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Autocomposição e governança pública: Um novo eixo da eficiência administrativa

O artigo analisa a inserção dos métodos autocompositivos no âmbito da administração pública e seus impactos na eficiência administrativa.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Atualizado às 10:57

A utilização dos métodos adequados de resolução de conflitos no âmbito da Administração Pública, notadamente a mediação, a conciliação e a negociação, passou nos últimos anos de instrumento "pro forma" a eixo estratégico da gestão administrativa. A mudança integra um movimento mais amplo de democratização e racionalização da atuação pública: diante de uma sociedade cada vez mais complexa e litigiosa, onde o Estado começa a valorizar o diálogo e a construção de soluções consensuais, rompendo com a tradição de submissão acrítica ao Judiciário e com o mito de que a autoridade administrativa é incompatível com o acordo. O paradigma da Justiça multiportas - no qual diferentes formas de solução de conflitos coexistem e se complementam - abre espaço para uma governança cooperativa, orientada por princípios de eficiência, transparência e participação social.

Veja que a Autocomposição no setor público tem sido associada à redução de custos, à mitigação de riscos e ao aumento da legitimidade das decisões administrativas. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 já traz, em seu art. 5º, XXXV, a garantia do acesso à Justiça, e em seu art. 37, caput, a exigência de eficiência administrativa. Entretanto, apenas a partir da década de 2010 é que se consolida um arcabouço normativo específico voltado à mediação e à conciliação na esfera pública, destacando-se a lei de mediação (lei 13.140/15), a nova lei de licitações e contratos administrativos (lei 14.133/21) e atos regulamentares como o decreto 12.091/24, que instituiu a Rede Federal de Mediação e Negociação - Resolve, e a portaria normativa AGU 178/25, que estruturou a Câmara de Mediação e Conciliação da Administração Pública Federal. todos esses diplomas, aliados a iniciativas estaduais e municipais, desenham um cenário promissor em que a autocomposição se converte em instrumento de inovação, eficiência e boa governança administrativa.

Este artigo examina justamente esse movimento, apresentando as bases normativas, conceituais e institucionais da autocomposição na administração pública; mapeando experiências federais, estaduais e municipais; analisando as plataformas digitais de resolução consensual; discutindo os principais desafios; e sugerindo perspectivas para o fortalecimento dessa cultura.

1. Marco constitucional e normativo:

A construção de um ambiente favorável à autocomposição administrativa se fundamenta em diversos diplomas constitucionais e infraconstitucionais que delineiam as regras e os limites para a mediação e a conciliação envolvendo o setor público.

Constituição Federal (1988) - A Constituição consagra o acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e o direito à duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII), além de impor à administração pública os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput). Esses dispositivos legitimam a adoção de métodos extrajudiciais desde que observados os princípios constitucionais.

CPC de 2015 - O CPC/15 inaugura uma política pública de solução consensual de conflitos. O art. 3º, §§ 2º e 3º, afirma que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos e que conciliação, mediação e arbitragem são incentivadas. O art. 174 cria os Cejuscs - Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, que atendem também a administração pública. O art. 165 estabelece normas gerais para mediadores e conciliadores. Esses dispositivos inspiraram o CNJ a editar a resolução 125/10, que instituiu a política judiciária nacional de tratamento adequado de conflitos, incentivando a criação de Cejuscs em todos os tribunais.

Lei de mediação (lei 13.140/15) - A lei disciplina a mediação extrajudicial e judicial e dedica capítulo específico à autocomposição na administração pública. O art. 32 autoriza a criação de câmaras de prevenção e resolução de conflitos no âmbito das advocacias públicas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, estabelecendo que tais câmaras deverão dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração, avaliar a admissibilidade dos pedidos de mediação e promover termos de ajustamento de conduta. O art. 35 introduz a "transação por adesão" para controvérsias em que a União figure como parte, desde que haja autorização ou parecer da AGU - Advocacia-Geral da União. O art. 40 afirma que o agente público somente responderá por dolo ou fraude na autocomposição, afastando o temor de responsabilização indevida.

