O voo do STF na suspensão das ações sobre atraso de voos
A recente decisão do STF que suspende todas as ações indenizatórias por atraso, cancelamento e alteração de voo demonstra o uso da repercussão geral como instrumento de contenção do acesso à Justiça.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2025
Atualizado às 10:37
O STF, nosso andorinhão-preto, que sobrevoa acima da vida concreta - e, tal como a ave que passa 90% do seu tempo no ar, parece quase nunca tocar o chão do Brasil.
A recente decisão monocrática do ministro Dias Toffoli, no ARE 1.560.244/RJ, que suspende nacionalmente todas as ações indenizatórias por atraso, cancelamento e alteração de voo, é mais um capítulo do fenômeno que avança silenciosamente no Brasil: o uso da repercussão geral como instrumento de contenção do acesso à Justiça.
Sob o argumento de combater "litigância predatória" e "insegurança jurídica", a decisão paralisa milhares de processos, transformando o direito fundamental de ação em promessa distante. E aqui está o primeiro problema: ao invés de enfrentar a precariedade crônica do setor aéreo - atrasos sistemáticos, superlotação, assistência negligenciada -, o discurso oficial transfere a culpa para quem reclama. O consumidor que busca ressarcimento vira predador; a companhia aérea, vítima.
É a mesma estratégia retórica que vemos em outros setores e o Judiciário, que deveria proteger o vulnerável, tomba perigosamente para a narrativa das corporações.
A suspensão determinada pelo STF impede que juízes analisem casos individuais, mesmo aqueles de danos evidentes e comprovados. A Justiça deixa de ser porta de socorro e se transforma em sala de espera - sem senha, sem previsão e sem horizonte. Na prática, não há segurança jurídica: há abandono jurídico.
A decisão parte de estatísticas apresentadas pelo próprio setor aéreo, alegando um número "excepcionalmente alto" de ações. Mas não há reflexão sobre por que existem tantas ações.
O que provoca judicialização no Brasil não é litigância predatória: é prestação de serviço predatória. É atraso de 10 horas. É cancelamento sem assistência. É família dormindo no chão de aeroporto. É idoso perdido em terminal porque a companhia aérea "alterou rota" sem justificativa.
A litigiosidade é o sintoma. O abuso é a causa.
A decisão ainda anuncia, com espantosa naturalidade, que pretende "desestimular, por ora, a litigiosidade de massa e/ou predatória".
O problema é que essa fórmula transforma em vício aquilo que, na realidade, é sintoma de um colapso estrutural de serviço. Litigiosidade de massa não surge do nada; ela nasce quando milhares de consumidores são lesados simultaneamente pelo mesmo padrão de conduta abusiva. Ao rotular o fenômeno como "predatório", o STF inverte a lógica constitucional: o que deveria ser visto como reação legítima a violações reiteradas se torna, paradoxalmente, objeto de reprimenda judicial.
Na prática, o Tribunal não desestimula abusos - desestimula denúncias. Não reduz danos - reduz direitos. E, ao suspender as ações individuais sob o pretexto de conter a litigiosidade, o Supremo cria um precedente perigoso: o de que, quando muitos são prejudicados ao mesmo tempo, o Estado responde não ampliando a tutela, mas fechando as portas da Justiça.
O mais grave, contudo, é o padrão que se repete: sempre que uma questão envolve milhões de pessoas simples - consumidores, aposentados, pensionistas - discute-se "litigância predatória" e decide-se pela suspensão das ações. Quando envolve interesses concentrados de grandes grupos econômicos - bancos, aéreas, planos de saúde - discute-se "segurança jurídica" e decide-se pela proteção das corporações.
A escolha política do discurso determina quem tem o direito de existir perante o Judiciário. O discurso é sedutor: combater "litigância predatória", evitar decisões conflitantes, resguardar a segurança jurídica. A prática é devastadora: milhares de processos paralisados e consumidores condenados a esperar indefinidamente por um julgamento que pode levar anos. E, nesse intervalo, nenhum prejuízo é reparado, nenhuma assistência é garantida, nenhum dano é reconhecido.
