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A identidade da advocacia pública municipal e o modo de pensar municipal

Texto evidencia o município como centro da vida política, defendendo uma advocacia pública municipal próxima, técnica e ligada à realidade local.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Atualizado às 11:32

"A vida é um assunto local", dizia Charles Chaplin. A frase, de aparência simples, revela uma intuição profunda sobre a experiência humana: o cotidiano, com suas urgências, limitações, vulnerabilidades e possibilidades; acontece no território imediato em que as pessoas vivem. É exatamente nessa dimensão que, como lembram Ivo Dantas e Gina Gouveia Pires de Castro, "o município traz na sua administração os problemas do cotidiano, ligados diretamente às pessoas que nele residem, o que não acontece quando se pensa na União e no estado"1.

Essa centralidade do município não é produto recente. Como recorda Michel Temer:

A autonomia municipal, no Brasil, é realidade natural anterior à própria autonomia política dos Estados federados. Basta examinar a origem do município, tão bem explicada por Ataliba Nogueira nas preciosas Lições de Teoria Geral do Estado, publicadas pelo Instituto de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Ensina que os aglomerados humanos se formaram em torno de uma capela, templo erigido pelos colonizadores em face de sua intensa religiosidade, sempre que se avizinhavam. Isto ocorreu antes mesmo da Independência, época em que vigoravam as Ordenações do Reino português. Entretanto, os vizinhos não aplicavam aqueles comandos legais. Às vezes, nem mesmo os conheciam. Legislavam de acordo com os usos e costumes, de acordo com as necessidades locais. Daí se vê que esses aglomerados humanos dispunham a respeito dos negócios locais por meio de manifestações também locais2.

Por isso, a clássica observação de André Franco Montoro torna-se quase óbvia, embora decisiva: "ninguém vive na União ou no Estado; as pessoas vivem no município." É nesse ente federativo que se estrutura o vínculo imediato entre o indivíduo e o poder público. É nele que a Constituição encontra sua dimensão existencial.

E, por fim e por ora, Roque Antônio Carrazza, aludindo a Rui Barbosa, recoloca essa evidência histórica em termos quase orgânicos:

O município, como instituição herdada dos colonizadores portugueses, é, realmente, a célula mater da Nação. Era pensando nisto que Rui Barbosa dizia:"não há corpo sem células. Não há Estado sem Municipalidades. Não pode existir matéria vivente sem vida orgânica. Não se pode imaginar existência de Nação, existência de povo constituído, existência de Estado, sem vida municipal 3.

Qual é o fio condutor que atravessa o pensamento de todos esses autores? O que há de comum em todas essas reflexões é a afirmação de uma verdade estrutural: o município constitui o espaço originário e insubstituível da vida política. É no âmbito municipal que a existência cotidiana se desenrola, que os problemas reais se manifestam e que as soluções concretas são concebidas; por isso, a municipalidade é o fundamento concreto, histórico e existencial da própria organização política. Não é o município que deriva do Estado, mas o Estado que se forma a partir dos municípios.

Se isso é uma premissa, o que falar do Brasil: país de dimensão continental, com mais de 5.500 municípios, marcado por diversidades históricas e culturais, assimetrias regionais e socioeconômicas? O Brasil é, estruturalmente, um país municipalista. E, a partir da CF/88, tornou-se uma Federação composta pela União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, todos autônomos (arts. 1º e 18). De forma pioneira, portanto, a Carta Constitucional elevou os municípios a unidades federativas, com autonomias político-administrativas - auto-organização, autogoverno e autoadministração - tanto quanto os Estados e a União, visando, todos esses entes federativos, cumprir os fundamentos da República.

Isso significa afirmar que a União, os Estados, os municípios e o Distrito Federal devem atuar de forma cooperativa para realizar os direitos fundamentais, efetivando os objetivos do Estado Federal brasileiro (art. 3º da CF/88). Portanto, para a existência de um modelo federativo cooperativo, é imprescindível compreender a repartição de competências e as autonomias estabelecidas aos entes federados, os limites de atuação de cada qual, as peculiaridades e diversidades locais, bem como a necessidade de cláusulas homogêneas - aquilo que se costuma definir como a unidade na diversidade.