Nova lei de licitações e contratos administrativos (lei 14.133/21) - O art. 151 prevê expressamente que as controvérsias entre as partes decorrentes da execução dos contratos administrativos poderão ser solucionadas por conciliação, mediação e comissões de resolução de disputas. A norma também remete à lei de mediação e ao CPC, conferindo segurança jurídica para que entes públicos firmem acordos que envolvam direitos patrimoniais disponíveis.

Lei 13.867/19 (Mediação em desapropriações) - A lei alterou o decreto-lei 3.365/1941 para autorizar a mediação como meio de definir indenizações em desapropriações. O art. 10-B determina que, rejeitada a oferta do poder público, o particular poderá optar por mediação ou por procedimento arbitral, sendo que, na mediação, aplicam-se as normas da lei 13.140/15.

Decreto 12.091/24 (Resolve) - Regulamentando a lei de mediação no âmbito federal, o decreto criou a Rede Federal de Mediação e Negociação - Resolve, com o objetivo de prevenir e solucionar litígios que envolvam a administração pública federal, reduzindo a judicialização e melhorando a eficiência do Estado. O decreto conceitua mediação como o meio de solução em que um terceiro imparcial facilita o diálogo entre as partes, e negociação como o processo em que as partes buscam acordo diretamente, com ou sem auxílio de terceiros. Estabelece ainda objetivos como eliminar obstáculos a políticas públicas, reduzir litígios e incrementar a governança, cria instâncias de coordenação (Comitê Gestor, órgão central na AGU, unidades setoriais de mediação, pontos de negociação) e prevê sigilo das informações salvo acordo das partes.

Portaria normativa AGU 178/25 - A portaria reorganizou a CCAF - Câmara de Mediação e Conciliação da Administração Pública Federal dentro da Consultoria-Geral da União. Ela estabelece que a CCAF é responsável por mediar conflitos entre órgãos e entidades federais, inclusive nas esferas estadual e municipal quando houver interesse federal, e que a Câmara não atuará em processos de arbitragem. Entre suas competências estão: conduzir negociações e mediações, coordenar núcleos setoriais e locais, emitir termos de compromisso e promover transações por adesão. A portaria reforça que a autocomposição é preferencial frente à judicialização e orienta a celebração de acordos para prevenir litígios.

Portaria normativa AGU 144/24 (Plataforma pacifica) - A AGU editou norma criando a plataforma digital "Pacifica" para acordos extrajudiciais em massa, especialmente em disputas de baixa complexidade e alta repetitividade, como casos previdenciários. A portaria prevê que a plataforma seja utilizada após a análise administrativa negativa, possibilitando submissão de propostas, análise automatizada e celebração eletrônica de acordos. A iniciativa procura reduzir custos e estimular a cultura de diálogo, integrando consultoria e contencioso dentro da AGU. O decreto Resolve designa a AGU como órgão central da política de mediação e negociação, incorporando a plataforma como parte de um sistema multiportas.

Decreto 10.197/20 (Plataforma Consumidor.gov.br) - Este decreto tornou obrigatória a adesão dos órgãos e entidades federais à plataforma Consumidor.gov.br para resolução de conflitos de consumo, determinando que aqueles com plataformas próprias deveriam migrar até dezembro de 2020. A medida centraliza as reclamações e potencializa a resolução dialogada, com índices de solução superiores a 80%, prazo médio de resposta de sete dias e possibilidade de acompanhamento pelo cidadão.

