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Ecocídio

Ecocídio e Direito Penal econômico: um novo marco na responsabilização penal empresarial ambiental brasileira.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Atualizado às 14:26

1. Introdução: Entre a crise ecológica, o capitalismo extrativista e a promessa punitiva

Vivemos o momento mais decisivo da história ambiental humana. Não se trata apenas de degradação ecológica: o que está em curso é um modelo civilizatório que consome biomas, populações tradicionais, biodiversidade e o próprio futuro. A Amazônia, o Cerrado e os grandes ecossistemas brasileiros são hoje o epicentro de uma disputa global entre preservação e lucro. Nesse cenário, surge, com força inédita, a proposta de criminalização do ecocídio, como resposta penal à destruição ambiental de larga escala.

Mas quando o Direito Penal adentra o território ambiental, ele não chega sozinho: traz consigo a memória de encarceramentos seletivos, a lógica do inimigo e a eterna tentação de transformar o punitivismo em solução mágica para problemas complexos. Por isso, este artigo vai além da mera descrição legislativa. Ele propõe uma reflexão provocativa: o ecocídio será um marco de proteção intergeracional ou mais um capítulo do expansionismo penal simbólico?

O debate exige maturidade crítica. Exige reconhecer que o Brasil está sob os olhos do mundo, especialmente com a realização da COP30. Exige compreender que grandes empresas, gestores públicos, investidores e agentes econômicos precisam reformular suas práticas, não apenas para evitar punições, mas para sobreviver em uma economia global onde sustentabilidade, compliance e governança ambiental não são mais slogans - são requisitos de permanência.

E mais: exige responsabilidade técnica para que a criminalização do ecocídio não se transforme em instrumento de retórica política, seletividade penal ou insegurança jurídica.

É nesse ponto que este artigo se diferencia: ele não apenas analisa o tipo penal. Ele revela seus riscos, suas oportunidades e os impactos reais para empresários, gestores, advogados, investidores e operadores do sistema de Justiça.

2. O conceito de ecocídio: Entre a gravidade da ofensa e a vagueza da norma

O PL 2933/23 propõe um novo título na parte especial do CP: "Dos Crimes contra o Meio Ambiente e as Futuras Gerações", com destaque para o art. 361-A, que define:

"Causar danos graves, amplos ou duradouros ao meio ambiente, com impacto significativo em ecossistemas, recursos naturais, biodiversidade, clima, ou nas condições de vida de populações humanas ou não humanas."

Modalidades previstas:

  • Ecocídio simples: Reclusão de 10 a 20 anos e multa;
  • Ecocídio qualificado: Se resulta na morte de pessoa - reclusão de 15 a 30 anos e multa;
  • Ecocídio culposo: Reclusão de 5 a 10 anos e multa.

A norma também prevê sanções a pessoas jurídicas, inclui como condutas típicas a destruição de biomas, o desmatamento ilegal, a mineração devastadora, a poluição de recursos hídricos e o financiamento de atividades com dano ambiental irreversível.

Embora a intenção do legislador seja louvável, a técnica legislativa adotada apresenta vícios que colocam em xeque o princípio da legalidade estrita e da taxatividade. O uso de expressões genéricas como "danos graves", "impacto significativo" ou "condições de vida de populações não humanas" gera insegurança jurídica, dificultando a modulação prática da conduta típica. Há risco claro de se criar um tipo penal de contornos abertos, incompatível com o Estado de Direito.

3. Direito Penal Econômico e a tensão com o princípio da ultima ratio

O ecocídio está no epicentro do debate sobre os limites do Direito Penal Econômico contemporâneo. Por um lado, há uma inegável necessidade de enfrentamento das condutas empresariais que produzem danos ambientais em larga escala. Por outro, o Direito Penal deve intervir somente quando os demais ramos do Direito se revelarem ineficazes - é a cláusula da ultima ratio, essência do garantismo penal.

A criminalização do ecocídio será legítima se - e somente se - respeitar os seguintes pilares:

  • Proporcionalidade normativa e seletividade repressiva;
  • Subsidiariedade real frente ao Direito Administrativo Sancionador;
  • Clareza tipológica e modulação objetiva das condutas.

