A vedação ao registro de loteamento em razão de ação penal do loteador
O registro imobiliário de loteamentos prescinde a regularidade das certidões jurídicas. Porém, parece-nos excessiva e ultrapassada a vedação de registro em caso de alguns apontamentos criminais.
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Atualizado às 14:48
Todo operador do direito que lida com parcerias imobiliárias e registro de loteamentos, seja em auditoria prévia ou reunindo a documentação para o efetivo registro teme que contra o loteador ou qualquer outro que deteve direitos reais relacionados ao imóvel nos últimos dez anos, apresente contra si ou administradores e sócios, em caso de pessoa jurídica, a existência de ação criminal contra o patrimônio ou administração pública.
O receio tem lastro claro e objetivo, pois o §2º do art. 18º da lei de parcelamento do solo (lei. 6.766/1979) é taxativo no sentido de vedar o registro de parcelamento do solo caso tramite, contra o loteador, ação criminal de referida natureza.
Contudo, apesar da vedação legal, que como dito é objetiva, cabe a nós operadores do mercado imobiliário questionarmos se tal disposição se justifica até os dias atuais, especialmente pelo fato de a legislação de parcelamento do solo (1979), apesar de pequenas reformas, ser pretérita à Constituição (1988), CC (2002) e até mesmo parte geral do CP (reforma de 1984).
Ressalta-se que a restrição aqui tratada se demonstra demasiadamente severa, uma vez que basta a simples existência de ação criminal, ou seja, desde uma ação recém distribuída ou aquela improcedente em outras instâncias, mas pendentes de recurso produzem o mesmo efeito, qual seja: a impossibilidade do registro do loteamento.
De início, notamos um forte flerte com a presunção de inocência do loteador (art. 5º, LVII da Constituição). Por óbvio, alguns afirmarão que são matérias de natureza distinta e que a presunção é mantida, contudo, a presunção de inocência deveria ser plena, ou seja, não impor limitações de liberdade, na esfera criminal, tampouco na esfera cível, o que não é encontrado se você limita o uso da propriedade pelo proprietário.
Além disso, tal limitação não se restringe ao loteador, mas se estende à gleba, uma vez que as restrições do loteador serão observadas por longos dez anos, independente da condição ou aquisição por terceiros.
Por mais que existam inúmeros precedentes da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo e até mesmo do Conselho Superior da Magistratura mantendo tal entendimento de vedação ao registro, parece-nos mais adequada as decisões que ponderam apenas o caráter econômico dos passivos do loteador, sejam eles criminais, cíveis ou trabalhistas, observando o quanto referidos passivos poderiam comprometer a entrega do lote adquirente1 2, pretensão esta plenamente legítima.
Apesar de moralmente ser mais passível de repreensão uma conduta que legitime uma demanda criminal, não podemos afastar o caráter econômico relacionado, pois ilícitos penais sempre são ilícitos cíveis, logo passíveis de precificação.
O cenário atual, também amplamente documentado na jurisprudência extrajudicial, demonstra uma tolerância com loteadores altamente endividados, com diversas ações judiciais e protestos, os quais possuem deferimento para registro do loteamento, com indicativo de suposta idoneidade financeira, também abordada no mesmo art. 18, §2º da lei 6.766/1979.
Assim, por todo esforço histórico, seja pela colidência da legislação específica com o cenário jurídico atual pautado pelo neoconstitucionalismo, restrições que uma ação em trâmite impõe ao loteador, impondo de fato limitações patrimoniais que extrapolam o razoável, uma vez que dívidas cíveis por vezes complexas encontram êxito no registro do loteamento, parece-nos adequado a revisão da jurisprudência, no sentido de limitação ao passivo jurídico que tramita em face do loteador, pouco importando a natureza.
Sabemos que referido raciocínio, por mais lógico e razoável que seja, deparar-se-á com a linha de atuação dos oficiais registradores, de perfil tradicionalmente positivistas ao tratar do tema. Todavia, surge um caminho a ser percorrido e a jurisprudência majoritária revisitada, prevalecendo o que realmente importa, com desenvolvimento econômico, geração de empregos e a ocupação ordenada de nossas cidades.
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1 Registro de Imóveis - Registro de loteamento - Ação penal ajuizada contra o ex-proprietário do imóvel e atual sócio administrador da empresa titular de domínio da área - Crime contra o patrimônio - Art. 171, § 3º, c.c. art. 71, ambos do Código Penal - Valores consignados na denúncia que não representam risco patrimonial aos adquirentes dos lotes - Pagamento do débito fiscal que deu origem à ação penal - Situação excepcional que autoriza o registro pretendido do loteamento - Dá-se provimento ao recurso para determinar que o procedimento de registro do loteamento prossiga na forma da Lei nº 6.766/79. (CSMSP - Apelação Cível: 1003311-21.2019.8.26.0291. Localidade: Jaboticabal Data de Julgamento: 05/06/2020 Data DJ: 16/06/2020. Relator: Ricardo Mair Anafe).
2 Administrativo e processual civil. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Impetração contra ato administrativo do Presidente do Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo que decidiu dúvida registral suscitada por tabelião. Hipótese em que o acórdão recorrido entendeu aplicável ao caso as vedações do art. 18 da lei 6.766/1979, que impedem o registro de loteamento na matrícula do imóvel quando o loteador esteja respondendo por crime contra a administração pública. Neste caso, os sócios acusados criminalmente se retiraram da sociedade em período temporal anterior ao implemento e pedido de registro do loteamento . Ademais, o loteador aqui é a pessoa jurídica com personalidade e patrimônio distintos de seus sócios e, portanto, não pode sofrer qualquer efeito de eventual futura condenação criminal. Existência ainda de aplicação dos arts. 54 e 55 da lei 13.079/2015, que impede a aplicação de qualquer efeito ao adquirente de atos que não estão averbados na matrícula do imóvel. Recurso ordinário da empresa loteadora provido, para conceder a segurança, consoante as peculiaridades do caso concreto. 1. Não se pode admitir que os eventuais efeitos da sentença penal em demanda criminal em trâmite contra ex-sócios da empresa loteadora possa impedir o registro do loteamento, a teor do art. 18 da Lei 6.766/1979, porquanto a pessoa jurídica possui personalidade e patrimônio próprios. 2. Além disso, neste caso, as pessoas que estão a responder criminalmente são ex-sócios, porquanto se retiraram da sociedade em data anterior à instituição do loteamento pela empresa e seu pedido de registro público, situação não amparada na vedação do art. 18 da Lei 6.766/1979. 3. Além disso, nos termos dos arts. 54 e 55 da Lei 13.079/2015, o adquirente de imóvel somente pode sofrer os efeitos de atos que estejam averbados na matrícula deste, o que não ocorreu no caso dos autos. 4. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança da Empresa loteadora a que se dá provimento, para conceder a segurança, conforme a particularidades deste caso concreto. (STJ - Data de Julgamento: 13/10/2020 Data DJ: 30/11/2020. Relator: SÉRGIO KUKINA).