Além disso, diversos estados e municípios criaram câmaras institucionais próprias inspiradas na lei de mediação. Entre as experiências relatadas em artigo da Revista Brasileira de Arbitragem e Mediação, destacam-se: Rio Grande do Sul, com a lei 14.794/15; Mato Grosso do Sul, com a resolução PGE/MS 242/17; Goiás, com a LC 144/18; Minas Gerais, com a lei 23.172/18 e o decreto 47.963/20; e Maranhão, com a lei 11.569/21. Em Minas Gerais, a lei 23.172/18 instituiu a CPRAC - Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos, reforçada pela LC 151/19 e pela resolução AGE 61/20, que regulamentaram o uso de negociação, conciliação e mediação na prevenção e solução de conflitos e destacaram o papel do procurador como facilitador, além do programa COMPOR DO MPMG. Todas essas iniciativas evidenciam a propagação da cultura de autocomposição pelos entes da federação.

Além das normas acima, merecem destaque: a embrionária resolução CNJ 125/10, que instituiu a política judiciária de tratamento adequado de conflitos e estimulou a criação de Cejuscs; a resolução CNMP 118/14, que determinou ao Ministério Público apoiar e divulgar métodos autocompositivos e criou centros de autocomposição; as portarias da AGU (1.281/07, 1.099/08, 481/09) e os decretos 7.392/10 e 10.608/21, que estruturaram a CCAF e o Sistema de Conciliação da Administração Pública Federal; e o próprio decreto 10.197/20, que integra a plataforma Consumidor.gov.

3. Experiências federais

3.1 Advocacia-Geral da União e CCAF

A AGU - Advocacia-Geral da União é protagonista da cultura autocompositiva federal. Desde a portaria 1.281/07, que criou a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal (hoje CCAF - Câmara de Mediação e Conciliação), a AGU desenvolve mecanismos para evitar litígios entre órgãos e entidades. A portaria foi complementada pelas portarias 1.099/08 e 481/09, pelo decreto 7.392/10 e pelo decreto 10.608/21, que fortaleceram a CCAF. A lei de mediação (2015) e a nova lei de licitações (2021) ampliaram as possibilidades de autocomposição.

portaria normativa AGU 178/25 consolidou o papel da CCAF como núcleo de mediação e conciliação no âmbito federal. Entre suas atribuições, a Câmara: (a) analisa e conduz procedimentos de mediação e conciliação entre órgãos e entidades federais, ou destes com Estados e Municípios; (b) coordena núcleos setoriais e locais; (c) celebra termos de ajustamento de conduta e de compromisso; (d) promove transações por adesão; e (e) não atua em arbitragem, concentrando-se na autocomposição.

Os resultados da atuação autocompositiva da AGU são expressivos. Entre fevereiro de 2023 e janeiro de 2024, as mediações conduzidas pela instituição evitaram a judicialização de demandas que somariam R$ 1,4 trilhão, número que demonstra o potencial econômico da autocomposição. Houve aumento de 142% no número de mediações concluídas em 2023 em relação a 2022. A AGU aponta que, ao dialogar com Estados e Municípios sobre dívidas previdenciárias e tributárias, alcançaram-se acordos que evitaram a criação de precatórios e reduziram a litigiosidade.

3.2 Rede Resolve e Plataforma Pacifica

decreto 12.091/24, ao instituir a Rede Federal de Mediação e Negociação (Resolve), estabeleceu governança integrada para a autocomposição. A rede é formada por um Comitê Gestor, órgão central sediado na AGU, unidades setoriais de mediação nos ministérios e entidades federais e pontos de negociação distribuídos nos demais órgãos. O comitê define diretrizes, monitora resultados e promove a articulação com o Judiciário e com tribunais de contas; o órgão central presta suporte técnico e capacitação; e as unidades e pontos de negociação conduzem casos concretos.

