Análise crítica do REsp 2.179.688: Possibilidade de sucessão processual de sociedade empresária dissolvida irregularmente
O Brasil enfrenta inadimplência recorde e baixa recuperação de crédito; sucessão processual de sócios é crucial frente à dissolução irregular.
quinta-feira, 13 de novembro de 2025
Atualizado em 12 de novembro de 2025 15:18
O cenário de recuperação de crédito no Brasil é catastrófico. Dados da Serasa Experian apontam que o número de empresas inadimplentes bateu recorde histórico, representando 31,6% dos negócios ativos do país1. A taxa de recuperação de crédito, de acordo com o Banco Central em análise acerca do elevado patamar dos juros no país, é de apenas 18,2 centavos por dólar2.
Para além da realidade macroeconômica, que certamente contribui para este cenário desanimador, observa-se com certa frequência que a práxis jurídica tem prejudicado ainda mais a tarefa do credor de reaver seu crédito. Isto porque, as práticas de blindagem e de evasão patrimonial têm sido cada vez mais pulverizadas, em movimento não acompanhado pelo ordenamento jurídico.
Um dos grandes desafios práticos para a efetividade da tutela jurisdicional executiva no Brasil é o fenômeno da informalidade. Em específico neste texto, enfrenta-se o tema da dissolução irregular da sociedade empresária. Nestes casos, o credor (civil), após anos de tramitação processual, vê-se diante de um CNPJ que, embora formalmente ativo, já não possui sede, atividade ou patrimônio. A questão que se impõe é: há como responsabilizar os sócios que simplesmente "desapareceram", deixando uma empresa formalmente ativa, contudo, sem qualquer atividade?
O primeiro fator a ser observado é a ausência de qualquer disposição legal acerca da sucessão processual de pessoa jurídica em caso de extinção da sociedade empresária, seja de forma regular ou irregular.
Não se pode confundir, adianta-se, a sucessão processual com a desconsideração da personalidade jurídica - forma de atingir o patrimônio de sócio da pessoa jurídica executada. Esse instituto, previsto no art. 50, do CC, é medida excepcional a ser aplicada somente nos casos em que verificado o abuso da personalidade jurídica "caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial".
Em que pese a ausência de previsão expressa sobre a sucessão processual para os casos de dissolução regular da sociedade empresária, o STJ construiu uma jurisprudência sólida sobre a matéria. Nos casos em que se encerra regularmente o procedimento de extinção da sociedade empresária, com a completa liquidação e distribuição do patrimônio, admite-se a possibilidade de sucessão processual da pessoa jurídica por seu(s) antigo(s) sócio(s) até o limite do patrimônio distribuído.
O REsp 2.082.254/GO3 é um exemplo paradigmático desse entendimento. A 3ª turma, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, consolidou a tese de que a extinção voluntária (regular) da pessoa jurídica, devidamente averbada, equipara-se à morte da pessoa natural e, portanto, o processo executivo poderia continuar contra os ex-sócios. Aplica-se, então, analogicamente, o art. 110 do CPC, que estabelece a sucessão processual da pessoa natural morta.
Da leitura da decisão depreende-se que o tribunal separa, com precisão, a sucessão processual da desconsideração da personalidade jurídica. A sucessão ocorre porque a parte (pessoa jurídica) deixou de existir, fática e formalmente. A desconsideração, por outro lado, é uma sanção para o abuso (desvio de finalidade ou confusão patrimonial) que exige a manutenção da personalidade jurídica, apenas suspendendo sua eficácia para o caso concreto (em que a desconsideração foi pleiteada).
Destaca-se, ademais, que o acórdão estabelece que a responsabilidade dos sócios sucessores se limita ao património líquido positivo que efetivamente receberam na partilha, em linha com o art. 1.110 do CC.
Até aqui, o STJ age com acerto: reconhece a possibilidade de equiparação da "morte" da pessoa jurídica com a morte da pessoa natural e aplica a sucessão processual, respeitando a natureza da responsabilidade limitada.
O problema reside na informalidade que ainda se verifica em grande parte das relações societárias no país: a prática aponta que, em grande parte dos casos, os sócios das sociedades empresárias nunca realizam o procedimento de extinção da sociedade empresária com liquidação do passivo/ativo e a devida baixa do contrato social. O devedor não segue o procedimento legal de liquidação; ele simplesmente "some".
