Entre a caneta e o território: Quem instaura, conduz e aprova a Reurb?
Análise da possibilidade de órgãos públicos instaurarem e aprovarem Reurb em áreas próprias.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2025
Atualizado às 08:32
Entre a caneta e o território: Quem instaura, conduz e aprova a REURB em terras de propriedade de órgãos e entidades da administração direta e indireta dos Estados e da União?
1. Introdução
A Reurb - Regularização Fundiária Urbana, instituída pela lei 13.465, de 11/7/17, representa um dos marcos mais significativos da política urbana contemporânea no Brasil. Ao consolidar em um único diploma legal um conjunto de instrumentos para aplicação prática, a Reurb inaugurou uma nova fase de integração jurídica, urbanística, social e ambiental dos núcleos urbanos informais.
Mais do que um procedimento administrativo, a Reurb configura-se como uma política pública de desenvolvimento e um instrumento jurídico de inclusão social e territorial, destinado a compatibilizar o direito à moradia digna com a função social da propriedade, princípios basilares do ordenamento constitucional brasileiro (arts. 5º, XXIII, e 182, §2º, da CF/88).
A inovação trazida pela lei 13.465/17 está em conceber a regularização fundiária como política pública permanente, e não como medida excepcional de correção de irregularidades. A criação das modalidades Reurb-S (de Interesse Social) e Reurb-E (de Interesse Específico) traduziu juridicamente o reconhecimento de que a informalidade urbana é fenômeno estrutural e multifacetado, que exige respostas diferenciadas do Estado conforme a natureza socioeconômica da ocupação.
No plano conceitual, a Reurb surge como um instrumento jurídico complexo, que articula dimensões de Direito Urbanístico, Administrativo, Ambiental e Registral. Seu objetivo é integrar assentamentos informais ao ordenamento territorial urbano, conferindo segurança jurídica aos ocupantes e assegurando a inserção plena dessas áreas na malha legal da cidade.
A partir dessa perspectiva, a Reurb supera a visão tradicional de que a regularização seria mero ato de titulação fundiária. O procedimento, conforme delineado na legislação e no decreto Federal 9.310, de 15/3/18, envolve etapas de diagnóstico urbanístico, participação social, análise ambiental e emissão da CRF - Certidão de Regularização Fundiária, culminando na efetiva transformação jurídica do território.
A normatização unificada do tema também redefiniu as relações entre os entes federativos. A lei atribui ao município o papel de autoridade urbanística e gestor territorial do processo, sem excluir, todavia, a atuação de outros entes públicos proprietários de áreas urbanas, conforme veremos adiante.
Essa ampliação interpretativa inaugura novas perspectivas para a gestão do patrimônio público, permitindo que imóveis até então estagnados na informalidade urbana possam ser convertidos em espaços regulares, juridicamente seguros e socialmente produtivos.
A Reurb, sem baldas de dúvidas, consolida-se diversos instrumentos de efetivação do direito à cidade e da função social da propriedade pública e privada, ao mesmo tempo em que redefine o papel do Estado na promoção de políticas fundiárias inclusivas, sustentáveis e juridicamente estruturadas.
Entretanto, uma questão de natureza prática e jurídica que tem assumido relevância nos últimos anos diz respeito à competência dos próprios entes públicos, tai como, União, Estados, Distrito Federal para instaurar, processar e aprovar procedimentos de Reurb em imóveis de sua titularidade. A indagação é central para a compreensão da efetividade do instituto, pois envolve a delimitação das atribuições administrativas e patrimoniais do Estado na condução da política de regularização fundiária urbana.
2. A evolução normativa da competência pública na Reurb
A regularização fundiária urbana, passou a ser compreendida como uma competência compartilhada entre os entes federativos, cuja efetivação exige a articulação de competências administrativas, urbanísticas, ambientais e patrimoniais.
Embora a lei 13.465/17, tenha atribuído ao município o protagonismo, bem como o papel central de autoridade urbanística, responsável pela condução e aprovação dos processos de Reurb no âmbito local, reconheceu também a importância da atuação dos demais entes públicos, sobretudo quando se trata de áreas de domínio da União, dos Estados ou do Distrito Federal.