Vale dizer: identificar, tanto quanto possível, o que deve subsistir como uniformidade para todos os entes federativos, a fim de preservar a integridade do Estado Federal brasileiro (cláusulas homogêneas), e, ao mesmo tempo, reconhecer as diversidades inerentes a cada ente subnacional, sempre orientando essa equação pela finalidade maior de realização dos direitos fundamentais.

Nessa perspectiva, e considerando o Brasil como um país municipalista, no qual o município constitui o espaço originário e insubstituível da vida política, torna-se necessário estabelecer a premissa da identidade epistêmica4 da advocacia pública municipal e a formação de um modo de pensar municipal, sem que isso constitua um obstáculo epistemológico5 ou mesmo uma injustiça epistêmica6. Se a vida é municipal, como demonstrado, então também o pensamento jurídico que orienta a atuação estatal deve ser, em alguma medida, permeado por essa centralidade.

Como se disse, a municipalidade é o espaço mais complexo, mais dinâmico e mais multifacetado da Federação. É nele que as demandas sociais se apresentam em estado bruto, que as políticas públicas ganham forma imediata e que a máquina administrativa se revela em toda a sua intensidade. Nesse ambiente, um pensamento verdadeiramente municipal é indispensável, razão pela qual a Procuradoria desempenha sua função constitucional com técnica, coerência e sensibilidade ao contexto local.

O modo de pensar municipal é marcado por uma característica que nenhuma outra esfera estatal enfrenta com igual intensidade: a proximidade. A advocacia pública municipal lida diariamente com problemas que atingem pessoas reais, comunidades específicas, territórios delimitados e urgências sociais imediatas. Sua atuação não se desenvolve em um plano abstrato. Ela conecta diretamente o ordenamento jurídico ao universo concreto das pessoas e da vida urbana. Essa imersão cotidiana exige uma epistemologia que reconheça a centralidade do território, a especificidade do contexto local e a necessidade de decisões que produzam efeitos práticos consistentes. A teoria, no âmbito municipal, somente se legitima na medida em que consegue dialogar com a realidade e transformá-la.

É dessa proximidade que nasce a identidade da advocacia pública municipal. Ela não se forma apenas em manuais, nem em precedentes abstratos, mas na conjugação permanente entre Direito, política pública e realidade urbana. A procuradora e o procurador municipal precisam interpretar normas diante de cenários que frequentemente desafiam os limites formais do direito: ocupações irregulares, crises de mobilidade, vulnerabilidades sociais extremas, tensões ambientais, demandas emergenciais e lacunas estruturais. Esse ambiente exige criatividade jurídica e inovação, mas exige também fidelidade constitucional. Exige a capacidade de construir soluções normativas sem perder de vista os princípios estruturantes do Estado, e igualmente sensibilidade para adaptar essas soluções ao contexto real da cidade.

Além disso, o modo de pensar municipal é marcado por sua natureza interdisciplinar. A advocacia pública municipal não pode se contentar em operar apenas com referências jurídicas. Ela deve, em certa medida, compreender urbanismo, planejamento, orçamento, políticas sociais, infraestrutura, tecnologia, meio ambiente, dados, governança e Administração Pública. Essa interdisciplinaridade é uma imposição decorrente do lócus urbano da sua própria atuação.

A complexidade dos problemas locais não permite que o pensamento jurídico se restrinja à teoria. A procuradora e o procurador do município precisam transitar entre diversos campos do conhecimento, interpretar suas interfaces e produzir sínteses capazes de orientar decisões administrativas com segurança jurídica.

