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Planejamento patrimonial: O tênue liame entre o lícito e o ilícito

Planejamento patrimonial é legítimo, mas tem limites: Quando visa fraudar credores, o lícito se torna ilícito. Tempo e intenção definem a fronteira entre gestão e fraude.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Atualizado às 14:53

A crescente sofisticação das relações econômicas e a expansão dos instrumentos jurídicos legítimos voltados à gestão do patrimônio, como holdings familiares, doações com reserva de usufruto, fundos exclusivos, FIPs, estruturas offshore, entre outros, têm ampliado o espaço de atuação da autonomia privada na organização patrimonial.

Esse fenômeno, embora legítimo e amparado pelo ordenamento jurídico, traz consigo uma questão delicada: Até que ponto o planejamento patrimonial constitui exercício lícito da liberdade de organização e quando se transmuta em fraude ou abuso de direito?

O tema revela um liame tênue entre o lícito e o ilícito, entre a elisão legítima e a evasão disfarçada, entre a eficiência sucessória e a blindagem abusiva.

A autonomia privada, i.e, o poder que os particulares têm de regular da própria vontade, as relações de que participam1, encontra limites quando sua instrumentalização visa frustrar credores, iludir o fisco ou mascarar a verdadeira realidade econômica de um negócio jurídico.

É a partir dessa perspectiva que o presente texto se propõe a examinar brevemente os limites jurídicos da autonomia privada na organização do patrimônio, explorando os fundamentos legais e os parâmetros interpretativos que delimitam o campo do planejamento patrimonial legítimo e o início da fraude.

A resposta quanto a indagação me parece um tanto quanto... simples. Por incrível que pareça.

Os instrumentos de planejamento patrimonial são absolutamente legítimos e não apenas podem, como devem ser utilizados. Seus benefícios são amplos: proporcionam uma gestão mais racional do patrimônio, conferem segurança jurídica às relações familiares e empresariais, e reduzem o potencial de litígios, sobretudo no contexto da administração de grandes fortunas e da sucessão entre gerações, i.e, assume papel fundamental na preservação e continuidade do patrimônio familiar.

O momento em que se promove a reorganização patrimonial é, em verdade, um dos elementos que define a natureza jurídica do ato. Assim, o tempo atua como o critério distintivo entre o planejamento legítimo e o artifício fraudulento.

Não há que se falar em planejamento sucessório ou patrimonial quando o detentor do patrimônio já se encontra em situação de endividamento.

O planejamento, por sua natureza, é ato de prevenção e não de reação.

Quando estruturado após a constituição de obrigações ou diante da iminência de execução, perde seu caráter legítimo.

Nesses casos, a reorganização patrimonial não visa eficiência ou racionalidade econômica, mas tão somente a ocultação de bens e a frustração de direitos alheios, o que desnatura por completo a finalidade lícita do instituto.

Diante de atos fraudulentos, o credor pode valer-se de diferentes mecanismos de proteção. Conforme a natureza da irregularidade, pode requerer o reconhecimento de simulação, a declaração de fraude contra credores, o reconhecimento de fraude à execução ou a desconsideração da personalidade jurídica, em todas suas formas.

O E. Tribunal de Justiça de São Paulo é firme no sentido de coibir práticas fraudulentas articuladas das mais diversas formas:

Agravo de instrumento - Incidente de desconsideração de personalidade jurídica - Arresto liminar de bem imóvel e de ativos financeiros do réu - Decisão que deferiu parcialmente o pedido de tutela provisória de urgência - Cabimento parcial da insurgência manifestada pelo exequente - Admissibilidade de postulação de medidas acautelatórias urgentes, nos termos do previsto nos arts. 300, 301 e 799, VIII, todos do CPC/15 - Fatos narrados na exordial e farta documentação colacionada que apontam para relevantes indícios de uso abusivo da personalidade jurídica - Indícios de uso de holding familiar para blindar o patrimônio do coexecutado de forma fraudulenta com objetivo de lesar credores - Probabilidade do direito e perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo inicialmente identificados - Possibilidade - Deferimento parcial da tutela provisória de urgência para o arresto cautelar dos imóveis indicados - Decisão parcialmente reformada - Recurso parcialmente provido. (TJ-SP - Agravo de Instrumento: 22062003420258260000 Ribeirão Preto, Relator.: Sergio Gomes, Data de Julgamento: 01/10/2025, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 01/10/2025)

A despeito do momento da reorganização patrimonial, já é uníssono que os atos preparatórios a blindagem patrimonial, prevendo situação de endividamento ou tomada de empréstimos que já tem intenção de inadimplir, também são considerados atos fraudulentos:

[...] 5 . No caso, verificou-se que os agravantes, José Francisco e Maria José Gentile Coelho Leal, constituíram a holding Arandu dois meses antes da concessão de empréstimo, e, posteriormente, transferiram as cotas para seus filhos sem contraprestação, enquanto permaneciam como administradores, configurando blindagem patrimonial. 6. Restou comprovado que a integralização do capital social da Arandu foi feita com patrimônio pessoal dos executados, e o usufruto foi reservado em benefício deles, caracterizando abuso da personalidade jurídica e fraude contra credores. 7 . A decisão agravada acertadamente concluiu que houve confusão patrimonial e desvio de finalidade, justificando a desconsideração da personalidade jurídica. IV. Dispositivo e tese 8. Recurso não provido . Tese de julgamento: "A desconsideração da personalidade jurídica é cabível quando configurado abuso da personalidade jurídica por confusão patrimonial ou desvio de finalidade, especialmente quando há blindagem patrimonial destinada a lesar credores." Dispositivos relevantes citados: Código Civil, art. 50. Jurisprudência relevante citada: STJ, REsp 1647362/SP; TJSP, Precedentes deste E . Tribunal de Justiça. (TJ-SP - Agravo de Instrumento: 22516832420248260000 São Paulo, Relator.: Achile Alesina, Data de Julgamento: 24/09/2024, 15ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/09/2024)

No tocante a fraude contra credores, mutatis mutandis, já existe, inclusive, a relativização da anterioridade do crédito como pressuposto de procedência para o reconhecimento da fraude contra credores quando há atuação predeterminada com o intuito de lesar credores futuros.

PROCESSO CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FRAUDE PREORDENADA PARA PREJUDICAR FUTUROS CREDORES. ANTERIORIDADE DO CRÉDITO. ART. 106, PARÁGRAFO ÚNICO, CC/16 (ART. 158, § 2º, CC/02). TEMPERAMENTO.

1. Da literalidade do art. 106, parágrafo único, do CC/16 extrai-se que a afirmação da ocorrência de fraude contra credores depende, para além da prova de consilium fraudis e de eventus damni, da anterioridade do crédito em relação ao ato impugnado.

2. Contudo, a interpretação literal do referido dispositivo de lei não se mostra suficiente à frustração da fraude à execução. Não há como negar que a dinâmica da sociedade hodierna, em constante transformação, repercute diretamente no Direito e, por consequência, na vida de todos nós. O intelecto ardiloso, buscando adequar-se a uma sociedade em ebulição, também intenta - criativo como é - inovar nas práticas ilegais e manobras utilizados com o intuito de escusar-se do pagamento ao credor. Um desses expedientes é o desfazimento antecipado de bens, já antevendo, num futuro próximo, o surgimento de dívidas, com vistas a afastar o requisito da anterioridade do crédito, como condição da ação pauliana.

3. Nesse contexto, deve-se aplicar com temperamento a regra do art. 106, parágrafo único, do CC/16. Embora a anterioridade do crédito seja, via de regra, pressuposto de procedência da ação pauliana, ela pode ser excepcionada quando for verificada a fraude predeterminada em detrimento de credores futuros.

4. Dessa forma, tendo restado caracterizado nas instâncias ordinárias o conluio fraudatório e o prejuízo com a prática do atoao contrário do que querem fazer crer os recorrentes e mais, tendo sido comprovado que os atos fraudulentos foram predeterminados para lesarem futuros credores, tenho que se deve reconhecer a fraude contra credores e declarar a ineficácia dos negócios jurídicos (transferências de bens imóveis para as empresas Vespa e Avejota). 5. Recurso especial não provido.(REsp n. 1.092.134/SP, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 5/8/2010, DJe 18/11/2010.)

Como já mencionado, outrossim, a constituição de sociedade para fins de planejamento patrimonial, após, inclusive, a citação do devedor, constitui fraude à execução.

