Empresa baixada é devedora? O guia do advogado
Empresa baixada é devedora? Guia prático sobre a sucessão processual e desconsideração para credores e advogados.
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Atualizado às 13:37
Este artigo visa simplificar a compreensão dos mecanismos processuais e materiais que permitem ou impedem que sócios de uma LTDA - Sociedade Limitada respondam por débitos remanescentes da empresa extinta.
1. O contexto material: Dissolução, liquidação e a falsa extinção
Para entender quem processar, é vital diferenciar as etapas do fim de uma PJ - Pessoa Jurídica:
- Dissolução: O ato formal (voluntário, por distrato, ou judicial) que decide pelo encerramento da sociedade.
- Liquidação: O procedimento de "faxina" financeira, onde se apuram os ativos (créditos a receber) e se pagam os passivos (dívidas). A personalidade jurídica subsiste durante a liquidação, especificamente para que ela possa ser concluída. A PJ só é considerada extinta quando está totalmente liquidada.
- "Baixa" cadastral (CNPJ Inapto): É o cancelamento administrativo da inscrição. O STJ é enfático:
"a mera "baixa" administrativa, a condição de CNPJ "inapto" ou a mudança de endereço não comprovam a dissolução e extinção da personalidade jurídica."
Se uma empresa está apenas "baixada" ou "inapta", mas ainda tem dívidas ou créditos, sua personalidade jurídica pode ser considerada persistente para fins de regularização do passivo. A PJ só perde sua capacidade de ser parte no processo (pressuposto de existência da relação processual) após a conclusão da liquidação e a extinção formal, geralmente por meio do arquivamento do distrato na Junta Comercial.
2. Os dois caminhos: Sucessão processual (art. 110) vs. desconsideração (IDPJ)
A chave para o sucesso em uma cobrança judicial é saber se você deve pedir a sucessão processual (art. 110 do CPC) ou a desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ, art. 133 do CPC). Eles não se confundem.
2.1. Sucessão processual (art. 110 CPC): A "morte" regular
O art. 110 do CPC, que trata da morte da pessoa natural, é aplicado por analogia quando há a extinção regular da Pessoa Jurídica.
- Natureza: Transmissão da obrigação.
- Pressuposto: Extinção regular da PJ, comprovada pelo distrato social arquivado.
- Mecanismo processual: O procedimento adequado é a habilitação dos sucessores (art. 687 e ss. do CPC).
O ponto mais importante, especialmente para Sociedades Limitadas, é a extensão da responsabilidade. O STJ firmou que a responsabilidade dos sócios-sucessores é limitada. Os sócios só respondem pela dívida até o limite do patrimônio líquido positivo que lhes foi distribuído (partilhado) no momento da liquidação da sociedade. Se não houve partilha de ativos remanescentes (patrimônio líquido negativo), os sócios não respondem pessoalmente pelas dívidas da empresa.
2.2. Desconsideração da personalidade jurídica (art. 133 CPC): O abuso
O IDPJ - Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica não pressupõe a extinção da PJ, mas sim o seu abuso, permitindo ignorar temporariamente a autonomia patrimonial.
- Natureza: Sanção.
- Pressuposto: Uso abusivo da PJ, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial (art. 50 do CC).
- Mecanismo processual: Instauração do IDPJ - Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
- Efeito: Responsabilidade do sócio é pessoal e ilimitada (pela totalidade da dívida, como sanção), e não limitada ao ativo partilhado.
O STJ (nas turmas de Direito Privado) é rigoroso: a mera insolvência, a falta de bens ou o encerramento irregular (o "sumiço" da empresa) não bastam para autorizar a desconsideração em dívidas cíveis. É necessária a prova robusta de fraude.
3. Os cenários hipotéticos na prática processual
A escolha do momento e do meio processual é crucial para evitar prejuízos, especialmente em cobrança (monitória ou execução).
Cenário A: Ação proposta contra empresa já baixada/extinta (ilegitimidade de origem)
Como funciona para propor uma ação contra uma empresa que foi liquidada/baixada antes da propositura da ação?
Se a empresa já estava regularmente extinta (com distrato arquivado na Junta Comercial e baixa no CNPJ) antes do ajuizamento da ação (cobrança, monitória, execução), ela perdeu a capacidade de ser parte.
- Risco: Se o advogado ajuíza a ação contra a PJ extinta, o processo será fatalmente extinto sem resolução do mérito (art. 485, VI, do CPC), por ilegitimidade passiva.
- Ação correta: A ação deve ser proposta diretamente contra os ex-sócios, na qualidade de sucessores, e já instruída com a prova da extinção regular (distrato) e, idealmente, elementos que provem a partilha de ativos.
