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"O combinado não sai caro"... Mas respeita ou viola o Direito?

Nem todo acordo firmado é válido: contratos só têm força se respeitam boa-fé, equilíbrio e a lei. Cláusulas abusivas anulam o combinado e protegem o cidadão. Justiça está acima do papel assinado.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Atualizado às 10:48

Existe uma frase que circula nos corredores da vida: "o combinado não sai caro". Parece uma sabedoria popular, quase um conforto para quem acredita que tudo que é acordado entre pessoas está protegido pela lei. A verdade, porém, é bem mais complexa e mais interessante juridicamente. Nem todo "combinado" respeita o ordenamento jurídico. Alguns acordos nascem viciados, contaminados por clausulas que violam princípios fundamentais que a lei protege com zelo.

A questão que nos move é simples e ao mesmo tempo profunda: será que todo pacto livremente celebrado entre as partes possui legitimidade plena? Ou existem limites que transcendem a simples vontade dos contratantes? A resposta reside em um entendimento que poucas pessoas possuem: nem sempre o que as partes combinam saem "barato". Às vezes, sai caro demais, e o Direito intervém precisamente quando isso acontece.

Quando a vontade não é suficiente

O CC brasileiro reconhece às partes uma liberdade ampla para contratar, como estabelece seu art. 421: "a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato". Mas isso é exatamente o ponto. A liberdade não é absoluta. Ela existe, sim, mas vive cercada por muros invisíveis que o ordenamento jurídico constrói.

A autonomia da vontade - aquele poder que temos de definir o conteúdo dos nossos contratos - é um pilar do direito privado moderno. Mas é um pilar que repousa sobre fundações mais profundas: a boa-fé objetiva, o equilíbrio contratual e a função social.

Quando duas pessoas contratam, o Direito presume que elas agem com lealdade, honestidade e reciprocidade. O art. 422 do CC deixa isso claro: os contratantes são obrigados a guardar boa-fé em todas as fases contratuais, da negociação ao cumprimento. Boa-fé não significa que a pessoa é ingênua. Significa que ela não pode agir de forma desleal, criando armadilhas legais para enganar a outra parte.

O problema das cláusulas que nascem abusivas

Aqui entra um conceito que merece toda nossa atenção: cláusulas abusivas. Não são cláusulas simplesmente duras ou desfavoráveis. São cláusulas que violam os princípios de lealdade e equilíbrio. O CDC, em seu art. 51, é explícito: são nulas de pleno direito as cláusulas abusivas.

Mas por que "nulas"? Porque elas não deveriam nunca ter existido. Elas afrontam o ordenamento jurídico. Não é questão de terem sido assinadas ou de a pessoa "ter concordado". A lei diz: essas cláusulas não possuem eficácia jurídica. Ou seja, no "papel" existem, mas o contrato não funciona.

O que torna uma cláusula abusiva? A lei oferece critérios precisos. É abusiva a cláusula que impossibilita ou enfraquece a responsabilidade de uma das partes pelos seus atos. É abusiva aquela que impõe obrigações desproporcionais, que coloca uma parte em "desvantagem exagerada". É abusiva a cláusula que estabelece uma inversão injusta de riscos ou responsabilidades.

Perceba: não se trata de um contrato que é "duro de cumprir". Trata-se de um contrato que viola a lógica básica do equilíbrio. É quando uma parte renuncia a direitos fundamentais, ou quando assume responsabilidades que legalmente não lhe cabem, ou ainda quando fica impedida de exigir que a outra parte responda pelos seus próprios atos.

O exercício abusivo do direito

Existe ainda outro conceito que frequentemente passa despercebido: o abuso de direito, regulado pelo art. 187 do CC. Parece paradoxal? Sim. Mas é real. O direito pode, sim, ser exercido de forma abusiva. Quando isso acontece, deixa de ser um direito legítimo e vira um ato ilícito.

Imagine a seguinte situação: uma empresa insere em seu contrato uma cláusula que, tecnicamente, não é proibida pela lei, mas que, na prática, retira toda a proteção que o ordenamento oferece à parte mais fraca. Tecnicamente, ela exerceu seu direito de contratar. Na verdade, ela cometeu abuso.

O abuso de direito ocorre quando alguém, ao exercer um direito que formalmente possui, o faz de modo que viola a boa-fé, os bons costumes ou a função social e econômica daquele direito. Não é crime, necessariamente. Não é culpa no sentido tradicional. É uma ilicitude objetiva: o que importa não é a intenção, mas o resultado da conduta, se ela foi destinada a prejudicar injustamente.

A nulidade e seus efeitos

Quando uma cláusula é declarada nula, o efeito é radical: ela nunca funcionou. Não existe. A nulidade é absoluta e de pleno direito. Isso significa que o juiz pode reconhecê-la mesmo que ninguém a questione expressamente. Significa que ela não pode ser convalidada pelo silêncio ou pela aceitação tácita das partes.

Mas há uma nuance importante. A nulidade de uma cláusula não invalida necessariamente todo o contrato. Seguindo a regra do art. 184 do CC, a invalidade parcial não prejudica a parte válida, se forem separáveis. Então: o combinado que violou o direito sai caro mesmo e é anulado. O resto do contrato pode seguir vigente.

Princípios que não se negociam

Há algo que é fundamental compreender: certos princípios não são negociáveis. A boa-fé, o equilíbrio contratual, a função social - e ssas não são sugestões. São fundamentos do sistema jurídico. Não podem ser afastados por acordo prévio, porque não pertencem à vontade privada. Pertencem à ordem pública.

Por isso, quando uma pessoa diz "mas nós combinamos assim", essa afirmação não fecha a discussão jurídica. O que importa é se aquilo que foi combinado respeita ou não os limites legais. Se violou a boa-fé? Nulo. Se criou desequilíbrio manifesto? Nulo. Se assumiu responsabilidades legalmente proibidas? Nulo.

O Direito não é apenas aquilo que as pessoas querem que seja. É também aquilo que protege a justiça material entre elas, que garante que nenhuma possa explorar a outra através de artifícios contratuais elaborados para burlar a lei. A função social do contrato garante precisamente isso.

O que sai caro de verdade

"O combinado não sai caro" é uma frase reconfortante, mas imprecisa. O que realmente não deve "sair caro" é o preço da injustiça. O que não pode vencer é a lealdade violada, o equilíbrio desrespeitado, a função social do contrato ignorada.

Os juízes e a lei não estão ali para interferirem caprichosamente nos negócios das pessoas. Estão ali para garantir que o contrato, que é um instrumento de cooperação e confiança, não vire uma arma de exploração. Quando uma cláusula é abusiva, quando viola a boa-fé, quando cria desequilíbrio manifesto, o Direito age e a anula. Não porque descumprir contratos seja uma virtude, mas porque contratos injustos não merecem ser cumpridos.

Então, sim, o combinado pode sair caro... muito caro. Quando ele respeita a lei, a boa-fé e o equilíbrio, é vinculante. Mas quando ele não respeita? Aí, sim, sai caro demais. Sai da ordem jurídica inteira.

Victor Gomes Soares de Barros

VIP Victor Gomes Soares de Barros

Professor, pesquisador e autor. Diretor de Pesquisa e Produção Científica da Associação Pernambucana de Jovens Juristas. Poeta nas horas vagas.

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