AGRAVO DE INSTRUMENTO - Execução por título extrajudicial - Duplicatas - Alegação de fraude à execução - Constituição de sociedade empresária (cujo objeto é a administração dos bens do executado e sua esposa) pelo executado (juntamente com sua esposa e filhos) após sua citação no processo de execução, para a qual foram transferidos todos os bens do seu patrimônio (e o da esposa casada no regime da comunhão parcial de bens), os quais serviram para integralizar quase a integralidade do capital social - Quotas sociais (tanto do executado, quanto da esposa e dos filhos) gravadas com as cláusulas de impenhorabilidade, inalienabilidade e incomunicabilidade - Evidência de consilium fraudis a partir do liame familiar do executado com os demais sócios da sociedade - Inquestionável má-fé do executado e dos demais sócios da sociedade - Fraude à execução reconhecida - Ineficácia da transferência/integralização do capital social com os bens do patrimônio do executado declarada em relação à exequente - Decisão reformada - Agravo provido. (TJ-SP - Agravo de Instrumento: 2169956-14.2022.8 .26.0000 Iepê, Relator.: Alexandre David Malfatti, Data de Julgamento: 17/01/2023, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/01/2023)

Ressalta-se que o planejamento patrimonial inicialmente legítimo pode, ao longo do tempo, configurar abuso de personalidade jurídica, conforme a conduta mantida pelo instituidor. Verifica-se o abuso quando, a despeito da transferência formal de bens para estrutura societária (e.g, holding familiar), o titular originário preserva ingerência direta sobre o patrimônio, exercendo poderes de gestão, administração ou fruição econômica incompatíveis com a autonomia da pessoa jurídica. Essa situação evidencia confusão patrimonial e autoriza a desconsideração da personalidade jurídica.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Decisão que deferiu pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa executada, para que respondam os sócios e, inclusive, o sócio oculto. Desconsideração expansiva da personalidade admissível em incidente . Precedente do Col. STJ. Abuso da personalidade jurídica devidamente comprovado. Sócio oculto que gerenciava a empresa dos filhos . Busca de bens infrutífera. Confusão patrimonial. Preenchimento dos requisitos dos art. 50 do Código Civil. Litigância de má-fé dos agravantes afastada. Decisão mantida. Recurso desprovido. (TJ-SP - Agravo de Instrumento: 2063425-30 .2024.8.26.0000 Barueri, Relator.: Schmitt Corrêa, Data de Julgamento: 10/06/2024, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 10/06/2024)

Por fim, e não menos importante, a simulação também ganha cenário relevante, uma vez que a declaração enganosa da vontade para ludibriar credores, é nula.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de busca e apreensão convertida em depósito. Cumprimento de sentença. Decisão indeferindo a penhora sobre os frutos e rendimentos dos imóveis matriculados sob os nºs 1.719 e 5.892 do CRI de Birigui, reconhecendo a impossibilidade de discussão sobre suposta simulação no bojo da presente execução. Insurgência do exequente. Admissibilidade. Simulação que prescinde de ação própria. Precedentes do STJ e deste Egrégio Tribunal. Executado que doou os imóveis para suas filhas, continuando a exercer a administração sobre os mesmos. Fato incontroverso, que demonstra conluio entre pai e filhas, configurando uma declaração enganosa de vontade, com a intenção de aparentar negócio jurídico diverso do efetivamente pretendido e ludibriar credores. Simulação evidente. Nulidade incidental das doações que se mostra de rigor. Deferimento de penhora do percentual de 12,5% dos frutos e rendimentos recebidos pelo recorrido. Recurso provido.  (TJSP; Agravo de Instrumento 2123566-15.2024.8.26.0000; Relator (a): Marcos Gozzo; Órgão Julgador: 30ª Câmara de Direito Privado; Foro de Birigui - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/10/2024; Data de Registro: 24/10/2024)

Conclui-se, portanto, que a linha que separa o planejamento patrimonial legítimo da fraude não é difusa: é definida pelo binômio tempo e intenção.

Nesta linha, a jurisprudência tem sido enfática: a forma não prevalece sobre a substância. Não importa a sofisticação da estrutura jurídica empregada se sua finalidade última é lesar credores. O direito não protege astúcia, protege boa-fé.

Agradeço aos superintendentes do ASA, Daniel de Vitto e Rodrigo Cuano e a advogada Bruna Serur (ASA) pelas intensas e produtivas conversas sobre o tema e pelos valiosos insights que enriqueceram o desenvolvimento deste artigo.

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1 JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. 3. Autonomia privada: Conceito e natureza, em uma perspectiva estrutural e dogmática - 4. A Autonomia Privada como Princípio Fundamental da Ordem Jurídica In: JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Responsabilidade civil - Teoria geral. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2010. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/responsabilidade-civil-teoria-geral/1499830773. Acesso em: 28 de Outubro de 2025.

Leonardo Pelati

VIP Leonardo Pelati

Advogado. Pós-graduado em Processo Civil. Especialista em Asset Recovery, Special Situations com ênfase em Distressed Assets. Recuperação Judicial e Falência. MBA em Gestão de Riscos FIA/USP.

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