Antes do último ato: As tragédias que começam no silêncio
Reflexão sobre violências que desvivem mulheres antes do último ato. O texto aborda silêncio institucional, puerpério, violência processual e necropolítica que as empurram para escolhas impossíveis.
terça-feira, 25 de novembro de 2025
Atualizado às 11:43
Algumas histórias chegam até nós como se começassem no momento do disparo, do impacto, da reação extrema. Mas quem acompanha a vida das mulheres sabe que nenhuma história começa ali. Antes daquele instante final existe uma longa sequência de medos, tentativas de pedir ajuda, silêncios institucionais e noites mal dormidas que nunca viram notícia. Na maioria das vezes a decisão é, inclusive, de sucumbir, de desistir de tentar salvar a própria sobrevivência, e isso vai muito além da vida, acabando por se entregar ao ciclo que a domina.
Isso não significa defender ou justificar condutas extremas. A ideia de fazer Justiça com as próprias mãos, ou se entregar a violência, é a marca de uma Justiça e de um estado que tardou para chegar. Aceitar, ou melhor, se entregar a cometer um ato violento dentro deste contexto, traz consequências profundas, inclusive a quem cometeu, que talvez nem pensou nas consequências, mas ainda assim entendeu que elas eram menos doloridas que viver como vítima.
Embora difícil de admitir, nem sempre é uma escolha, e quando se escolhe, ou se sujeita as condições, ela não acontece no exato minuto da tragédia. Porém é uma vida que se coloca entre continuar sendo lentamente desviva por um ciclo de violência ou tentar sobreviver como é possível. E ninguém deveria ser submetido a escolhas que sejam divididas entre duas dores. Sobretudo em um contexto em que o julgamento social costuma chegar rápido demais para as mulheres e tarde demais para os homens que as violentaram.
O julgamento social que recai sobre as mulheres possui um rigor que nunca se aplica aos homens. A elas é exigido equilíbrio absoluto, autocontrole infinito e capacidade de suportar dores que ninguém mais suportaria. A eles é concedido o benefício da dúvida, a narrativa da provocação, o retrato do pai dedicado mesmo quando há sinais explícitos de manipulação ou violência. A sociedade avalia mulheres como se fossem sempre responsáveis por prevenir tragédias, mesmo quando já estão emocionalmente destruídas. Esse padrão duplo cria um ambiente onde a mulher sempre falha, não importa o que faça, enquanto o homem é sempre visto como alguém que merece compreensão. É nesse desequilíbrio que tragédias se formam.
Quando uma mulher denuncia, é comum que ninguém acredite. Quando pede ajuda, dizem que ela está exagerando. Quando tenta se proteger, mandam que tenha calma. Quando reage ao desespero, chamam de monstruosa. É como se sua vida inteira ficasse dentro de uma vitrine pronta para ser avaliada. Tudo o que ela faz é observado com lupa. Tudo o que ele faz é relativizado com boa vontade.
Quando falamos de violência, ainda existe uma tendência de enxergar apenas o sangue ou o impacto direto. Mas há violências contínuas que desvivem as mulheres aos poucos. Violências que retiram a alegria, a autonomia, a maternidade, a capacidade de decidir, a saúde mental, a identidade. Violências que ferem sem deixar marca. Violências que minam vínculos, transformam a casa em território inseguro e fazem a mulher duvidar de si mesma. Essas violências, embora silenciosas, são devastadoras. E quando a mulher chega ao limite, muitas vezes é por causa dessa soma de pequenas mortes diárias que ninguém viu, porque ninguém quis ver.
Há uma dimensão teórica que ajuda a compreender esses ciclos de abandono. Achille Mbembe fala sobre necropolítica ao descrever como determinados grupos são deixados à beira da própria sobrevivência, expostos a formas de morte lenta, abandono e desgaste contínuo. Entre mulheres e crianças, essa necropolítica se manifesta não pela morte direta, mas pela negligência que as deixa vulneráveis à violência, à manipulação, ao adoecimento emocional e ao colapso das redes de proteção. É uma política da omissão que define quais vidas merecem investimento, escuta e urgência, e quais serão obrigadas a sobreviver sozinhas. E é precisamente nesse cenário que muitas mulheres chegam ao limite, não por escolha, mas por falta de alternativas reais.
O puerpério é um desses territórios que revelam a precariedade do cuidado destinado às mulheres. Ainda assim, é um dos momentos em que as mulheres mais são deixadas sozinhas. Quando há um colapso emocional, uma ruptura psíquica ou um gesto extremo, as pessoas enxergam apenas o absurdo do ato. Mas ignoram toda a arquitetura de exaustão, sobrecarga, sono interrompido, dor emocional, ausência de rede de apoio e adoecimento mental que antecedem qualquer desastre.
O medo de morrer e o medo de desaparecer como ser humano, como mãe pertencem à mesma família de perigos. Todas elas corroem, tiram o ar e desvivem pessoas. Todas colocam essa mulher em estado permanente de alerta e podem levar ao limite. Mesmo assim, quando histórias como essa chegam ao público, a pergunta que se repete é sempre a mesma. Por que ela fez isso? Por que reagiu assim?
A pergunta honesta seria outra. Como ela conseguiu sobreviver até agora? Quem estava ao lado dela quando ela pediu ajuda? Quem garantiu proteção antes que o desfecho se tornasse irreversível? Quem viu os sinais? Quem acolheu a angústia real de viver sendo ameaçada de tantas maneiras diferentes?
É urgente reconhecer que o que empurra essas mulheres para o limite não é um único fato, mas a soma de muitas violências. Há a violência que tenta matá-la de uma vez e a violência que tenta matá-la aos poucos. Há o perigo que se anuncia na esquina e o que se infiltra no cotidiano. Há o agressor que ameaça o corpo e o que ameaça a relação com o próprio filho. Cada camada desse contexto importa. E ignorá-las é também uma forma de violência.
Essa reflexão não é para defender excessos. É para lembrar que o julgamento público não pode se apoiar apenas no último ato. O último ato é sempre o mais barulhento, mas é também o menos revelador. O que explica a história não é o momento em que ela explode, mas o momento em que ela começou a ser ignorada.
A ausência de políticas públicas, a negligência com a saúde mental materna, a falta de fiscalização de medidas protetivas, a indiferença com o puerpério, a lentidão do Judiciário, a romantização da paternidade, a responsabilização exclusiva da mãe. Quando uma tragédia acontece, não é uma mulher que falhou. É uma sociedade inteira que não cumpriu seu papel.
Talvez seja isso que ainda não aprendemos a ver. Que mulheres não chegam ao extremo por vontade. Chegam porque encontraram portas fechadas, autoridades indiferentes, leis mal aplicadas e uma sociedade que cobra delas autocontrole infinito, mesmo quando vivem em estado permanente de ameaça.
É por isso que precisamos perguntar não apenas o que aconteceu, mas o que não aconteceu antes. Quem deveria ter protegido. Quem deveria ter intervindo. Quem deveria ter escutado. Quem deveria ter agido. É nesse espaço vazio que as tragédias se alimentam.
Nenhuma mulher deveria ser empurrada para o limite da própria sobrevivência. Nenhuma deveria viver entre o medo de morrer e o medo de desaparecer. Nenhuma deveria ser julgada sozinha por aquilo que, muitas vezes, poderia ter sido evitado se o mundo ao redor tivesse feito a sua parte.


