O acesso à saúde no STF: Impactos na cobertura assistencial e na judicialização
Número de ações judiciais sobre saúde suplementar aumentou 115% de 2020 a 2024.
sexta-feira, 28 de novembro de 2025
Atualizado em 27 de novembro de 2025 15:17
O julgamento recente da ADIn 7.265 pelo STF estabeleceu diretrizes sobre a natureza taxativa ou exemplificativa do chamado rol da ANS e intensificou os debates sobre o acesso à saúde no Brasil.
A discussão divide opiniões. Sob a perspectiva econômica, prevalece a defesa da garantia de previsibilidade de custos para assegurar a sustentabilidade dos planos privados de saúde. Já sob a ótica do paciente, predomina a defesa do direito fundamental à saúde e a proteção contra eventuais abusos.
As lacunas jurídicas, somadas às ineficiências sistêmicas do SUS e da saúde suplementar, abrem espaço para a intensa judicialização do setor, que expõe sérias disfuncionalidades nas políticas públicas e na assistência à saúde privada no Brasil.
Segundo dados do painel de Estatísticas Processuais de Direito à Saúde, o número de novos processos judiciais para discutir temas relativos à saúde suplementar cresceu de 141.305 para 304.171 entre 2020 e 2024, o que representa aumento de 115%. Embora a expansão não seja relacionada somente a casos envolvendo o rol da ANS, é um dado representativo da escalada das discussões judiciais sobre acesso à saúde no setor de saúde privado nos últimos anos.
A complexidade do assunto exige mudanças e adaptações coordenadas do setor, e um dos caminhos para conter esse desequilíbrio é a definição de parâmetros jurídicos mais claros para fornecer tratamentos e procedimentos não incorporados ao rol da ANS.
Em setembro de 2025, o STF julgou constitucional a lei 14.454/22, ao avaliar a ADIn mencionada, porém redefiniu requisitos cumulativos que autorizam a cobertura de procedimentos não previstos no rol da ANS. São eles:
- Prescrição do procedimento por médico ou odontólogo assistente habilitado;
- Ausência de decisão negativa expressa ou pendente para a incorporação pela ANS, sujeita a apuração de ilegalidade do ato de não incorporação pelo juiz;
- Inexistência de alternativa terapêutica prevista no rol da ANS;
- Comprovação de eficácia e segurança com base em evidências científicas robustas; e
- Registro na Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Vale destaque ao critério que elimina automaticamente da cobertura os tratamentos cuja incorporação tenha sido expressamente negada ou esteja pendente de avaliação por meio de uma PAR - Proposta para Atualização do Rol pela ANS. Não obstante, o STF admitiu a reavaliação da negativa pelo Judiciário, desde que sem interferência no mérito técnico-administrativo.
Com base em dados públicos do sistema da ANS, cerca de 48% das Propostas (PAR) submetidas entre outubro de 2021 até setembro de 2025 referem-se a novas tecnologias ou novas indicações de uso com incorporação negada ou pendentes de análise técnica pela ANS.
Este cenário consolida a autoridade da ANS para conduzir o procedimento de avaliação de tecnologias em saúde, de forma semelhante à tese estabelecida pelo STF no Tema 6 que, ao tratar de acesso a produtos não incorporados ao SUS, conferiu protagonismo similar à Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.
Outro critério que merece destaque é a exigência de que o tratamento pleiteado esteja registrado na Anvisa, bem como a demonstração da eficácia e segurança do tratamento, com base em evidências científicas consideradas de alto nível.
Em uma análise inicial, os requisitos cumulativos podem parecer redundantes, já que a comprovação de segurança e eficácia por meio de evidências científicas é condição prévia para o registro sanitário.
Entende-se que, sem o registro, não há cobertura; e, com o registro, estaria superada a exigência de apresentar provas adicionais de segurança e eficácia.
O acúmulo dos dois requisitos se justifica, contudo, em casos de produtos com indicação off-label, porém registrados na Anvisa, e desde que o autor da ação comprove a eficácia e a segurança do tratamento com base em evidências científicas robustas e atenda aos demais requisitos previstos na decisão.
De acordo com a decisão, a existência de alternativa terapêutica incorporada pela ANS também elimina a pretensão de cobertura. A avaliação concreta desse critério pode revelar-se desafiadora, além de subjetiva, na medida em que a decisão não pondera sobre eventual superioridade clínica entre as alternativas terapêuticas disponíveis.
Portanto, a análise pode dar margem à equiparação de tecnologias com níveis de qualidade e características distintas, apenas por serem consideradas alternativas, desconsiderando vantagens clínicas relevantes que poderiam justificar a escolha por uma delas, o que pode comprometer a qualidade da cobertura assistencial.
Com base neste panorama, observa-se que os contornos do acesso à saúde vêm sendo delineados pelo Judiciário que, por um lado, contribui para o fortalecimento da segurança jurídica ao suprir lacunas relevantes do ordenamento.
Por outro, essas decisões demandam reflexão cuidadosa, pois podem restringir os cenários de acesso e não constituem, por si só, uma solução definitiva para os múltiplos desafios relacionados à efetivação do direito à saúde. Esses exigem articulação entre os diversos atores envolvidos, além de medidas complementares voltadas ao aprimoramento do sistema de avaliação de tecnologias em saúde, de modo a assegurar decisões mais sólidas e embasadas em critérios técnicos e evidências científicas.
Os dados da ANS de 2024 mostram mais de 52,7 milhões de beneficiários em planos de assistência médica em 737 operadoras em atividade, com faturamento anual que ultrapassa R$ 350 bilhões. Esses números evidenciam a relevância econômica e social do setor, que responde por uma parcela significativa do acesso à saúde no país, tema central de debates jurídicos, regulatórios e políticos que impactam diretamente milhões de brasileiros.
Nicole Recchi Aun
Sócia da área de Life Sciences do Demarest Advogados. Possui LL.M. em Direito, Ciência e Tecnologia pela Universidade Stanford (EUA) e é graduada em Direito pela PUC-SP. Com 14 anos de experiência, atua na consultoria jurídica e regulatória para empresas dos setores de saúde e agronegócio, reguladas pela Anvisa e pelo Ministério da Agricultura e Pecuária.


