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Recuperações judiciais como reflexo da crise econômica nacional

A RJ deixou de ser medida excepcional e passou a refletir o estresse financeiro sistêmico decorrente de juros elevados, restrição de crédito e compressão de margens no setor produtivo.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Atualizado às 14:53

A recuperação judicial nunca foi concebida como um instituto de uso cotidiano. A sua estrutura legislativa foi pensada para dar fôlego a empresas viáveis momentaneamente atingidas por crise financeira, preservando a continuidade da atividade econômica, os postos de trabalho, as cadeias produtivas e, em sentido mais amplo, a função social da empresa.

Entretanto, a realidade brasileira recente revela que o mecanismo deixou de ser uma providência excepcional, acionada apenas diante de falhas de gestão ou de circunstâncias isoladas, e passou a refletir tensões estruturais da economia nacional.

Os números deixam clara essa mudança de cenário: somente em 2024 foram registrados 2.273 pedidos de recuperação judicial, um aumento de 61,8% em comparação com 2023 e o maior volume já observado na série histórica. Paralelamente, 7,2 milhões de empresas constavam como inadimplentes, o que corresponde a 31,6% dos negócios ativos, indicando uma deterioração profunda da capacidade de solvência do setor produtivo.

Esse fenômeno não se limita aos segmentos urbanos, industriais, comerciais ou de serviços. O agronegócio, um dos pilares do PIB brasileiro e tradicionalmente associado à resiliência econômica, passou a integrar de forma significativa as estatísticas de reestruturação. No segundo trimestre de 2025, houve aumento de 31,7% nos pedidos de recuperação judicial no setor, com protagonismo inédito de produtores rurais organizados como pessoa jurídica, ainda que o período tenha sido marcado por safras volumosas e recordes de exportação.

O dado é revelador: o crescimento dos pedidos não decorre predominantemente de falhas internas das empresas, mas de um contexto macroeconômico capaz de pressionar simultaneamente o fluxo de caixa de agentes econômicos de diferentes portes e setores. A manutenção prolongada da taxa básica de juros em patamares elevados encareceu drasticamente o custo do capital e o serviço da dívida. A inflação persistente elevou custos operacionais e reduziu margens. E o aumento da inadimplência levou instituições financeiras e cooperativas de crédito a restringirem a concessão de financiamentos, criando um círculo vicioso no qual quem mais necessita de crédito é justamente quem encontra maior dificuldade para obtê-lo.

Nesse ambiente, a recuperação judicial passou a desempenhar um papel que ultrapassa o processo judicial em si, convertendo-se em instrumento de reorganização negocial, reequilíbrio contratual, redesenho societário, renegociação de dívidas estratégicas e recomposição de liquidez.

A lógica é especialmente nítida no agronegócio, onde relações econômicas se estruturam por barter, CPR, contratos de fornecimento, garantias cruzadas, operações estruturadas e arrendamentos interdependentes. A crise de um único participante pode irradiar risco para toda a cadeia - tradings, fornecedores, cooperativas e transportadores -, razão pela qual os pedidos recentes se apresentam mais complexos e, não raro, antecedidos por tratativas coletivas com grupos de credores antes do ajuizamento formal.

As projeções apontam que o volume de recuperações judiciais deverá ultrapassar a marca de 3.000 pedidos em 2025, com destaque para micro e pequenas empresas, mas sem qualquer sinal de retração da participação do agronegócio, o que indica tratar-se de fenômeno estrutural e não episódico.

Nesse contexto, o papel do advogado se transforma de modo substancial. Atuar em recuperação judicial já não se limita a contencioso ou condução processual. Exige domínio de macroeconomia, comportamento de crédito, governança corporativa, análise financeira e desenho contratual estratégico.

Da mesma forma, credores institucionais, especialmente bancos e cooperativas, precisam desenvolver políticas de risco mais inteligentes, que permitam distinguir empresas estruturalmente inviáveis daquelas apenas momentaneamente descapitalizadas.

Se outrora a recuperação judicial era vista como recurso extremo para empresas à beira da falência, hoje se configura como um mecanismo de reorganização econômica em ciclos de estresse sistêmico. A mudança de paradigma - e não apenas o salto numérico - é o que melhor revela o momento econômico brasileiro.

Paulo Bernardino

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