Essa repartição de competências reflete a estrutura federativa brasileira e o caráter transversal da política urbana, que envolve tanto o ordenamento territorial municipal quanto o cumprimento da função social da propriedade pública, senão vejamos.
2.1. A legitimidade ativa para requerer a Reurb
O art. 14 da lei 13.465/17 estabeleceu de forma expressa quem são os legitimados para requerer a Regularização Fundiária Urbana, dispondo:
Art. 14. Poderão requerer a Reurb:
- a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, diretamente ou por meio de entidades da administração pública indireta;
- os seus beneficiários, individual ou coletivamente;
- os proprietários de imóveis ou de terrenos, loteadores ou incorporadores;
- a Defensoria Pública; e
- o Ministério Público.
§1º Os legitimados poderão promover todos os atos necessários à regularização fundiária, inclusive requerer os atos de registro.
O reconhecimento dos legitimados acima decorre da natureza híbrida do instituto, que se situa entre o Direito Administrativo e o Direito Urbanístico, e pressupõe a ação coordenada do Estado na gestão de seu território e na regularização de assentamentos consolidados.
2.2. A competência pública para instaurar e aprovar a Reurb
A leitura da redação original da lei 13.465/17 levanta um ponto sensível. Embora reconhecesse a legitimidade dos entes públicos para requerer a Reurb (art. 14, I), o texto não lhes atribuía, de forma expressa, a competência para conduzir e aprovar os procedimentos. Essa brecha interpretativa abriu espaço para controvérsias sobre a atuação administrativa direta da União, dos Estados e do Distrito Federal em áreas de sua própria titularidade.
Entretanto, a meu ver, apesar do avanço normativo, a redação original da lei 13.465/17 não atribuía de forma explícita aos entes públicos a competência para instaurar e aprovar os processos de Reurb relativos a imóveis de sua própria titularidade, uma vez que não detalhava a competência administrativa para conduzi-lo e concluí-lo, o que gerou insegurança jurídica e divergência interpretativa nos primeiros anos de aplicação da norma.
Na prática, essa lacuna criou situações paradoxais: a União ou o Estado, proprietários de extensas áreas urbanas ocupadas por população de baixa renda, dependiam do município para deflagrar e aprovar o processo de regularização, ainda que a área não tivesse relevância local, mas sim caráter regional ou Federal. Essa dependência gerou entraves administrativos e, em muitos casos, bloqueios de natureza política.
Com frequência, projetos estaduais de regularização fundiária ficavam paralisados ou sofriam atrasos significativos em razão de divergências partidárias entre as esferas de governo, o que tornava o processo de aprovação refém de disputas locais e interesses alheios à finalidade pública da Reurb.
Esse contexto evidenciava uma contradição: o Estado, mesmo detendo a titularidade do imóvel e o interesse público direto na sua regularização, ficava juridicamente dependente da anuência municipal, o que comprometia a eficiência administrativa (art. 37, caput, CF) e frustrava o princípio da continuidade das políticas públicas.
Em muitos casos, projetos estruturados tecnicamente e com impacto social relevante permaneceram anos sem execução, não por falta de viabilidade jurídica ou técnica, mas por conta de entraves políticos e institucionais que a legislação da Reurb não havia previsto.
Essa ambiguidade foi superada com o advento da lei 14.620, de 13/7/23, que alterou o art. 30 da lei 13.465/17 e inseriu o §4º, conferindo expressamente aos entes públicos competência plena para instaurar, processar e aprovar a Reurb-S ou a Reurb-E em áreas sob sua propriedade.
Art. 30, §4º, da lei 13.465/17 (com redação dada pela lei 14.620/23):
Para as terras de sua propriedade, os órgãos da administração direta e as entidades da administração indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios ficam autorizados a instaurar, processar e aprovar a Reurb-S ou a Reurb-E e a utilizar os demais instrumentos previstos nesta Lei.
Com essa alteração, o legislador eliminou a dependência hierárquica entre os entes federativos no âmbito da Reurb, fortalecendo a autonomia administrativa e permitindo que cada ente exerça sua competência diretamente sobre o patrimônio público sob sua gestão.
Essa inovação reflete o princípio da autonomia federativa (art. 18 da CF/88) e concretiza o dever de dar efetividade à função social da propriedade pública (arts. 5º, XXIII, e 182, §2º, CF).
