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Cegueira deliberada na lavagem de dinheiro

A fronteira entre o dolo eventual e o dever jurídico de saber no Direito Penal Econômico.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Atualizado às 09:13

A teoria da cegueira deliberada - também conhecida como willful blindness ou ignorância deliberada - consolidou-se como um dos temas mais sensíveis e controversos no âmbito da lavagem de dinheiro. No Brasil, sua incorporação jurisprudencial tem provocado debates intensos sobre limites do dolo, expansão punitiva e risco de criminalização de condutas neutras ou meramente imprudentes.

Afinal, até onde o agente pode se "abster" de saber da origem ilícita de um bem sem assumir responsabilidade penal? E quando essa abstenção, longe de ser descuido, transforma-se em estratégia consciente para evitar o conhecimento formal do crime antecedente?

1. Conceito: O que é a cegueira deliberada?

A cegueira deliberada é a situação em que o agente, diante de fortes indícios de ilicitude, deliberadamente evita aprofundar seu conhecimento sobre a origem criminosa do dinheiro ou dos bens, justamente para manter uma aparência de ignorância e tentar afastar o dolo.

Trata-se de um comportamento ativo de "não querer saber", típico em transações financeiras de alto risco, operações internacionais, consultorias, intermediações e setores sujeitos a compliance.

A doutrina descreve a cegueira deliberada como:

  • Uma estratégia consciente de esquivar-se do conhecimento do fato,
  • Que excede a mera imprudência,
  • Mas não chega ao dolo direto,
  • Aproximando-se do dolo eventual qualificado pela omissão intencional.

2. Origem e recepção no Brasil

A teoria nasceu no Direito anglo-saxão (common law), especialmente em casos de narcotráfico e operações bancárias suspeitas. No Brasil, não existe previsão legal expressa, mas o STJ e o STF passaram a utilizá-la para justificar o dolo na lavagem e no tráfico internacional.

O marco jurisprudencial no contexto de lavagem de dinheiro se deu em decisões que afirmaram:

  • Não é necessário conhecimento detalhado do crime antecedente,
  • Basta que o agente assuma o risco da ilicitude na origem dos valores,
  • E voluntariamente se coloque em posição de ignorância para não romper a aparência de legalidade.

Esse entendimento se harmoniza com o art. 2º, §1º, da lei 9.613/98, que prevê punibilidade da lavagem mesmo quando o crime antecedente não está comprovado, é desconhecido ou teve extinção da punibilidade.

3. Cegueira deliberada x dolo eventual x imprudência

O ponto mais delicado é distinguir a cegueira deliberada de outras categorias clássicas do Direito Penal:

a) Imprudência

O agente não sabe, mas deveria saber. Não há vontade de ignorar.

Não configura lavagem de dinheiro.

b) Dolo eventual

O agente sabe que pode existir origem ilícita e assume o risco conscientemente.

c) Cegueira deliberada

O agente tem razões concretas para suspeitar, mas opta por não investigar para manter-se "formalmente" distante do crime antecedente.

É, portanto, um dolo eventual reforçado por omissão intencional.

A diferença é que na cegueira deliberada há uma ação deliberada de evitar o conhecimento, algo inexistente na mera suspeita ou na negligência.

4. Critérios jurisprudenciais para aplicação

Décadas de debate consolidaram quatro critérios técnico-jurídicos para reconhecer a cegueira deliberada:

(1) Existência de sinais claros de ilicitude

A operação apresenta indícios robustos: preço incompatível, urgência exagerada, complexidade artificial, uso de terceiros, criptografia, contratos atípicos etc.

(2) Capacidade do agente de compreender o risco

A exigência é maior para profissionais: advogados, contadores, gestores, consultores, corretores, agentes financeiros.

(3) Deliberação consciente em "não saber"

Há atos positivos de evitar informações, documentos, auditorias ou due diligence.

(4) Vantagem obtida pela manutenção da ignorância

Ou seja: o agente lucra, evita responsabilidade ou facilita a operação ao "não perguntar".

Esses elementos afastam alegações de erro ou de conduta neutra.

5. Limites dogmáticos: Risco de expansão punitiva

A aplicação indiscriminada da cegueira deliberada é um risco real.

Autores como Zaffaroni, Badaró e Lobo da Costa alertam que:

  • Pode haver violação ao princípio da legalidade,
  • Risco de responsabilização objetiva,
  • Criminalização de atos neutros,
  • E inversão do ônus probatório.

No Direito Penal Econômico de alta complexidade, tecnicidade e assimetria informacional essas cautelas são indispensáveis para evitar decisões fundadas em meras conjecturas.

6. A cegueira deliberada na lavagem de dinheiro

A teoria é especialmente aplicada na lavagem porque:

  • O crime é plurissubsistente,
  • Envolve camadas de dissimulação,
  • Depende de transações estruturadas,
  • Exige postura ativa do agente,
  • E pressupõe riscos evidentes, sobretudo no mercado financeiro, imobiliário e empresarial.

Exemplos típicos:

  • Compra de imóveis pagos em espécie sem origem declarada;
  • Escritórios que recebem valores incompatíveis com atividade dos clientes;
  • Intermediação de operações com empresas de fachada;
  • Criação de estruturas societárias atípicas para ocultação.

7. Conclusão: Uma teoria útil, mas perigosa se aplicada sem rigor

A cegueira deliberada é ferramenta dogmática valiosa para enfrentar estruturas profissionais que se beneficiam da opacidade, mas precisa ser aplicada com rigor técnico para não violar direitos fundamentais.

No campo da lavagem de dinheiro, ela cumpre papel relevante ao afastar desculpas baseadas na mera alegação de ignorância, especialmente quando o agente:

  • Tinha meios para saber,
  • Tinha dever jurídico de saber,
  • E optou conscientemente por não saber.

A decisão final sempre exige prova concreta, e não presunção. Aplicada com critérios claros, a teoria reforça a tutela da ordem econômica e da administração da justiça sem sacrificar os pilares do Estado de Direito.

Paulo Marcos de Moraes

VIP Paulo Marcos de Moraes

Advogado especialista em Direito Penal Econômico, Mestre em Criminologia pela Universidad de la Empresa - UDE (Uruguai) e LL.M. em Direito Penal Econômico IDP

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