seja a ironia mais bela: dois séculos depois, o riso de Martins Pena ainda educa, mas agora para lembrar que o poder deve ser exercido com amor e consciência.
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PENA, Martins. O Juiz de Paz da Roça. Rio de Janeiro: 1833.
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Constituição do Império do Brasil, de 1824.
Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.