Há, ainda, uma dimensão institucional que molda essa identidade. A advocacia pública municipal atua em ambiente em que a política é intensa, a pressão social é constante e os recursos são limitados. A insuficiência material muitas vezes exige respostas criativas, mas sempre dentro dos limites da juridicidade. É nesse equilíbrio entre firmeza técnica e sensibilidade institucional que se forma o "modo de pensar municipal". Não basta apenas conhecer o Direito. É preciso compreender o funcionamento e a realidade da cidade, suas restrições orçamentárias, seus desafios históricos, sua riqueza cultural, suas desigualdades. A Procuradoria Municipal é chamada a atuar como intérprete dessa complexidade.

A identidade da advocacia pública municipal também se revela na forma como ela lida com o tempo. O município trabalha sob a lógica do agora, sem poder negligenciar o amanhã. Essa tensão permanente entre urgência e planejamento cria um ambiente em que a atuação jurídica precisa ser simultaneamente responsiva e estratégica. O pensamento municipal é, portanto, um pensamento de limite: precisa compatibilizar emergência e estrutura, celeridade e consistência, demanda imediata e preservação institucional.

Outro aspecto relevante dessa identidade é sua vinculação direta com as políticas públicas. Os procuradores e as procuradoras municipais não apenas interpretam normas. Eles colaboram na estruturação de programas, orientam decisões, desenham procedimentos e acompanham, em certa medida, execuções. A partir dessa posição, a advocacia pública municipal compreende que o jurídico não é acessório, mas parte integrante do ciclo das políticas públicas. Essa consciência transforma a atuação jurídica, que deixa de ser meramente opinativa e passa a ser constitutiva da ação estatal. O pensamento municipal, assim, é pensamento construtivo: participa ativamente da formação das políticas que moldam a vida na cidade.

Ao final, compreender a identidade da advocacia pública municipal é reconhecer que ela possui campo próprio de produção de conhecimento jurídico. É um pensamento que nasce do território, da proximidade, da interdisciplinaridade, do tensionamento social, da responsabilidade democrática e da necessidade de resultados concretos. É um pensamento que exige maturidade institucional e profundidade técnica. E é justamente por essa singularidade que a advocacia pública municipal, como função essencial à Justiça, ocupa posição tão relevante no arranjo federativo e constitucional brasileiro.

Neste sentido, nas eventuais disputas hermenêuticas nas esferas estaduais e Federais que envolvam questões municipais, é fundamental que os argumentos locais sejam considerados no mesmo nível de complexidade das questões jurídicas amplas, gerais e abstratas, pois, de outro modo, vieses implícitos e explícitos podem operar no sentido de um déficit de credibilidade7.

Em assim sendo, o pensar municipal, como expressão jurídica da vida nas cidades, fortalece o município enquanto ente federativo, território e espaço democrático e, nessa mesma perspectiva, confere à advocacia pública municipal o papel institucional indispensável à concretização dos direitos fundamentais no lugar onde as pessoas vivem e a vida pulsa.

_____________________

1 DANTAS, Ivo; CASTRO, Gina Gouveia Pires de. Os municípios e a federação brasileira: a importância desses no contexto constitucional brasileiro. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MENDES, Gilmar Ferreira. (coord.) Tratado de direito municipal. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 109.

2 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 19 ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2004, p. 104/105.

3 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 27 ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2011, p. 193.

4 Por identidade epistêmica refiro-me à forma como o conhecimento é produzido enquanto tal e reconhecido como válido.

5 BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Tradução de Fátima Lourenço Godinho e Mário Carmino Oliveira. Portugal: Editora 70, 2006

6 FRICKER, Miranda. Can There Be Institutional Virtues? Oxford Studies in Epistemology, v. 3, 2010.

7 FRICKER, Miranda. Can There Be Institutional Virtues? Oxford Studies in Epistemology, v. 3, 2010.

Gustavo Machado

VIP Gustavo Machado

Procurador do Município do Recife. Advogado. Sócio de Cruz & Machado Sociedade de Advogados. Ex-Presidente da Associação Nacional das Procuradoras e dos Procuradores Municipais.

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