É precisamente este cenário que foi analisado no REsp 2.179.688/RS4, julgado pela mesma 3ª turma, mas que chegou a uma conclusão, no mínimo, perigosa.
Neste segundo caso, o credor tentava a sucessão processual da pessoa jurídica após constatar fatos clássicos da dissolução irregular da sociedade empresária: a empresa não foi localizada no seu endereço; seu CNPJ encontrava-se "inapto" perante a Receita Federal; e tampouco era possível localizar qualquer indício de existência de patrimônio em nome da pessoa jurídica.
O TJ/RS5 negou provimento ao agravo de instrumento, sob fundamento de que seria necessária a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para atingir o patrimônio dos sócios. Os credores, então, interpuseram REsp sob argumento de que o acórdão teria violado o art. 110 do CPC, e estaria em dissonância com o entendimento fixado no supracitado REsp 2.082.254/GO e no REsp 1.784.032/SP.
O STJ negou provimento ao REsp, mantendo a decisão do TJ/RS. A linha argumentativa adotada como fundamento do acórdão é de que só haveria possibilidade de sucessão processual da pessoa jurídica caso comprovada a dissolução da sociedade empresária e a extinção da personalidade jurídica.
Destacou-se, com especial atenção, que as situações fáticas narradas no caso "não se equiparam à dissolução regular da pessoa jurídica, podendo ser, inclusive, revertidas dentro de certo prazo". Nos termos da decisão, a inaptidão junto a Receita Federal, a ausência de localização da sede e ausência de localização de bens seriam apenas "indícios do encerramento das atividades".
Neste sentido, concluiu-se que "o encerramento regular da pessoa jurídica pressupõe ter sido liquidado seu patrimônio, com a distribuição de eventual saldo entre os sócios, valores esses que poderão responder pela dívida da pessoa jurídica extinta", uma vez que "Sem a prova da "morte", não é possível deferir a sucessão".
Neste ponto, parece ser necessário um avanço do entendimento do STJ (ou mesmo da legislação). Ao exigir a "prova da extinção da personalidade jurídica" (que, no entender da Corte Superior, seria o distrato e a baixa formal na Junta Comercial), o tribunal ignora a própria natureza da discussão. Diz-se que a dissolução é irregular precisamente porque os sócios não promoveram a extinção formal. É um contrassenso lógico exigir a prova de um ato regular para comprovar um fato irregular.
Não se pretende discutir o caso concreto objeto de deliberação nos autos do REsp 2.179.688/RS. A análise fático-probatória, naquele contexto, poderia efetivamente demonstrar a não comprovação do encerramento das atividades da pessoa jurídica executada. O entendimento sedimentado, todavia, é perigoso, justamente por abrir margem de interpretação no sentido de que somente nos casos de dissolução regular da sociedade empresária há possibilidade de sucessão processual.
Apesar de o próprio julgado do STJ abrir margem para a linha argumentativa de que haveria possibilidade de responsabilização dos sócios por dissolução irregular, não fica claro o entendimento adotado acerca do tema. Isto pois há apenas breve menção ao fato de que, no âmbito tributário, haveria responsabilização dos sócios em razão de infração à lei, nos termos do Tema 981 do STJ6.
A tese sedimentada no caso de execução fiscal mostra-se acertada e não há razão para não ser replicada no caso de execução civil. Em caso de presunção do encerramento das atividades da pessoa jurídica, o que deve se dar por meio de produção probatória nos autos, a obrigação de pagamento deve ser estendida aos (ex)sócios.
Se não há previsão expressa na legislação civil, o melhor caminho, entende-se, é uma leitura conjunta do art. 1.080 do CC, com o art. 110 do CPC. Este dispositivo já é utilizado no caso de dissolução regular, como demonstrado no REsp 2.082.254/GO; o art. 1.080 do CC, por sua vez, deve ser aplicado por estabelecer que existe responsabilidade ilimitada de quem expressamente aprovou as deliberações do contrato social. Assim, se a lei impõe um procedimento para a extinção da sociedade empresária (dissolução, liquidação, partilha e extinção), ao simplesmente "desaparecer" com a empresa sem saudar os credores, os sócios-administradores praticam uma "deliberação infringente da lei".
Para além de demonstrar-se a solução adequada em uma análise interna do Direito, a solução ora defendida equipara minimamente as execuções civis às execuções fiscais, que gozam de tratamento diverso.