Na esteira do Resolve, a portaria AGU 144/24 criou a plataforma Pacifica, voltada à celebração de acordos extrajudiciais em massa. Destinada inicialmente a casos previdenciários, a plataforma possibilita que cidadãos e procuradores submetam eletronicamente propostas de acordo, que são analisadas de forma automatizada e validadas por servidores da AGU. Os objetivos da Pacifica incluem: (i) fortalecer a cultura de solução consensual; (ii) reduzir custos operacionais e tempo de tramitação; (iii) consolidar o protagonismo da AGU na gestão de conflitos; e (iv) integrar as unidades de consultoria e contencioso. O decreto que criou a Rede Resolve designa a AGU como órgão central da política de mediação e negociação, reforçando a coordenação dessas iniciativas.

A plataforma é inovadora porque utiliza algoritmos para verificar a elegibilidade de demandas e propor parâmetros de cálculo. Embora recentes, as experiências demonstram celeridade e previsão de expansão para outras áreas, como dívidas trabalhistas, seguridade e saúde. A AGU, entretanto, alerta que a efetividade da plataforma depende de integração com sistemas dos tribunais, treinamento de usuários e adesão de entes subnacionais.

3.3 Consumidor.gov.br

No campo das relações de consumo, a autocomposição ganhou impulso com o decreto 10.197/20, que tornou o Consumidor.gov.br a plataforma oficial para resolução extrajudicial de conflitos entre consumidores e fornecedores de produtos e serviços. A plataforma, gerida pela Senacon - Secretaria Nacional do Consumidor, do Ministério da Justiça, permite que o consumidor registre uma reclamação; o fornecedor responda em prazo curto; e as partes negociem com mediação da Senacon. Relatórios de 2024 apontam índice de solução de 81% e tempo médio de resposta de sete dias, revelando elevada eficiência e satisfação. Para a administração pública, a plataforma serve de canal de diálogo com cidadãos e reduz ações judiciais repetitivas envolvendo serviços públicos, como correios, empresas estatais e concessões de energia.

3.4 Mediação em desapropriações

lei 13.867/19 autorizou a mediação para definir o valor de indenizações em desapropriações. Antes, o particular que não aceitasse a oferta do poder público precisava ajuizar ação. Agora, ele pode escolher a mediação extrajudicial, a ser conduzida por mediadores cadastrados ou câmaras de mediação, com observância da lei 13.140/15. A medida busca reduzir o volume de ações e permitir soluções mais justas e céleres. É ferramenta relevante para projetos de infraestrutura e planos urbanísticos.

4. Experiências estaduais e municipais

Os entes subnacionais têm papel fundamental na disseminação da autocomposição, pois muitos conflitos que chegam ao Judiciário envolvem estados e municípios. Leis locais e iniciativas institucionais vêm construindo ambientes de diálogo e cooperação.

4.1 Minas Gerais - CPRAC e Compor

Em Minas Gerais, a lei 23.172/18 criou a CPRAC - Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos, destinada a evitar e resolver litígios envolvendo o Estado, municípios, autarquias e fundações. A LC 151/19 detalhou sua composição e competências, e o decreto 47.963/20 e a resolução AGE 61/20 disciplinaram procedimentos de negociação, mediação e conciliação. As normas preveem que a CPRAC funcione como instância de diálogo entre órgãos estaduais e entes municipais, orientada por procuradores do Estado, permitindo a celebração de termos de ajustamento e a elaboração de enunciados interpretativos.

O MP/MG criou o Programa Compor, considerado referência nacional. Reportagens de 2025 destacam que o Compor utiliza negociação, mediação e conciliação para resolver conflitos de alta relevância social, como regularização fundiária e projetos de mobilidade urbana. O programa promove capacitação de membros e servidores e mantém centro especializado em práticas autocompositivas. Segundo o MP/MG, casos que levavam anos são solucionados em meses, desbloqueando projetos e garantindo direitos. O êxito do Compor demonstra que a cultura do diálogo é compatível com a defesa do interesse público.

