Critérios mínimos para evitar o risco da hermenêutica abstrata no discurso discriminatório
O artigo propõe critérios objetivos para diferenciar dissenso ideológico de discurso discriminatório, prevenindo decisões abstratas que produzam silenciamento e distorçam o pluralismo democrático.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Atualizado às 14:34
Quando alertamos para o risco da hermenêutica abstrata nos casos de discriminação, não se trata de contestar a legitimidade da proteção jurídica a grupos vulnerabilizados, mas de evidenciar os efeitos nocivos da aplicação do Direito dissociada do caso concreto. O ponto central, reside, portanto, no reconhecimento de que, sob pretexto de tutela da dignidade, o ordenamento pode inadvertidamente instaurar um ambiente de inibição discursiva (chilling effect), sobretudo diante de manifestações que confrontem sensibilidades morais ou tensionem identidades consolidadas. A proteção contra o discurso discriminatório é inegociável. No entanto, o perigo se concentra na insuficiência de explicitação e de aplicação consistente de critérios capazes de diferenciar a expressão ideologicamente controversa da conduta discursiva efetivamente lesiva. Ou seja, quando a reprovação jurídica da fala se opera de forma genérica e abstrata, sem reconstrução factual e sem demonstração objetiva de potencialidade discriminatória, o Direito deixa sua função de controle racional da responsabilidade e passa a atuar como instrumento de disciplinamento ideológico.
Portanto, a questão não é se devemos combater narrativas que neguem identidades humanas, mas como fazê-lo sem comprometer o espaço democrático da divergência filosófica e moral. E essa transição, embora muitas vezes escamoteada por boas intenções, produz o efeito reverso: a defesa do pluralismo produz o risco de sua neutralização.
Essa tensão se torna mais clara quando se observa a evolução comparada da jurisprudência norte-americana e brasileira. Nos Estados Unidos, a discussão sobre os limites à liberdade de expressão desenvolveu-se à luz da 1ª emenda, cujo teor permanece desde 1791:
"Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances.i"
A interpretação desse dispositivo levou ao desenvolvimento progressivo de testes de limitação do discurso que variaram na linha do tempo. A partir de Schenck v. United States (1919), adotou-se o modelo do clear and present danger; posteriormente, em Dennis v. United States (1951), admitiu-se a restrição diante de risco político substancial; até que, em Brandenburg v. Ohio (1969), consolidou-se o parâmetro hoje reconhecido: somente é juridicamente reprovável o discurso que (i) incita ação ilícita, (ii) com intenção de produzi-la e (iii) com probabilidade concreta e iminente de ocorrência. O critério protege até discursos de ódio quando destituídos de risco imediato.
No Brasil, o STF dialoga com esse padrão, mas não o reproduz integralmente. A Corte reconhece a relevância de Brandenburg, porém considera que a exigência de iminência concreta pode ser insuficiente em sociedades marcadas por vulnerabilidades estruturais e formas difusas de violência. No julgamento da AP 1.044, o Tribunal registrou:
". a interpretação predominante na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos . por vezes não oferece ferramentas adequadas para regular discursos de ódio ou antidemocráticos, tal como se observa dos precedentes estabelecidos no caso Brandenburg vs. Ohio, nos quais se declarou a constitucionalidade de manifestações de ódio contra negros e judeus ." (AP 1.044, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Plenário, 20/04/2022)
Assim, embora admita o clear and present danger como referência, o STF flexibiliza o elemento da iminência a fim de acomodar realidades em que a exclusão se manifesta não como ameaça instantânea, mas como continuidade de um processo histórico de violência simbólica ou institucional. Tal deslocamento expande o espaço de repressão do discurso, e com isso aumenta a responsabilidade metodológica do julgador.
Daí a importância de incorporar à hermenêutica protetiva um filtro epistêmico de subsunção. O Direito não pode sancionar manifestações com base exclusivamente na indignação moral diante de determinadas opiniões. É indispensável demonstrar como o ato comunicativo opera, no caso concreto, como vetor causal de lesão ou perigo jurídico. Quando essa etapa é suprimida, retorna-se ao risco anteriormente assinalado, isto é, a reprovação jurídica converte-se em censura moral.