2.3. O reconhecimento jurídico e institucional dos entes federativos
O reconhecimento da competência pública direta na Reurb representa mais do que uma simples inovação normativa: trata-se de um avanço institucional que reposiciona o Estado e a União como agente ativo da regularização fundiária, e não apenas como titular passivo do domínio.
A lei, ao autorizar os entes públicos a instaurarem e aprovarem processos de Reurb, confere protagonismo à gestão patrimonial pública e integra a regularização fundiária à política de gestão de bens públicos, permitindo que áreas ociosas, subutilizadas ou ocupadas irregularmente possam ser inseridas de forma planejada e legítima na malha urbana.
Essa perspectiva também amplia a efetividade da função social da propriedade pública, conforme orientam a CF/88 e o Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), transformando a Reurb em instrumento de gestão territorial, inclusão social e promoção da cidadania urbana.
3. Fundamentos jurídicos e administrativos da competência pública na Reurb
A consolidação da competência dos entes públicos para instaurar e aprovar procedimentos de Reurb - Regularização Fundiária Urbana assenta-se em fundamentos constitucionais e administrativos de elevada densidade normativa.
Entre eles, destacam-se a autonomia federativa, a função social da propriedade e o princípio da eficiência administrativa, que, conjugados, conferem legitimidade jurídica e racionalidade prática à atuação direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios em imóveis de sua titularidade.
3.1. A autonomia federativa como pilar da competência pública
A autonomia dos entes federativos é um dos princípios estruturantes do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 18 da CF/88, que assegura à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios autonomia política, administrativa e financeira.
Tal autonomia implica o poder de auto-organização e autoadministração, inclusive na gestão e destinação de seu próprio patrimônio público.
A possibilidade de que cada ente promova diretamente a Reurb em suas áreas decorre, portanto, do exercício legítimo de sua competência administrativa e patrimonial, e não de uma delegação municipal.
Negar essa prerrogativa significaria submeter a autonomia federativa a uma hierarquia inexistente em um Estado federado, contrariando o próprio pacto constitucional.
Nesse sentido, a lei 14.620/23, ao introduzir o §4º no art. 30 da lei 13.465/17, não cria um novo poder, mas reconhece e regulamenta uma competência que já decorre diretamente da CF, reforçando o equilíbrio federativo e evitando a centralização excessiva na esfera municipal.
Trata-se, portanto, de uma expressão da autonomia administrativa e do princípio da cooperação federativa, que exige que cada ente atue de forma coordenada, mas sem subordinação, na busca da função social da cidade e da propriedade.
3.2. A função social da propriedade pública como dever estatal
A função social da propriedade, prevista nos arts. 5º, XXIII, 170, III, e 182, §2º, da CF/88, é princípio basilar da ordem econômica e da política urbana brasileira.
Ela impõe não apenas limites ao direito de propriedade privada, mas também obrigações positivas ao Poder Público, sobretudo quando se trata de bens de domínio estatal.
A ocupação irregular de áreas públicas urbanas, por populações de baixa renda, é fenômeno que desafia a efetividade desse princípio.
Quando o Estado se omite na regularização dessas áreas, mantém em situação de insegurança jurídica famílias inteiras e, ao mesmo tempo, descumpre seu próprio dever de garantir o uso socialmente adequado do patrimônio público.
A Reurb, nesse contexto, surge como instrumento jurídico e administrativo de concretização da função social da propriedade pública, permitindo que imóveis até então marginalizados da ordem urbanística passem a integrar a estrutura formal da cidade, com titularidade reconhecida e acesso a serviços públicos.
Assim, o exercício da competência pública direta na Reurb não é mera faculdade administrativa, mas um dever jurídico de efetivar o princípio constitucional da função social da propriedade e da cidade, articulando o Direito Urbanístico com o Direito Administrativo e com a política habitacional.
3.3. Eficiência administrativa e a racionalização das políticas públicas
O princípio da eficiência administrativa, consagrado no art. 37, caput, da CF/88, impõe à Administração Pública o dever de atuar com presteza, economicidade e resultados concretos na execução das políticas públicas.