4.2  Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Goiás e outros estados

O Rio Grande do Sul criou, por meio da lei 14.794/15, a Câmara de Conciliação e Mediação da Administração Pública Estadual, vinculada à Procuradoria-Geral do Estado. A lei faculta a participação de municípios e de entidades privadas quando houver interesse público, prevendo que os acordos homologados terão eficácia de título extrajudicial. Em Mato Grosso do Sul, a resolução PGE/MS 242/17 instituiu a Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos, estabelecendo procedimentos de mediação e conciliação para resolver divergências entre secretarias, autarquias e empresas públicas. Já Goiás criou a LC 144/18, instituindo a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública, que, apesar do nome, foca majoritariamente em mediação e conciliação para controvérsias contratuais e de responsabilidade civil. Outros estados, como Maranhão (lei 11.569/21) e Pará (decreto 729/19), também criaram estruturas semelhantes.

4.3  Municípios e consórcios intermunicipais

Diversos municípios instituíram câmaras de autocomposição para conflitos internos e com cidadãos. As normas municipais, geralmente baseadas na lei de mediação, buscam reduzir a litigiosidade e aproximar gestores públicos da comunidade. Além disso, consórcios intermunicipais têm adotado mediação para gerir serviços compartilhados (saúde, saneamento, meio ambiente), evitando ações judiciais decorrentes de repasses financeiros ou divergências contratuais.

4.4  Instituições do Sistema de Justiça

Ministério Público e as defensorias públicas vêm fortalecendo núcleos de autocomposição. A resolução CNMP 118/14 orienta o MP a apoiar métodos autocompositivos e a criar centros de mediação, negociação e práticas restaurativas. A Defensoria Pública da União e as defensorias estaduais capacitam defensores para atuar em mediação, assegurando que pessoas vulneráveis participem de forma equilibrada de acordos. O TCU - Tribunal de Contas da União, por sua vez, aprovou resoluções permitindo a mediação em processos de controle externo, enfatizando que a conciliação deve observar o princípio da indisponibilidade do interesse público.

5  Plataformas digitais e inovação tecnológica

O uso de tecnologias digitais é elemento central das inovações em autocomposição. Plataformas online permitem escalar a mediação e a conciliação, reduzindo custos e aproximando o cidadão do Estado.

5.1  Consumidor.gov.br

A plataforma Consumidor.gov.br representa a experiência mais consolidada de mediação digital na administração pública. O decreto de 2020 determinou a adesão obrigatória de órgãos federais. A plataforma funciona como um ambiente de negociação assistida, no qual o consumidor cadastra a reclamação, o fornecedor responde, e a Senacon monitora indicadores de desempenho. O elevado índice de resolutividade (superior a 80%) e o curto prazo de resposta (média de sete dias) evidenciam a eficácia do modelo. Para a administração, a plataforma serve de termômetro de qualidade dos serviços e de ferramenta de gestão de conflitos, permitindo ajustes e prevenindo demandas judiciais em massa.

5.2  Pacifica

Plataforma Pacifica, criada pela AGU em 2024, visa replicar o sucesso do Consumidor.gov para demandas contra a União. Seu objetivo inicial é tratar ações previdenciárias de pequeno valor: cidadãos que têm benefícios negados administrativamente poderão, mediante credenciamento e análise automatizada, celebrar acordos antes de ajuizar ação. A plataforma utiliza algoritmos para identificar parâmetros de cálculo, submetendo a proposta a validadores humanos. Os benefícios esperados são redução do tempo de tramitação, economia de recursos e fortalecimento da cultura conciliatória. O desafio reside na integração com sistemas de tribunais, no treinamento de servidores e na expansão para outras áreas, como saúde, educação e tributos.

5.3  Plataformas estaduais e municipais

Alguns estados e capitais desenvolveram plataformas próprias de autocomposição. Em Minas Gerais, a CPRAC atua por meio de sistema eletrônico interno; no Ceará, a Procuradoria-Geral do Estado implantou plataforma de conciliação de créditos fiscais; e em São Paulo, a Procuradoria-Geral do Município utiliza o PPI - Programa de Parcelamento Incentivado com negociação online. O desafio é unificar sistemas e padronizar procedimentos para que cidadãos tenham experiência simplificada e integrada.