Decisões recentes do STF sinalizam essa necessidade de concretização. No julgamento que analisou a pregação religiosa como potencial instrumento de hostilidade, a Suprema Corte afirmou:
"Irrecusável, contudo, que o direito de dissentir . deslegitima-se quando a sua exteriorização atingir, lesionando-os, valores e bens jurídicos postos sob a imediata tutela da ordem constitucional, como sucede com o direito de terceiros à incolumidade de seu patrimônio moral.
É por tal razão que a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa, povo ou grupo social não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão." (RHC 146.303, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgamento em 24/04/2018)
Na mesma linha:
". pronunciamentos . que extravasam os limites da prática confessional, degradando-se ao nível primário do insulto, da ofensa e, sobretudo, do estímulo à intolerância e ao ódio público contra fiéis de outras denominações religiosas, não merecem a dignidade da proteção constitucional que assegura a liberdade de expressão." (RHC 146.303, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgamento em 24/04/2018)
E, no que se refere às manifestações que incidem sobre minorias sexuais e de gênero, a Corte delimitou:
"as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão . aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716/1989." (ADO 26 e MI 4.733, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, julgamento em 13/06/2019)
Em todas essas decisões, o STF não sanciona a aspereza expressiva nem a discordância ideológica. O que reprova é a funcionalidade excludente do discurso, exigindo-se, nesse sentido, a demonstração do dolo, contextualidade e aptidão lesiva. O Tribunal não legitimou condenações por enunciados isolados, mas por manifestações inseridas em estrutura de hostilidade ou atuação política deliberada de erosão institucional. Em outras palavras, não se criminaliza a frase; criminaliza-se o uso da linguagem como instrumento de ação.
Esse ponto deve ser aprofundado para que a hermenêutica protetiva não se converta em mecanismo de silenciamento. Nesse sentido, urge que na análise do caso concreto demonstre-se, com fundamentação racionalmente controlável: (i) se, de fato, a fala está inserida em ambiente historicamente hostil ou em contexto concreto de perseguição; (ii) se decorre de padrão reiterado de agressividade, e não de episódio isolado; (iii) se revela dolo específico orientado à exclusão, ridicularização ou incitação discriminatória; (iv) se contribui, de forma racionalmente verificável, para violação presente ou potencial de direito fundamental; e (v) se possui capacidade objetiva de estimular práticas discriminatórias ou de reforçar estruturas sociais de opressão.
Esses critérios não negam a jurisprudência do STF, ao contrário, operam como complemento necessário para garantir que sua aplicação não se realize em abstrato, mas a partir da reconstrução fática e valorativa que legitimou os precedentes paradigmáticos, conformando uma posição intermediária entre os testes firmados em Brandenburg x Ohio (SCOTUS) e Pastörs x Alemanha (TEDH). A proteção da dignidade exige força interpretativa e a preservação do pluralismo exige contenção metodológica, razão pela qual sem os critérios apontados o Direito arrisca punir ideias antes de responsabilizar condutas.
Não se perca de vista: a democracia suporta opiniões que desagradam, mas não suporta manifestações que desumanizam. O papel do intérprete é distinguir uma coisa da outra. Se a expressão representa dissenso, tutela-se, se representa exclusão, responsabiliza-se. E essa distinção só pode ser feita dentro do caso concreto, tendo precedentes como bússola. Enfim, a hermenêutica protetiva só preserva o pluralismo quando opera com rigor probatório, sem ele, corre o risco de silenciá-lo.
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i Em tradução livre: "O Congresso não fará lei alguma respeitante ao estabelecimento de religião, ou proibindo o seu livre exercício; nem restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo de reunir-se pacificamente e de dirigir petições ao Governo para a reparação de injustiças."