Caso contrário, o tipo penal incorre no risco de funcionar como mais um instrumento de Direito Penal simbólico: normativamente promissor, mas estruturalmente ineficaz e politicamente manipulável.

4. Ecocídio e a encruzilhada entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador

O Direito Ambiental brasileiro já dispõe de instrumentos administrativos robustos (lei 9.605/1998), que incluem multas, embargos e responsabilidade civil objetiva por danos ambientais. O problema é outro: falência da estrutura estatal de fiscalização e captura regulatória.

A proposta legislativa ignora essa realidade institucional e aposta na sanção penal como panaceia. No entanto, o Direito Penal não substitui políticas públicas ambientais, tampouco corrige, por si só, déficits de enforcement regulatório.

Utilizar o Direito Penal como substituto de agências frágeis é um erro estratégico que sobrecarrega o sistema punitivo, gera seletividade e obscurece a verdadeira natureza do problema: a ausência de vontade política e capacidade estatal para aplicar a legislação vigente.

5. A responsabilidade penal das empresas e os desafios da imputação objetiva

O PL prevê a responsabilização penal de pessoas jurídicas por ecocídio, amparado no art. 225, § 3º, da Constituição. Contudo, o debate sobre a efetividade e a justiça dessa imputação continua relevante.

A responsabilização penal empresarial exige critérios técnicos rigorosos:

  • Quebra de deveres de compliance e diligência;
  • Nexo causal entre a falha organizacional e o dano coletivo;
  • Adoção de modelo de imputação funcional e não meramente objetivo.

A responsabilidade penal não pode prescindir de análise fática sobre a cultura de integridade da organização, seus mecanismos internos de controle e a autonomia decisória de seus administradores. Sem isso, o risco de arbitrariedade se intensifica.

6. Greenwashing, ESG e compliance: o enforcement sistêmico

O ecocídio se conecta diretamente com práticas de greenwashing, onde empresas promovem falsas aparências de sustentabilidade. A repressão penal, nesses casos, exige acoplamento com sistemas de integridade corporativa robustos.

O greenwashing pode configurar:

  • Falsidade ideológica (art. 299, CP);
  • Estelionato ambiental;
  • Crime contra relações de consumo ou fraude contra a ordem econômica.

Por sua vez, programas de ESG e compliance ambiental deixam de ser apenas ferramentas de governança e se tornam instrumentos de prevenção penal, reforçando a imputação funcional da responsabilidade corporativa.

7. Direito Comparado e a COP30 como catalisador normativo

A proposta de ecocídio alinha-se com uma tendência internacional. Leis similares foram aprovadas em países como França e Filipinas. No âmbito do TPI, discute-se sua inclusão como 5º crime internacional ao lado do genocídio e crimes de guerra.

COP30, a ser sediada no Brasil, reforça a urgência da pauta. Contudo, é preciso cautela: o protagonismo jurídico internacional não deve ser conquistado à custa do garantismo penal.

Propostas penais que ignoram os princípios de legalidade, proporcionalidade e taxatividade, ainda que bem-intencionadas, podem comprometer a legitimidade do sistema de Justiça ambiental.

8. Conclusão: Entre a esperança ecológica e o risco do expansionismo penal

A tipificação do ecocídio é um passo importante, mas não pode ser adotada de forma açodada ou demagógica. A proteção penal do meio ambiente exige racionalidade, técnica legislativa, contenção e efetividade.

O Direito Penal não pode se transformar em instrumento simbólico para camuflar a ineficácia do sistema administrativo. Tampouco pode ceder ao populismo punitivo sob pretexto ecológico.

Se bem construído, o tipo penal do ecocídio pode representar um marco de responsabilização empresarial e de proteção intergeracional. Mas, para isso, deve ser fiel à função garantista do Direito Penal: proteger bens jurídicos sem trair as garantias individuais.

Paulo Marcos de Moraes

VIP Paulo Marcos de Moraes

Advogado especialista em Direito Penal Econômico, Mestre em Criminologia pela Universidad de la Empresa - UDE (Uruguai) e LL.M. em Direito Penal Econômico IDP

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