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É valida a prisão de Bolsonaro por violar tornozeleira eletrônica

A lei de execução penal, no art. 50, II, classifica fuga como falta grave. E o art. 118 estabelece que falta grave acarreta regressão de regime.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Atualizado em 27 de novembro de 2025 09:14

Quando um juiz concede uma prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica, ele não faz um ato de benevolência vazia. Ao contrário, ele examina a vida de uma pessoa - seu histórico, sua idade, seu estado de saúde - e chega a uma conclusão fundamentada: essa pessoa pode cumprir sua pena fora de uma cela, mas sob vigilância. Essa decisão repousa em um alicerce muito específico: a confiança de que o condenado respeitará as condições impostas.

Quando Bolsonaro recebeu a prisão domiciliar, o sistema de Justiça, em teoria, reconheceu que ele poderia ficar em casa. Mas para que isso fosse possível, havia uma única exigência: respeitar a tornozeleira eletrônica e suas regras. Ao violar esse equipamento, Bolsonaro não apenas cometeu um ato técnico. Ele destruiu o fundamento sobre o qual toda a prisão domiciliar se assentava.

O fundamento legal

A LEP - Lei de Execução Penal não deixa espaço para interpretações vagas nesse ponto. O art. 50 é absolutamente claro: "Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: II - fugir;". O parágrafo único do mesmo artigo estabelece que: "O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao preso provisório". Reforçando esse entendimento, o art. 49, parágrafo único, da mesma lei deixa claro que "pune-se a tentativa com a sanção correspondente à falta consumada".

Para compreender o peso dessa qualificação, é necessário olhar para o que a doutrina clássica, especialmente através de Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini - autores que estabelecem os padrões de interpretação da LEP no Brasil - explicam sobre as faltas graves na execução penal. Uma falta grave é um descumprimento das obrigações do condenado que atinge a essência da medida de execução. Não é apenas uma desobediência, é a ruptura de um acordo fundamental.

O art. 118, inciso I, da mesma lei de execução penal estabelece que a prática de falta grave acarreta regressão de regime. Isso significa que quando alguém em prisão domiciliar comete uma falta grave, o próximo passo natural é deixar de estar em regime domiciliar. É um mecanismo de tutela do sistema. Se alguém não consegue respeitar as regras de um regime menos gravoso, como poderia respeitar regimes mais severos?

O sistema de monitoramento eletrônico

Aqui está um ponto que a população comum precisa compreender melhor: a tornozeleira eletrônica não funciona apenas como um gadget tecnológico. Segundo a doutrina desenvolvida sobre monitoramento eletrônico no Brasil, especialmente após a lei 12.258/10, esse sistema opera em uma lógica de monitoramento integrado, onde o Centro de Integração de Monitoração (que no caso de Brasília é o CIME) estabelece uma comunicação permanente com o juízo da execução penal.

Quando funciona adequadamente, o sistema transmite ao juiz informações sobre a localização do monitorado, sobre saídas não autorizadas do perímetro autorizado, e - esse é o ponto crucial - sobre violações ou danificações do equipamento. Quando há uma violação, não se trata apenas de um aparelho desligado. É um sinal de que a pessoa foi além das condições que lhe foram impostas.

A doutrina moderna sobre execução penal, conforme desenvolvida em trabalhos acadêmicos recentes, aponta que a monitoragem eletrônica funciona através de um sistema de confiança extremamente frágil. Uma vez que a violação é constatada, o juiz perde a garantia mínima de que as condições estão sendo respeitadas. E sem essa garantia, qual é a razão de manter a prisão domiciliar?

Os princípios da execução penal

Agora vem a questão mais delicada: tudo isso é justo? A resposta está nos princípios que fundamentam toda a execução penal no Brasil. Esses princípios - humanidade das penas, legalidade, personalização da pena e, crucialmente, proporcionalidade - não desaparecem quando alguém violada uma tornozeleira. Pelo contrário, eles ganham um novo significado.

O princípio da proporcionalidade em execução penal estabelece que deve haver "devida correspondência entre a classificação do preso e a forma de aplicação da pena a ele cominada". Isso quer dizer: se a pessoa não consegue manter a confiança necessária para estar em regime domiciliar, então ela não é proporcional a estar em regime domiciliar. A proporcionalidade não é apenas uma questão de quantidade de pena - é uma questão de adequação entre a pessoa e o regime.

Há ainda o princípio da legalidade estrita, que exige que cada decisão seja fundamentada. Um juiz não pode simplesmente castigar alguém por castigar. Mas quando a lei diz que violação de monitoramento é falta grave, e quando falta grave leva a regressão de regime, o juiz está simplesmente aplicando o que a lei prevê. Há fundamentação legal sólida.

E a dignidade da pessoa humana? Ela não está sendo violada. A pessoa permanece sendo tratada como ser humano, com direitos. O que muda é a confiança que o Estado deposita nela de ficar longe de uma cela. Quando essa confiança é quebrada, o retorno à cela não é degradação - é consequência.

Bolsonaro e a intenção revelada

No caso concreto de Bolsonaro, há um elemento adicional que torna a questão ainda mais clara. A violação foi constatada em um momento muito específico: quando havia uma manifestação convocada em frente à sua residência. Segundo a decisão do ministro Alexandre de Moraes do STF, havia indicativos de que a violação representava uma "intenção de fuga", facilitada pela "confusão causada pela manifestação".

Isso não é uma violação casual. É uma violação em contexto que sugere intenção de aproveitar uma oportunidade para deixar o local. Isso muda a análise. A doutrina sobre execução penal sempre distingue entre violações dolosas (com intenção) e violações culposas (sem intenção). Uma violação que parece incluir intenção de fuga é de uma gravidade muito maior.

Quando a lei de execução penal e o CPP trabalham juntos, oferecem ao juiz - particularmente ao STF nesse caso - as ferramentas necessárias para agir. O art. 146-C da LEP estabelece que "a violação comprovada dos deveres impostos" pode levar a "penas disciplinares de natureza grave". E o art. 146-D abre a possibilidade de revogação da monitoração.

Por que perdeu a prisão domiciliar

Nesse ponto, é hora de traçar a linha lógica que leva à conclusão: Bolsonaro perdeu a prisão domiciliar porque violou o fundamento sobre o qual ela foi concedida. Vamos ao passo a passo:

  • Primeiro: A prisão domiciliar foi concedida com base em uma avaliação de que Bolsonaro poderia cumprir pena em casa, sob vigilância eletrônica. Essa avaliação descansava na suposição de que ele respeitaria as condições impostas.
  • Segundo: A violação da tornozeleira comprova que essa suposição era equivocada. Ele não respeitou as condições. Isso significa que a base fática que justificava a prisão domiciliar desapareceu.
  • Terceiro: A lei de execução penal prevê expressamente que violar os deveres de monitoramento eletrônico é falta grave. Isso não é discricionário - é mandatório conceitualmente.
  • Quarto: Falta grave, conforme o art. 118, autoriza (e quase impõe) regressão de regime. Se o regime anterior (domiciliar) não pode ser mantido, o regime que se segue é a prisão comum, pois Bolsonaro está em execução de pena condenatória.
  • Quinto: Não há no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma disposição que permita manter alguém em prisão domiciliar após comprovada violação de tornozeleira eletrônica, salvo em casos muito específicos de falha técnica involuntária - o que não parece ser o caso aqui.

Dignidade humana e proporcionalidade: O último argumento

Poderia alguém argumentar que isso é desproporcional? Que viola a dignidade? A doutrina contemporânea responde: não. O próprio Mirabete, em suas obras sobre execução penal, deixa claro que a proporcionalidade não é sinônimo de brandura. É sinônimo de correspondência entre ato e consequência.

Se um piloto de avião violar as regras de segurança, ele perde a licença. Se um professor violar normas éticas, ele é removido da sala de aula. Isso não é desproporcional - é proporcional. Violações das regras que garantem a segurança do sistema têm consequências. Da mesma forma, alguém que não consegue respeitar as condições de uma prisão domiciliar perde o direito de estar em prisão domiciliar.

A dignidade humana não significa ausência de consequências. Significa que as consequências sejam previsíveis, fundamentadas em lei, e aplicadas com respeito ao devido processo legal. Tudo isso existe aqui.

A lógica do sistema

Bolsonaro perderá a prisão domiciliar não porque o sistema seja arbitrário, mas porque o sistema é lógico. Uma prisão domiciliar existe porque há confiança de que a pessoa a manterá. Quando a confiança é quebrada, o benefício desaparece. É simples, mas é também impecável do ponto de vista jurídico.

A tornozeleira eletrônica não é apenas um equipamento. É um símbolo da promessa que o condenado faz ao Estado: "Vou respeitar as regras". Quando essa promessa é quebrada, a única consequência coerente é o fim do benefício. Isso não é vendetta. É execução de lei.

Victor Gomes Soares de Barros

VIP Victor Gomes Soares de Barros

Professor, pesquisador e autor. Diretor de Pesquisa e Produção Científica da Associação Pernambucana de Jovens Juristas. Poeta nas horas vagas.

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