Exemplo judicial (polo ativo, mas aplica-se ao passivo): Um caso judicial foi extinto sem julgamento do mérito por inépcia da inicial, pois a empresa autora já havia sido baixada no CNPJ em 2015, não existindo mais como pessoa jurídica para firmar contrato em 2017 e figurar no polo ativo.
Cenário B: Extinção da empresa durante o processo (ação de conhecimento ou monitória)
Como funciona se a empresa é extinta durante o processo?
Se a extinção da empresa ocorre no curso da ação, aplica-se o art. 313, inciso I, do CPC, que determina a suspensão do processo para que a sucessão seja regularizada, à semelhança da morte da pessoa natural.
- Extinção regular (com distrato/liquidação voluntária): O credor deve requerer a sucessão processual (art. 110 CPC) por meio do procedimento de habilitação. A demanda prossegue contra os sócios, mas a responsabilidade deles estará limitada ao valor que receberam na partilha do patrimônio líquido positivo.
- Extinção irregular (sumiço, CNPJ Inapto): Se a empresa apenas desaparece, e o CNPJ fica "inapto", o STJ entende que isso não basta para a sucessão do art. 110. O credor deve, obrigatoriamente, buscar o IDPJ - Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Cenário C: Extinção após formação do título (início da execução)
Em caso mais específico, como na ação monitória, a empresa fosse extinta no início da execução, após a formação do título executivo?
A lógica é a mesma do Cenário B: a extinção da parte leva à suspensão e exige a regularização do polo passivo.
- Se a extinção foi regular: Habilitação (art. 110 CPC) dos sócios, com responsabilidade limitada ao ativo partilhado.
- Se a extinção foi irregular (sumiço na execução): O credor cível não pode redirecionar automaticamente. Deve instaurar o IDPJ (art. 133 CPC) e provar o abuso, fraude ou confusão patrimonial.
Nota crítica: A diferença para a execução fiscal (súmula 435)
É fundamental que advogados que atuam no cível não apliquem a lógica do Fisco.
Em execuções fiscais, o STJ tem o entendimento sumulado (súmula 435) de que a presunção de dissolução irregular da empresa que não funciona no domicílio fiscal legitima o redirecionamento da execução para o sócio-gerente.
Essa regra, baseada em dispositivos específicos do CTN, não é aplicada pelas turmas de Direito Privado do STJ em ações cíveis (cobrança/monitória). No cível, o desaparecimento (dissolução irregular) exige a instauração do IDPJ, e o credor ainda tem o alto ônus de provar o abuso/fraude.
4. Distinção de natureza: Sucessão vs. desconsideração
A diferença entre os institutos é de natureza jurídica:
|
Característica |
Sucessão Processual (art. 110 CPC) |
Desconsideração da Personalidade Jurídica (art. 133 CPC) |
|
Natureza |
Transmissão de obrigação em razão da "morte" da PJ. |
Sanção por abuso de direito/fraude. |
|
Fato Gerador |
Extinção Regular da PJ (dissolução, liquidação, distrato). |
Abuso da personalidade (desvio/confusão patrimonial). |
|
Personalidade Jurídica |
Extinta (Perda da capacidade de ser parte). |
Subsistente (Autonomia é ignorada temporariamente). |
|
Responsabilidade Sócio (LTDA) |
Limitada ao valor dos ativos distribuídos na partilha. |
Ilimitada (pessoal, pela totalidade da dívida). |
|
Irregularidade |
Dissolução irregular não autoriza o art. 110 no cível. |
Dissolução irregular é um indício, mas exige prova de abuso no cível. |
Conclusão: A importância da estratégia jurídica precisa
A correta identificação da situação da PJ devedora é o fator decisivo para evitar prejuízos.
- Se o credor ajuíza a ação contra uma PJ já regularmente extinta, o processo será extinto por ilegitimidade.
- Se a empresa desaparece durante o processo (dissolução irregular), o advogado cível não pode simplesmente invocar a súmula 435 do STJ, mas deve reunir provas robustas de abuso patrimonial para tentar a desconsideração.
- Se a empresa é extinta de forma regular, a sucessão é viável, mas a execução contra o sócio de LTDA será frustrada se não houver patrimônio líquido positivo a ser partilhado.
Em última análise, o credor cível deve realizar uma due diligence minuciosa (especialmente na Junta Comercial) antes de ajuizar a demanda e escolher o instrumento processual correto (Habilitação para extinção regular; IDPJ para irregularidade com abuso) para garantir que o art. 110 do CPC ou o art. 133 do CPC sejam aplicados de maneira técnica, protegendo o crédito ou, na defesa, o patrimônio do sócio. O uso inadequado dos institutos leva à perda de tempo e custos processuais.


