A Convenção de Haia, o STF e a urgente tarefa de proteger as crianças brasileiras
O STF deve priorizar o melhor interesse da criança em casos internacionais, evitando a aplicação automática da Convenção de Haia.
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
Atualizado às 09:48
O Brasil vive um momento crucial para o futuro das crianças envolvidas em litígios familiares internacionais. O STF voltou a discutir, na ADIn 4.245, a constitucionalidade e o alcance da Convenção de Haia sobre sequestro internacional de crianças. À primeira vista, o tema parece técnico e distante da vida cotidiana. Mas a forma como o Brasil interpreta esse tratado define se nossas crianças serão tratadas como sujeitos de direitos ou como "objetos circulantes" entre países.
Nas últimas duas décadas, formou-se uma cultura perigosa no Judiciário brasileiro: a aplicação quase automática da Convenção. Bastava um dos genitores acionar a autoridade central estrangeira para que se presumisse a ilicitude da vinda da criança ao Brasil e se pedisse o retorno imediato - em alguns casos, sem sequer ouvir a criança ou avaliar sua situação real. Esse automatismo transformou um tratado pensado para proteger crianças vítimas de sequestro verdadeiro em um instrumento de pressão para disputas adultas.
É justamente contra essa distorção que se levanta uma recente e notável decisão da 2ª vara de família do Rio de Janeiro. Em um caso concreto, o juiz constatou algo que, embora simples, vem sendo ignorado na prática: se a criança veio ao Brasil com autorização expressa da mãe, não há sequestro internacional. Não há remoção ilícita. E, sem ilicitude, não existe "retorno imediato". Esta leitura é não apenas coerente com a letra da Convenção, mas harmônica com sua finalidade e com a Constituição brasileira.
O magistrado deu um passo adiante ao rejeitar o uso da tutela provisória para "mandar a criança de volta", esclarecendo que retorno imediato não é liminar: é procedimento especial, dependente de contraditório mínimo, produção de prova e cooperação internacional. Em outras palavras, a Convenção não pode ser usada para impor decisões aceleradas, que desconsideram vínculos afetivos, escola, rede de apoio e a própria palavra da criança - aspectos essenciais para avaliar seu melhor interesse.
Esse avanço hermenêutico dialoga diretamente com a discussão que hoje ocorre no STF. A Corte tem a responsabilidade de afirmar, sem ambiguidades, que a Convenção de Haia não se sobrepõe ao art. 227 da CF, que garante à criança prioridade absoluta e a coloca no centro de qualquer decisão que a envolva. A aplicação automática da Convenção, como se fosse uma espécie de mandado internacional de devolução, contraria frontalmente o sentido humanista da CF/88.
É preciso deixar claro: a Convenção de Haia não foi criada para resolver disputas entre adultos, muito menos para punir o genitor que decide residir no Brasil. Ela foi criada para evitar sequestros reais - aqueles em que um dos pais retira unilateralmente a criança do seu ambiente de vida, sem consentimento e de forma clandestina. Quando há autorização, quando há mudança legítima, quando a criança está integrada no Brasil, falar em "sequestro" é distorcer a realidade e instrumentalizar um tratado internacional.
A decisão do juiz do Rio de Janeiro marca, portanto, um ponto de inflexão. Reconhece a realidade das famílias transnacionais, respeita a autonomia parental, e, sobretudo, devolve à criança o protagonismo que lhe foi tomado por interpretações mecânicas e excessivamente formalistas. Ao analisar a residência habitual atual, os vínculos afetivos concretos e a estabilidade emocional, o magistrado faz aquilo que deveria ser regra e não exceção: coloca a vida real da criança acima de abstrações jurídicas.
O STF precisa consolidar esse caminho. Há muito, o Brasil vinha tratando a Convenção de Haia como um dispositivo automático, quando na verdade ela exige cautela, ponderação e sensibilidade. A ADIn 4.245 oferece à Suprema Corte a oportunidade histórica de reafirmar que nenhum tratado está acima da Constituição, e que o melhor interesse da criança não é frase de manual - é princípio jurídico vinculante.
As crianças brasileiras que vivem entre fronteiras não podem mais esperar. O país precisa abandonar a lógica do retorno a qualquer custo e adotar uma interpretação madura, técnica e profundamente humana. A decisão do juiz do Rio mostrou que isso é possível. Cabe agora ao STF transformar essa luz isolada em diretriz nacional.