No campo da regularização fundiária, esse princípio se traduz na necessidade de superar entraves burocráticos e políticos que retardam a efetivação do direito à moradia e à cidade sustentável.
A autorização legal para que os entes públicos instaurem e aprovem diretamente seus próprios processos de Reurb é medida que concretiza a eficiência administrativa, pois reduz a dependência hierárquica entre esferas de governo, elimina etapas desnecessárias e agiliza a entrega de resultados sociais tangíveis.
Além disso, permite que cada ente planeje suas ações de regularização de acordo com suas realidades orçamentárias, territoriais e sociais, fortalecendo o princípio da gestão pública descentralizada e eficiente.
Sob essa ótica, a Reurb conduzida diretamente pelos entes públicos transforma-se em política pública de gestão territorial e patrimonial, com potencial de promover inclusão social, requalificação urbana e valorização do uso público da terra.
Portanto, a conjugação desses três fundamentos, quais sejam, autonomia federativa, função social da propriedade e eficiência administrativa, revela que a competência pública direta na Reurb não é um privilégio concedido por lei, mas um desdobramento natural do regime constitucional brasileiro, que exige do Estado ações proativas, coordenadas e efetivas na construção de cidades mais justas e sustentáveis.
A lei 14.620/23 apenas aperfeiçoou o sistema normativo, reforçando o protagonismo dos entes federativos e corrigindo uma distorção que contrariava princípios constitucionais estruturantes.
Com isso, consolidou-se uma base jurídica sólida para que União, Estados, Distrito Federal e municípios atuem com autonomia e responsabilidade na regularização fundiária urbana, transformando a Reurb em verdadeiro instrumento de integração territorial e de realização da cidadania.
4. Relação entre competência federativa e controle urbanístico
De mas a mais, é preciso compreender que autorização conferida pelo art. 30, §4º, da lei 13.465/17, para que União, Estados, Distrito Federal e municípios instaurem, processem e aprovem procedimentos de Reurb-S ou Reurb-E em terras de sua propriedade, não dispensa a observância da legislação urbanística municipal. Tal exigência é indispensável para assegurar a integração da área regularizada à estrutura urbana existente, bem como a necessária coerência com o plano diretor e demais normas locais de uso e ocupação do solo.
Ademais, não podemos olvidar que o município, na condição de autoridade urbanística, mantém atribuições fundamentais no procedimento de regularização fundiária e poderá fiscalizar, avaliar a compatibilidade urbanística e ambiental do projeto, bem como as violações as normas urbanísticas locais.
Assim, devemos entender a necessidade de convergência entre o domínio público e o ordenamento urbano, e deste modo, o reconhecimento da competência pública para a Reurb em imóveis estatais não desconstitui o papel do município, mas amplia a capacidade de resposta do Estado brasileiro diante das demandas sociais por moradia e ordenamento urbano.
Neste sentido, enquanto o ente proprietário exerce sua função administrativa e patrimonial, buscando dar efetividade à função social de seus bens, o município atua como guardião do planejamento urbano, assegurando que as intervenções estejam integradas à malha urbana, à infraestrutura e às diretrizes do plano diretor.
Essa convergência institucional traduz o espírito da lei 13.465/17, qual seja, harmonizar competências e promover resultados concretos, garantindo que a regularização fundiária seja não apenas um ato registral, mas uma ação de inclusão territorial e de gestão urbana responsável.
5. Considerações finais
A consolidação normativa promovida pela lei 14.620/23 solucionou, de forma definitiva, a lacuna existente na redação original da lei 13.465/17 ao reconhecer, de maneira expressa, a competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios para instaurar, processar e aprovar procedimentos de Reurb em imóveis de sua propriedade.
Essa autorização não representa mera inovação legislativa, mas o ajuste necessário para compatibilizar o regime jurídico da regularização fundiária com os princípios constitucionais da autonomia federativa, da eficiência administrativa e da função social da propriedade pública.
Ao conferir competência plena aos entes federativos, o legislador fortaleceu a atuação direta do Estado na condução da política de regularização fundiária, eliminando entraves que, por anos, comprometeram a efetividade da Reurb. Com isso, superou-se um modelo que produzia dependência hierárquica indevida e frequentemente inviabilizava projetos relevantes por motivações políticas ou burocráticas.


