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A ilusão das odds: Informação falha e explosão de dívidas

Casas de apostas omitem riscos, violam a lei 14.790/23 e induzem decisões viciadas, contribuindo para o superendividamento e gerando responsabilidade civil.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Atualizado às 11:34

Um dos pontos centrais e ainda pouco explorados na intersecção entre superendividamento e apostas online diz respeito à qualidade da informação prestada pelas casas de apostas.

A lei 14.790/23 foi clara ao equiparar o apostador ao consumidor, assegurando-lhe todos os direitos previstos no CDC (art. 27) e impondo deveres específicos de informação qualificada, especialmente sobre riscos de perda e transtornos relacionados ao jogo.  

Trata-se de um deslocamento importante: se antes as bets operavam num ambiente de informação superficial e publicidade agressiva, agora passam a responder diretamente por omissões que possam induzir o consumidor a comportamentos excessivos e financeiramente danosos. 

O problema é que, na prática, a informação fornecida pelas casas de apostas permanece parcial, insuficiente e enviesada. O modelo de comunicação predominante enfatiza apenas o potencial de ganho ("odds"), omitindo a contrapartida essencial: a probabilidade real de perda. 

Essa assimetria informacional não é acidental; ela estrutura a lógica de funcionamento das plataformas. Quando o consumidor lê que uma aposta paga "17 por 1", ele visualiza, de imediato, a promessa de multiplicação do dinheiro - mas não tem acesso ao dado crucial de que, nessa aposta, a chance de perda é de aproximadamente 94%.  

Segue um quadro do exposto para melhor visualização:

Quadro - Assimetria informacional nas apostas de quota fixa 

Informação destacada pela casa de apostas 

Informação omitida (mas essencial para decisão consciente) 

"ODD 17:1 - Ganhe 17 vezes o valor apostado!" 

Probabilidade real de ganho: cerca de 6% 

Ênfase no ganho potencial e no "sonho da multiplicação". 

Informação técnica necessária para avaliar racionalmente o risco. 

Cria ilusão de chance elevada e ativa vieses cognitivos. 

Mostra que o evento positivo é estatisticamente improvável. 

O que o consumidor imagina 

O que realmente acontece 

"Tenho boas chances. Se der certo, ganho muito." 

Probabilidade de perda: aproximadamente 94% 

Foco emocional no prêmio. 

Probabilidade concreta de que o valor investido será perdido. 

Sensação de controle sobre o resultado. 

Risco elevado camuflado pela publicidade e pela apresentação da ODD. 

Como o mesmo dado deveria ser apresentado para cumprir a lei

Modelo atual (irregular) 

Modelo conforme Lei 14.790/2023 (informação adequada) 

"ODD 17:1" 

"ODD 17:1 - Chance de ganho: 6% / Chance de perda: 94%" 

Ênfase exclusiva no ganho. 

Informação completa, clara e proporcional sobre riscos. 

Estímulo ao comportamento impulsivo. 

Decisão consciente, com compreensão do risco financeiro. 

O resultado é um cenário informacional desequilibrado, que alimenta vieses cognitivos como otimismo irreal, ilusão de controle e foco exclusivo no ganho.

A lei das bets não autoriza esse tipo de comunicação pela metade. Ao contrário, seu art. 27, §1º, III, exige informação "adequada e clara quanto aos riscos de perda dos valores das apostas". Não há espaço para avisos genéricos como "jogue com responsabilidade", que nada acrescentam ao entendimento do consumidor.

A legislação exige, assim, a exposição concreta do risco, e não apenas declarações morais ou slogans institucionais. Ao ocultarem a probabilidade de perda e destacarem apenas o ganho potencial, as casas de apostas descumprem um dever legal expresso e essencial para a formação da vontade do consumidor. 

Essa deficiência informacional tem repercussões diretas no fenômeno do superendividamento. A omissão sistemática dos riscos induz o apostador a tomar decisões sem a compreensão mínima necessária para avaliar o impacto financeiro de suas escolhas. Essa situação aproxima o apostador do consumidor que contrata crédito sem clareza acerca do custo total do empréstimo, dos riscos de inadimplemento e das consequências patrimoniais futuras. Assim como o fornecedor de crédito é responsabilizado pela concessão irresponsável, o operador de apostas deve responder pela informação irresponsável - que, quando falha, distorce expectativas e impulsiona o consumo excessivo.

É razoável sustentar que, quando a aposta é realizada em ambiente marcado por omissão de informações essenciais sobre risco, há vício de consentimento que contamina a própria formação do contrato. Nesse caso, a casa de apostas passa a responder pelos danos decorrentes, inclusive pelos efeitos do superendividamento desencadeado pela prática reiterada de apostas estimuladas por comunicação enganosa ou incompleta. A responsabilidade civil, nesse contexto, pode assumir caráter solidário com outros fornecedores envolvidos na cadeia de consumo, conforme a lógica protetiva do CDC e o regime de tutela do superendividado.

Essa perspectiva encontra paralelo no regime do crédito responsável: se o banco deve avaliar capacidade financeira e informar de modo completo, também não é razoável que as casas de apostas - que exploram um mercado igualmente sensível e de alto risco - possam operar sem informar adequadamente o consumidor sobre probabilidades de perda ou sobre os riscos de compulsão e danos financeiros.  

Em ambos os casos, a consequência jurídica da informação inadequada é a possibilidade de restituição de valores, reconhecimento do vício de consentimento e responsabilização objetiva por danos materiais e morais.

Além disso, o descumprimento do dever de informar abre espaço para sanções administrativas pelos órgãos de defesa do consumidor e pelo Ministério da Fazenda, especialmente porque a lei 14.790/23 pretendeu instaurar um modelo regulatório baseado no jogo responsável. A efetividade dessa política depende, necessariamente, da qualidade da informação prestada - e não de avisos genéricos que têm mais caráter retórico do que funcional.

Nesse cenário, a responsabilização das casas de apostas não é apenas possível, mas coerente com a lógica protetiva que estrutura o direito do consumidor e com os próprios objetivos da lei do superendividamento. Sem informação adequada sobre riscos, o apostador não exerce sua autonomia de forma plena; ele apenas reage aos estímulos comportamentais e às estratégias persuasivas que caracterizam as plataformas.

A responsabilização, portanto, é não só jurídica, mas socialmente necessária, funcionando como mecanismo de ajuste para equilibrar um mercado que, hoje, opera com assimetria informacional severa e produz impactos significativos sobre a saúde financeira de milhões de famílias.

Ademais, nada impede - ao contrário, é plenamente compatível com a teleologia do sistema - que as casas de apostas sejam chamadas ao processo de superendividamento, sempre que houver prova de que não cumpriram o dever legal de informar os riscos reais das apostas.

A finalidade, nesse caso, não é submetê-las ao plano de pagamento a ser construído para reorganizar a vida financeira do consumidor, mas sim indenizar pelos valores apostados, devolvendo ao consumidor recursos que lhe foram extraídos de forma viciada e que podem ser decisivos para a recomposição do mínimo existencial e para a construção de uma solução efetiva de reorganização financeira.

Trata-se de uma via de responsabilização coerente com o modelo de proteção integral do superendividado, assegurando que quem lucrou à custa da omissão informacional contribua para a reparação do dano que ajudou a produzir.

Leonardo Garcia

VIP Leonardo Garcia

Procurador do Estado do Espírito Santo; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, Autor dos livros e parecerista

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