Demais disso, ao manter-se o entendimento de que há sucessão processual em caso de dissolução regular da sociedade empresária e não há em caso de dissolução irregular, o STJ cria um paradoxo à efetividade processual e incentiva ainda mais a informalidade: aquele que agir de forma regular, extinguindo a sociedade empresária que não apresenta mais qualquer atividade, acaba respondendo pelo passivo existente; aquele que age na informalidade e apenas abandona a empresa, não tem seu patrimônio atingido.
Em síntese, a jurisprudência, como posta, cria um incentivo perverso: ela blinda o património do sócio que age na ilegalidade e pune aquele que tenta agir corretamente. Trata-se de premiar a conduta irregular.
Vale mencionar que, apesar de ainda com certa timidez, é possível observar julgados nos e. Tribunais Pátrios que replicam o argumento aqui defendido, no sentido de que a dissolução irregular da sociedade empresária deve levar à sucessão processual aos sócios que não a extinguiram formalmente. Tem-se como exemplo, no TJ/SP, os agravos de instrumento 2098872-45.2025.8.26.00007 e 238107347202482600008, e, no TJ/PR, os agravos de instrumento de 000810542202381600009 e 00753743520228160000 10.
Assim, respondendo à questão posta inicialmente, a solução técnica correta para o caso de dissolução irregular da sociedade empresária não é negar a sucessão processual, mas sim aplicá-la (art. 110 CPC) e, com base no ato ilícito (art. 1.080 CC), afastar a limitação da responsabilidade do ex-sócio.
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1 FECOMERCIOSP. Crise silenciosa: Brasil registra recorde de recuperações judiciais e inadimplência entre empresas. 21 maio 2025. Disponível em: https://www.fecomercio.com.br/noticia/crise-silenciosa-brasil-registra-recorde-de-recuperacoes-judiciais-e-inadimplencia-entre-empresas. Acesso em: 9 nov. 2025.
2 NETO, Roberto Campos. Atuação do Banco Central do Brasil. 21 abr. 2023. Apresentação. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/conteudo/home-ptbr/TextosApresentacoes/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_RCN_%20LIDE_VPUB1.pdf. Acesso em: 9 nov. 2025.
3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Terceira Turma. Recurso Especial n. 2.082.254/GO. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 12 set. 2023. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 15 set. 2023.
4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Terceira Turma. Recurso Especial n. 2.179.688/RS. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em 02 set. 2025. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 05 set. 2025.
5 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS). Décima Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 5185507-36.2023.8.21.7000. Relator: Desembargador Pedro Celso Dal Pra. Julgado em 27 nov. 2023. Diário de Justiça Eletrônico, Porto Alegre, 01 dez. 2023.
6 Tese firmada no Tema Repetitivo 981 pelo STJ: "O redirecionamento da execução fiscal, quando fundado na dissolução irregular da pessoa jurídica executada ou na presunção de sua ocorrência, pode ser autorizado contra o sócio ou o terceiro não sócio, com poderes de administração na data em que configurada ou presumida a dissolução irregular, ainda que não tenha exercido poderes de gerência quando ocorrido o fato gerador do tributo não adimplido, conforme art. 135, III, do CTN.".
7 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Trigésima Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n. 2098872-45.2025.8.26.0000. Relatora: Desembargadora Maria Lúcia Pizzotti. Julgado em 12 jun. 2025. Diário de Justiça Eletrônico, São Paulo, 12 jun. 2025.
8 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Vigésima Terceira Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n. 2381073-47.2024.8.26.0000. Relator: Desembargador Jorge Tosta. Julgado em 24 jan. 2025. Diário de Justiça Eletrônico, São Paulo, 24 jan. 2025.
9 PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR). Nona Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0008105-42.2023.8.16.0000. Relator: Desembargador Roberto Portugal Bacellar. Julgado em 31 ago. 2023. Diário de Justiça Eletrônico, Curitiba, 04 set. 2023.
10 PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR). Décima Sexta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0075374-35.2022.8.16.0000. Relatora: Juíza Substituta Luciane Bortoleto. Julgado em 30 jul. 2023. Diário de Justiça Eletrônico, Curitiba, 31 jul. 2023.
Gabriel Dias Curioni
Advogado da área de Contencioso Cível do Escritório Medina Guimarães Advogados. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá.


