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Desconsideração da personalidade jurídica no STJ: Teoria menor não abrange multa por litigância de má-fé

Supremo limita a responsabilidade do sócio ao débito principal e exclui a punição processual, reforçando critérios objetivos para ampliar obrigações em execuções.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Atualizado às 11:21

A discussão sobre os limites da desconsideração da personalidade jurídica ganhou um novo capítulo com o recente acórdão da 3ª turma do STJ. O caso em análise abordou a delicada questão de se, em uma relação de consumo, a multa por litigância de má-fé imposta à sociedade devedora pode ser transferida ao sócio com base na teoria menor, apenas por este ter sido incluído no polo passivo da execução após a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

A decisão não apenas esclarece um ponto controverso, mas também reforça a distinção entre a natureza da dívida consumerista e a sanção processual.

No julgamento do REsp 2.180.289/SP, houve uma discussão não unânime sobre esta ação de cobrança movida por um consumidor contra uma sociedade, na qual o juízo de primeira instância impôs uma multa por litigância de má-fé à devedora original.

Após a execução, foi deferido o incidente de desconsideração da personalidade jurídica com base na teoria menor (art. 28, § 5º, do CDC), o que levou à inclusão da sócia GID Brazil Participações Ltda. no polo passivo. A controvérsia central surgiu quando a sócia, ao impugnar a execução, questionou se a sua responsabilidade se estenderia à multa processual, uma vez que a sanção foi aplicada antes de sua entrada no processo.

O TJ/SP manteve a decisão de primeira instância, que considerou que a responsabilidade da sócia GID Brazil Participações Ltda. se estendia a toda a dívida, incluindo a multa por litigância de má-fé, mesmo que a sanção tenha sido imposta antes de sua inclusão no processo. A corte argumentou que a sociedade original era uma SPE - sociedade de propósito específico, e por isso seus atos eram de "inegável conhecimento de seus sócios". Assim, a extensão da dívida não era pessoal, mas patrimonial, o que tornava a sócia solidariamente responsável por toda a dívida executada.

A ministra Nancy Andrighi, relatora original deste recurso especial no STJ, acompanhou esse entendimento. Onde argumenta que a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Consumidor busca garantir a reparação integral dos danos sofridos pelo consumidor. Como a multa de má-fé reverterá em favor da parte contrária e se integra ao título judicial, ela defendeu que a sócia deveria ser responsabilizada por seu pagamento, para que o consumidor não arcasse sozinho com o prejuízo.

O voto divergente, que se tornou majoritário e proferiu o acórdão, foi do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. No qual deu provimento ao recurso especial da GID Brazil Participações Ltda., afastando a responsabilidade da sócia pelo pagamento da multa.

Os fundamentos principais foram:

  • Natureza da multa: A multa por litigância de má-fé tem caráter administrativo e punitivo, relacionada à conduta processual inadequada, e não ao risco da atividade empresarial. O fato de a controvérsia original ser de consumo não muda a natureza dessa sanção.
  • Teoria Menor x Maior: A teoria menor da desconsideração se aplica para proteger o consumidor do risco do negócio. A dificuldade de satisfação da multa não representa um "obstáculo ao adimplemento de obrigação originada no direito consumerista", requisito indispensável para a aplicação da teoria menor.
  • Responsabilidade do sócio: Para que o sócio fosse responsabilizado pela multa, seria necessária a aplicação da teoria maior (art. 50, CC), que exige a comprovação de desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Como isso não foi demonstrado, a responsabilidade do sócio se limitaria à dívida de consumo, e não à multa processual.

Ou seja, o ponto crucial da decisão reside na natureza da multa por litigância de má-fé. O acórdão argumenta que a sanção processual, embora convertida em dívida de valor, tem caráter administrativo e punitivo, visando coibir a má conduta processual do litigante. Essa sanção não se confunde com o risco inerente à atividade empresarial, que é o fundamento para a aplicação da teoria menor no Direito do Consumidor. Portanto, a mera insolvência da sociedade devedora não é suficiente para transferir ao sócio a responsabilidade por uma sanção que não se originou de uma dívida de consumo.

Para que a responsabilidade pela multa fosse transferida, seria necessária a aplicação da teoria maior, o que exigiria a comprovação de uso abusivo da personalidade jurídica para lesar terceiros, algo que não foi demonstrado no caso. A decisão conclui que a teoria menor justifica a responsabilidade do sócio apenas pela dívida originada da relação de consumo, e não por uma multa processual de natureza distinta.

Ao diferenciar a dívida de consumo da sanção processual, o que evita que o sócio seja responsabilizado por um ato de má-fé que não cometeu, reforçando a exigência de dolo ou culpa grave para a aplicação da multa.

O acórdão do STJ no REsp 2.180.289/SP consolidou uma importante linha de pensamento na jurisprudência brasileira. Ao restringir a extensão da teoria menor, reafirma-se a distinção entre a dívida civil e a sanção processual, impedindo que a simples insolvência do empresário leve a uma responsabilização do sócio por atos que ele não praticou.