6. Desafios e obstáculos

Por fim, apesar dos avanços, a disseminação da autocomposição enfrenta diversos desafios, de ordem jurídica, cultural, institucional e tecnológica.Uma das principais controvérsias diz respeito à possibilidade de a administração compor conflitos que envolvam direitos considerados indisponíveis. Doutrinadores defendem que, embora direitos coletivos sejam indisponíveis, o gestor pode negociar interesses patrimoniais e ajustar condutas desde que respeitados os princípios constitucionais. A lei de mediação limita a autocomposição a direitos patrimoniais disponíveis, mas admite termos de ajustamento de conduta em questões coletivas desde que haja observância à legalidade. O Manual de Mediação da Justiça Federal enfatiza que as transações por adesão devem ser autorizadas ou ter parecer da AGU. Muitos gestores e procuradores ainda associam a autocomposição à renúncia de prerrogativas ou à admissão de erro. Há receio de responsabilização por "abrir mão" de créditos ou de admitir falhas administrativas. O art. 40 da lei de mediação, ao limitar a responsabilidade do agente público a dolo ou fraude, busca mitigar esse temor. A disseminação da cultura do diálogo requer capacitação, mudança de mentalidade e difusão de experiências positivas. A implantação de câmaras e plataformas exige mediadores capacitados, recursos materiais e infraestrutura tecnológica. A resolução CNMP 118/14 recomenda ao Ministério Público estimular cursos de mediação e criar estruturas de apoio. O art. 165 do CPC define requisitos para conciliadores e mediadores e exige capacitação. Os estados que criaram câmaras enfrentam desafios para estruturar equipes e garantir remuneração adequada. existência de múltiplas câmaras e plataformas requer coordenação para evitar duplicidades. O decreto 12.091/24 confere à AGU o papel de órgão central, mas sua atuação depende da cooperação de ministérios e entidades. Nos estados, a integração entre CPRACs, Ministérios Públicos e defensorias ainda é incipiente. A adoção de padrões interoperáveis para sistemas eletrônicos é fundamental para criar um ambiente multiportas de fato. Desta forma, a autocomposição envolve o equilíbrio entre sigilo das negociações e publicidade dos resultados. O decreto Resolve estabelece o sigilo de informações trocadas, salvo concordância das partes. O Manual de Mediação da Justiça Federal enfatiza que a confidencialidade protege a franqueza do diálogo, mas os acordos devem ser públicos para garantir controle social. Encontrar o ponto de equilíbrio requer protocolos claros e sistemas seguros.

7  Perspectivas e recomendações

A consolidação da autocomposição na administração pública depende de ações coordenadas entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como de articulação com o Ministério Público, Defensoria Pública e sociedade civil. Algumas medidas recomendadas são:

