MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Sandbagging: O jogo contratual e a boa-fé no Direito brasileiro

Sandbagging: O jogo contratual e a boa-fé no Direito brasileiro

Entender o sandbagging é fundamental, pois ele toca diretamente em um dos pilares do nosso Direito Civil: O princípio da boa-fé objetiva.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Atualizado às 14:18

O universo dos contratos de compra e venda de empresas (conhecidos como operações de fusões e aquisições ou M&A) é repleto de termos e cláusulas importados do sistema jurídico internacional, especialmente do common law (direito anglo-saxão). Um desses termos que gera intenso debate no Brasil é o "sandbagging".

1. O que é "sandbagging"? Origem e definição

A palavra "sandbagging" (que, em tradução literal, significa "saco de areia") carrega uma conotação histórica de astúcia e engano.

A expressão, originária do século XIX, era usada para descrever a conduta de gangues que enchiam meias com areia (aparentemente inofensivas) para agredir suas vítimas de forma sorrateira, obtendo uma vantagem.

No contexto jurídico e empresarial, o sandbagging se refere a uma prática específica em contratos de aquisição de empresas:

  • Definição simplificada: Ocorre quando o comprador descobre que uma declaração ou garantia feita pelo vendedor no contrato (as famosas R&Ws) é falsa ou imprecisa durante a fase de auditoria (due diligence).
  • A prática: O comprador, ciente da falha, opta por não informar o vendedor sobre o problema, conclui o negócio (o closing) e, somente depois, pleiteia uma indenização por quebra contratual baseada naquela informação que ele já sabia ser inverídica.

O cerne da controvérsia é se essa utilização da informação obtida para buscar indenização futuramente configura uma violação da boa-fé e dos limites da liberdade contratual no Direito brasileiro.

2. A boa-fé objetiva (Art. 422 CC) como pilar do Direito Contratual

O Direito Contratual brasileiro, por ser um sistema de civil law, é fortemente regido por princípios éticos de conduta.

O art. 422 do CC é o principal pilar que sustenta essa exigência, determinando que "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

A boa-fé objetiva exige dos envolvidos um padrão de comportamento leal, honesto e transparente.

O conflito com o sandbagging

A conduta de sandbagging (saber do problema e silenciar para lucrar depois) é vista por muitos juristas como a antítese dessa lealdade, pois violaria deveres anexos, como o dever de informar e a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium).

O principal obstáculo para a validade da prática de sandbagging no Brasil é justamente o potencial desrespeito à boa-fé. O comprador que age dessa forma pode ter seu comportamento interpretado como desleal ou abusivo.

Se o contrato é omisso (não fala nada) sobre o sandbagging, a doutrina majoritária no Brasil tende a adotar uma postura anti-sandbagging. Nesses casos de silêncio, a admissibilidade da prática é casuística (depende da análise concreta do caso) e sujeita ao julgamento sobre a real intenção e o nível de conhecimento do comprador.

Além disso, o exercício de um direito, mesmo que contratualmente previsto, pode ser considerado um abuso de direito (art. 187 do CC) se exceder os limites impostos pela boa-fé.

3. As cláusulas de sandbagging: Pró ou contra?

Para mitigar a incerteza jurídica gerada pelo conflito entre a autonomia privada e a boa-fé objetiva, as partes em contratos sofisticados podem optar por incluir cláusulas expressas que definem claramente a alocação de risco.

O Direito brasileiro, especialmente após a lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), valoriza a autonomia privada e a alocação de riscos definida pelas partes em contratos empresariais paritários, desde que não violem normas de ordem pública ou a boa-fé.

A) Cláusula anti-sandbagging (pró-vendedor)

Esta cláusula é a que proíbe expressamente o comprador de buscar indenização se ele já tinha conhecimento da falha antes do fechamento do negócio.

  • Como auxilia: Esta cláusula é considerada amplamente válida no Brasil, pois está alinhada com a boa-fé objetiva. Ela incentiva a transparência e a discussão imediata dos problemas durante a due diligence, garantindo maior estabilidade ao negócio.

B) Cláusula pro-sandbagging (pró-comprador)

Esta cláusula é a que expressamente permite que o comprador busque indenização pela violação de uma garantia, mesmo que ele soubesse da inveracidade antes de fechar o negócio.

  • Como auxilia: Ela trata as garantias (R&Ws) como um mecanismo de seguro ou alocação de risco. Sua principal utilidade é a eficiência negocial: evita que o comprador precise parar a transação para renegociar ou precificar ex ante (antes) cada pequeno risco conhecido, economizando tempo e custos de transação.

A conclusão consolidada é que, embora a boa-fé (art. 422) permaneça como um limite, as cláusulas expressas de pro-sandbagging e anti-sandbagging são, via de regra, plenamente válidas no Direito brasileiro, pois representam a livre manifestação da vontade das partes e a alocação de riscos em contratos empresariais. Elas oferecem segurança ao definir previamente as "regras do jogo" entre as partes.

Caio Vinicius Pereira da Silva

VIP Caio Vinicius Pereira da Silva

Caio Vinicius Pereira Pacheco - Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - Formado em Analista Fiscal e Gestão Tributária pelo SENAC - Pesquisador Jurídico - CEA/AMBIMA

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca