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O risco de uma hermenêutica abstrata nos casos de discriminação

Hermenêutica abstrata em casos de discriminação pode silenciar dissenso legítimo: sem análise de contexto, intenção e padrão, opinião é tratada como ódio, ameaçando o próprio pluralismo.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Atualizado às 11:29

Nas últimas décadas, o Direito brasileiro tem avançado de forma significativa na tutela de grupos historicamente marginalizados, especialmente no âmbito penal e constitucional. A equiparação da homotransfobia ao racismo na ADO 261, o julgamento do HC 82.424 (Ellwanger)2, a responsabilização de parlamentar por incitação antidemocrática no julgamento da AP 1.0443 e, em âmbito internacional, a decisão Pastörs v. Germany (TEDH)4, formam um conjunto paradigmático que reafirma que a liberdade de expressão não é escudo para discursos que neguem identidades humanas ou incitem à erosão da ordem democrática.

Esses precedentes, cada qual em seu contexto, não foram construídos a partir de meras opiniões impopulares. No caso Ellwanger, o Tribunal reconheceu que a negação do Holocausto não é exercício de liberdade intelectual, mas estratégia de reabilitação de ideologias genocidas. Na ADO 26, o STF sustentou sua decisão com base na constatação empírica de violência estrutural e continuada contra pessoas LGBTQIA+, reconhecendo que a homotransfobia não ocorre em episódios isolados, mas como fenômeno social reiterado. Na AP 1.044, o STF não puniu o uso de linguagem incisiva, mas o ataque direcionado à supressão de poderes constitucionais. Já na decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Pastörs x Alemanha, ressaltou-se que a condenação decorreu da manipulação intencional da linguagem para encobrir um discurso revisionista antissemita, identificado como "veneno diluído" dentro da fala.

É justamente por isso que preocupa observar as interpretações que, ao aplicar esses precedentes a situações distintas, o fazem exclusivamente no plano abstrato, desatentas à reconstrução dos elementos fáticos que lhes deram origem. Em decisão recente proferida por tribunal estadual, um agente político foi condenado por danos morais em razão de manifestação realizada nas redes sociais envolvendo pessoa trans. A sentença citou expressamente fundamentos presentes nos julgados sobre discurso de ódio, negacionismo histórico e ataque às instituições democráticas, mas sem demonstrar, no caso concreto, a presença de elementos concretos de subsunção, tais como: habituação discursiva, inserção em contexto de perseguição, finalidade discriminatória ou potencialidade real de estímulo à exclusão.

A fala analisada pode ser reputada grosseira e retoricamente inadequada, mas a construção decisória não cuidou de demonstrar se se tratava de manifestação episódica ou parte de um padrão reiterado de hostilidade; se possuía lastro intencional ou apenas refletia posicionamento ideológico impopular; se contribuía para alimentar estruturas sociais de opressão ou apenas expressava, ainda que com tipos expressivos agressivos, opinião adversativa.

A dogmática penal e os recentes desenvolvimentos da epistemologia da prova judicial exigem que o julgador explicite as bases racionais que sustentam a conexão entre fato e reprovação. Quando a reprovação jurídica se reduz a mera transcrição indignada da fala, desvinculada de análise contextual, inverte-se o papel do Direito: a fundamentação deixa de ser instrumento de controle epistêmico para tornar-se expressão pública de censura moral.

Não se trata de legitimar a retórica ordinária ou discursos que perpetuem sofrimento social, os quais devem ser combatidos. Trata-se, isto sim, de reconhecer que uma hermenêutica protetiva só é legítima quando contextualizada. Quando aplicada por via abstrata, sem reconstrução fática, paradoxalmente compromete o próprio ideal multicultural que pretende defender. Se a discordância filosófico-ideológica, ainda que expressa em termos duros, é automaticamente interpretada como discriminação, corremos o risco de instaurar no plano judicial um regime de intolerância às opiniões dissidentes. E, como a história demonstra, a perseguição do dissenso sempre se traveste de proteção aos valores.

A justiça constitucional não pode ser um superego social. Precedentes paradigmáticos são bússolas interpretativas, não sentenças prontas. O dever do intérprete é reconstruir os elementos que justificaram sua formação - e somente então verificar se a conduta analisada se lhe subsume. Quando essa etapa é dispensada, o Direito deixa de operar pela via da racionalidade e passa a agir por reflexo, aplicando teses descoladas do impacto real - punindo ideias antes de responsabilizar atitudes.

Proteger a dignidade é indeclinável. Mas fazê-lo com responsabilidade hermenêutica é igualmente indispensável. A democracia exige limites ao discurso que desumaniza, mas exige também condições para que a crítica possa existir. Não há pluralismo sem dissenso, assim como não há justiça sem contextualização do caso concreto. Se o combate ao discurso odiento for conduzido sem esses critérios, poderá terminar, paradoxalmente, por promover o que pretende reprimir.

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1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26. Rel. Min. Celso de Mello. Tribunal Pleno. Julgado em 13 jun. 2019.

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 82.424/RS. Rel. Min. Maurício Corrêa. Tribunal Pleno. Julgado em 17 set. 2003

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 1.044. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Tribunal Pleno. Julgado em 20 abr. 2022.

4 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case of Pastörs v. Germany (Application no. 55225/14). Judgment of 3 October 2019.

Filipe Coutinho da Silveira

VIP Filipe Coutinho da Silveira

Advogado, especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, Portugal, em Ciências Criminais pela Universidade Federal do Pará e em Direito Penal e Criminologia pela PUCRS

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