Esse entendimento é um passo relevante para a segurança jurídica, pois delimita a aplicação de uma das ferramentas mais drásticas do direito societário, a desconsideração da personalidade jurídica, pois a necessidade de balizas é fundamental para evitar seu uso indevido.

A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 50 do CC, advém do direito norte americano da disregard doctrine, a qual visa defender os interesses financeiros e sociais, o que deve ser a exceção, não a regra1.

Nisto também pontua, in memorian, Cristiano Chaves2 "assim, permite-se o levantamento do manto societário da pessoa jurídica não apenas pela prática de atos abusivos, mas, igualmente, sem que qualquer irregularidade societária tenha sido cometida". Dito isto, o levantamento do véu da personalidade jurídica decorre da adaptação para o direito brasileiro, como anuncia o professor Marlon Tomazette3:

A retirada episódica, momentânea e excepcional da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a fim de estender os efeitos de suas obrigações à pessoa de seus titulares, sócios ou administradores, com o fim de coibir o desvio da função da pessoa jurídica, perpetrado por estes.

No CC, especialmente nos arts. 49-A e 50, alterados pela lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), reforça-se que a pessoa jurídica não se confunde com seus sócios, sendo a autonomia patrimonial um instrumento legítimo de alocação de riscos para fomentar o empreendedorismo. Assim, somente em caráter excepcional admite-se atingir o patrimônio pessoal dos sócios, em situações de abuso, má-fé ou desvio de finalidade.

Como explica o des. Leonardo Bessa4, no âmbito do CDC, o art. 28 e seu §5º consagram uma disciplina mais ampla, permitindo a desconsideração sempre que a personalidade jurídica for obstáculo ao ressarcimento do consumidor, independentemente de prova de conduta abusiva.

A teoria menor suscita críticas por enfraquecer o caráter excepcional do instituto e desestimular pequenos empreendedores de boa-fé, sobretudo diante de fatores imprevisíveis como a pandemia de covid-19. O cenário é agravado pela expansão de modalidades societárias unipessoais, como a EIRELI e outras simplificadas pela lei 13.874/19, o que torna ainda mais relevante preservar a excepcionalidade da desconsideração para manter segurança jurídica e incentivar atividades econômicas.

Deste modo, a presença dos dois requisitos do caput do art. 50 do CC para configuração de abuso de personalidade deve ser levada em consideração, que são i) desvio de finalidade; e ii) confusão patrimonial.

O desvio de finalidade da pessoa jurídica é identificado quando ela, em vez de exercer regularmente sua atividade lícita e cumprir sua função social, passa a praticar atos ilícitos ou incompatíveis com o objeto autorizado, beneficiando indevidamente seus sócios e comprometendo sua própria gestão e economia. Nessas situações, o ordenamento jurídico pode desconsiderar a personalidade da empresa para atingir diretamente o patrimônio dos sócios que se ocultam atrás dela5.

A confusão patrimonial, de acordo com César Fiúza6, se caracteriza quando não é possível distinguir, de forma nítida, os bens, direitos e obrigações da sociedade dos de seus sócios. Também se manifesta em situações de dissolução irregular, quando os sócios desaparecem juntamente com o patrimônio social, deixando apenas dívidas pendentes. Nesses casos, evidencia-se a mistura indevida entre os patrimônios, legitimando a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica para responsabilizar os sócios.

Ainda que a teoria menor continue a ser um controverso instrumento de proteção ao consumidor, este entendimento do STJ demonstra que sua aplicação deve seguir parâmetros objetivos que resguardam a lógica jurídica comercial. O decisum reforça o papel do Judiciário em ponderar os interesses das partes e eficácia do texto legal, assegurando a efetividade da execução sem desconsiderar os fundamentos de cada tipo de obrigação.

___________

1 RUBENS, Requião. Aspectos modernos de direito comercial. 1998.

2 FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, volume 1 / Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald . - 13. ed. rev., ampl. e atual. - São Paulo: Atlas, 2015, p. 396

3 TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial, v. 1 - Teoria Geral e Direito Societário. Saraiva Educação S.A., 13ª edição. São Paulo, 2022.

4 BESSA, Leonardo Roscoe. Código de Defesa do Consumidor Comentado. 3. ed. São Paulo: RT, 2025.

5 JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Art. 133 - Capítulo IV. Do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica In: JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Código de Processo Civil Comentado - Ed. 2020. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2020.

6 FIÚZA, César. Direito Civil Curso Completo", Ed. Del Rey, 10' ed., Belo Horizonte, 2007, pág. 159

Marconni Chianca Toscano da Franca

Marconni Chianca Toscano da Franca

Sócio do escritório Tomazette, Franca & Cobucci - Advogados Associados.

Yago Rocha de Almeida

Yago Rocha de Almeida

Mestrando e Estagiário do Tomazette, Franca & Cobucci Advogados Associados.

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