O curioso é que a decisão não encara a causa real da litigiosidade: a precariedade crônica da aviação civil brasileira. Atrasos sistemáticos, assistências negligenciadas, remarcações arbitrárias - tudo isso desaparece do radar quando o Judiciário escolhe apontar o dedo não para o serviço mal prestado, mas para o passageiro que ousou reclamar.
E é nesse ponto que surge a face mais preocupante do momento judicial brasileiro: o ativismo judicial do STF, que se expressa na crença de que a Corte pode reinterpretar, sobrepor, modular ou simplesmente ignorar qualquer legislação - inclusive a Constituição - desde que o faça em nome de valores vagos como "segurança jurídica", "economia do setor" ou "desestimular, por ora, a litigiosidade de massa".
Esse ativismo, que deveria ser prudência constitucional, transforma-se em licença para ultrapassar a lei, criando soluções que avançam sobre competências legislativas e restringem direitos fundamentais sob o pretexto de protegê-los. E ainda, fortalece a perigosa ideia de que o Supremo pode, sempre que julgar conveniente, reconfigurar o sistema jurídico ao seu próprio modo, ainda que às custas do cidadão mais vulnerável.
No caso dos atrasos de voo, o Supremo repete a fórmula vista em outros temas de impacto massivo: identifica-se um volume grande de ações; culpa-se a advocacia e o cidadão; conclui-se pela necessidade de "conter" a judicialização; suspende-se tudo.
A repercussão geral, criada para evitar decisões divergentes, vem sendo usada como ferramenta de silenciamento de direitos individuais, especialmente de quem não tem força institucional para reagir.
A consequência concreta é brutal: passageiros que perderam compromissos familiares, consultas médicas, oportunidades profissionais ou tiveram gastos extras com alimentação e hospedagem agora não podem sequer ter seus casos analisados. Permanecem congelados em uma fila sem prazo, sem fluxo e sem esperança.
A suspensão nacional determinada no Tema 1.417 da repercussão geral poderia ser oportunidade de uniformização do direito, todavia, a forma como foi conduzida revela outra finalidade: adiar, silenciar e conter.
E nesse intervalo - que pode durar anos - quem perdeu viagem, oportunidade, consulta médica, compromisso profissional? Quem gastou com hotel extra, alimentação e transporte? Quem ficou abandonado no aeroporto às 3 da manhã? Fica esperando. Sem julgamento. Sem reparação. Sem Justiça.
A solução constitucionalmente adequada não é suspender processos, mas justamente o contrário e mais simples: aplicar a lei. Isso significa permitir o prosseguimento das ações individuais, com julgamento de mérito, apuração da ilicitude e condenação aos danos material e moral, observando também o caráter preventivo e pedagógico (já consolidado na jurisprudência), capazes de desestimular práticas abusivas e incentivar a melhoria efetiva dos serviços prestados à população.
Segurança jurídica não se constrói blindando grandes corporações da responsabilização; constrói-se exigindo o cumprimento das normas, protegendo o consumidor e garantindo que cada violação gere consequências proporcionais - e não silêncio judicial.
No fim das contas, a suspensão nacional das ações por atraso de voo não dialoga com o sofrimento dos passageiros, não enfrenta a irresponsabilidade das companhias aéreas, e tampouco honra o Direito Constitucional de ação. É uma decisão que paira acima da vida concreta - como o andorinhão-preto, ave que passa 90% do seu tempo no ar, quase sem tocar o chão.
O problema é que, enquanto o andorinhão sobreviveria eternamente da altura, o Supremo não pode. Justiça não se faz a 3.000 metros, longe do calor do aeroporto lotado, do idoso abandonado, da mãe que perdeu a consulta do filho, do trabalhador preso em conexões impossíveis.
Quando o STF sobe alto demais, perde a visão de quem está no solo. E um Tribunal que não enxerga o chão - o chão onde o povo sofre, espera, perde e paga - não está acima da Constituição: está fora dela. Assim, ao decidir como um andorinhão-preto, o Supremo não apenas se distancia das situações terrenas: ele abandona quem não pode voar.