  1. Aperfeiçoar o arcabouço normativo - Embora a lei de mediação e a lei de licitações sejam marcos importantes, ainda há lacunas quanto à definição de direitos indisponíveis, procedimentos e consequências dos acordos. Propostas de aperfeiçoamento podem esclarecer a obrigatoriedade de pareceres da AGU e dos procuradores estaduais, prever incentivos para acordos de relevância social e disciplinar a forma de publicação dos termos.
  2. Institucionalizar câmaras e comissões - Estados e municípios devem criar ou consolidar câmaras permanentes de prevenção e resolução de conflitos, com equipe própria, regimento interno e mecanismos de cooperação com outros órgãos. A integração com Cejuscs e centros de autocomposição do MP e da Defensoria evitará sobreposição de esforços. A cultura do diálogo deve permear os concursos públicos e os planos de carreira.
  3. Capacitar agentes públicos - É fundamental investir em formação continuada de mediadores, conciliadores e negociadores, com ênfase em técnicas de comunicação, gerenciamento de impasses e análise de riscos. A resolução CNMP 118/14 recomenda a inclusão de disciplinas de autocomposição em cursos de formação de membros e servidores.
  4. Desenvolver plataformas integradas - A experiência do Consumidor.gov.br e da Pacifica mostra que a tecnologia pode potencializar a autocomposição. A criação de sistemas interoperáveis, com interface amigável e uso de inteligência artificial para triagem e proposta de acordos, pode reduzir o acervo de demandas. No entanto, deve-se assegurar a proteção de dados, a acessibilidade e a inclusão digital.
  5. Estimular a cultura do diálogo - A transformação cultural exige campanhas de sensibilização dirigidas aos gestores, advogados públicos e à sociedade. Divulgar casos de sucesso, prêmios e boas práticas pode inspirar outras instituições. O exemplo do Compor-MP/MG e de câmaras estaduais serve como modelo de eficiência e inovação. Debates acadêmicos e fóruns interinstitucionais contribuem para a consolidação desse paradigma.
  6. Monitorar resultados e garantir transparência - A legitimidade da autocomposição depende da confiança da sociedade. É essencial adotar indicadores de eficiência (tempo de resolução, economia financeira), de equidade (participação equilibrada das partes) e de impacto social (efetividade das políticas públicas). Os acordos devem ser publicados em repositório acessível, assegurando controle externo e interno, sem violar a confidencialidade das negociações.

Conclusão

Ao privilegiar o diálogo e a cooperação, o poder público dá passo importante para superar a cultura do litígio, reduzir custos e aumentar a eficiência, sem renunciar à legalidade e à defesa do interesse público. A legislação recente, a institucionalização de câmaras e plataformas digitais e a difusão de experiências federais, estaduais e municipais evidenciam que a autocomposição deixou de ser promessa e tem se tornado realidade.

Entretanto, os desafios são significativos: é preciso superar resistências culturais, estruturar núcleos permanentes, capacitar agentes, integrar sistemas, definir limites claros e assegurar transparência. A experiência demonstra que, quando bem aplicada, a autocomposição traz benefícios concretos - seja na solução de litígios previdenciários e de consumo, seja na mediação de disputas federativas ou na gestão de desapropriações. O futuro aponta para um Estado que dialoga, que reconhece a pluralidade de interesses e escolhe a via consensual como primeira opção. Trata-se de processo contínuo e evolutivo, que requer compromisso institucional e participação social.

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MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS. Programa Compor: boas práticas de autocomposição. Disponível em: https://www.mpmg.mp.br/portal/menu/comunicacao/noticias/tv-mp-entrevista-recebe-professor-marcelo-girade-para-falar-de-autocomposicao-e-mediacao.shtml#:~:text=De%20acordo%20com%20ele%2C%20o%C2%A0processo,os%20que%20existem%20aqui%E2%80%9D%2C%20afirmou

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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010. Disponível em: https://licitacoesecontratos.tcu.gov.br/6-1-9-meios-alternativos-de-resolucao-de-controversias/

JUSTINO DE OLIVEIRA ADVOGADOS. Artigo - Rede Resolve e Plataforma Pacifica. Disponível em: https://justinodeoliveira.com.br/direito-administrativo/inovacoes-na-solucao-de-conflitos-publicos-o-resolve-e-o-pacifica-na-agu/#:~:text=Recentemente%2C%20o%20governo%20federal%20adotou,2

ARTIGO - Mediação e conciliação na Justiça Federal. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/outras-publicacoes/manual-de-mediacao-e-conciliacao-na-jf-versao-online.pdf

 

Fernando Ávila

VIP Fernando Ávila

Advogado, Mestre em Direito, com especialização em contratos e experiência no setor consultivo - jurídico. Experiência em definição de estratégias e diretrizes para demandas de alta complexidade.

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