ODS 16 e o crime de lavagem de dinheiro
ODS 16 e o crime de lavagem de dinheiro: Paz, justiça e instituições em risco.
terça-feira, 30 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:11
Introdução
O ODS 16 - Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 da Agenda 2030 da ONU visa "promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis". Para alcançar esses ideais de paz, justiça e instituições fortes, a Agenda inclui metas específicas que atacam as raízes da violência, da corrupção e do crime organizado. Dentre elas, destacam-se as metas de reduzir fluxos financeiros ilícitos, combater todas as formas de crime organizado e recuperar ativos roubados (meta 16.4), bem como reduzir substancialmente a corrupção e o suborno (meta 16.5). Esses objetivos colocam em foco o crime de lavagem de dinheiro, mecanismo pelo qual recursos de atividades ilícitas são ocultados e integrados à economia legal. A lavagem de dinheiro funciona como o elo financeiro que viabiliza e expande os demais crimes graves - corrupção sistêmica, tráfico de drogas, tráfico de pessoas, terrorismo -, minando o Estado de Direito e desviando recursos que poderiam financiar o desenvolvimento sustentável.
A magnitude do problema é expressiva. Estimativas do UNODC - Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime apontam que, a cada ano, o montante de dinheiro lavado globalmente equivale a 2% a 5% do PIB mundial, algo entre US$ 800 bilhões e US$ 2 trilhões. Entretanto, a eficácia do enfrentamento a esses fluxos ilícitos ainda é limitada: menos de 1% do dinheiro sujo é efetivamente apreendido ou confiscado pelas autoridades. Essa discrepância evidencia um gap preocupante entre a escala do problema e a capacidade institucional de combatê-lo, representando um enorme desafio para o cumprimento do ODS 16.
Neste artigo, exploramos de forma crítica e reflexiva a relação entre o ODS 16 e o crime de lavagem de capitais. Analisaremos como a lavagem de dinheiro se coloca como obstáculo às metas de paz, justiça e instituições eficazes, bem como quais medidas e iniciativas vêm sendo adotadas, ou precisam ser aprimoradas , para superá-lo. Em um contexto em que fluxos financeiros ilícitos privam países de recursos essenciais para garantir paz, justiça e instituições sólidas, entender e enfrentar a lavagem de dinheiro é condição indispensável para alcançar sociedades mais justas e sustentáveis.
ODS 16: Paz, justiça e instituições eficazes
O ODS 16 representa o compromisso global de construir sociedades livres de medo e corrupção, onde impere o Estado de Direito e os direitos humanos sejam assegurados. Suas metas abrangem desde a redução de todas as formas de violência (16.1) e o fim da exploração e tráfico de crianças (16.2), até a promoção do Estado de Direito e acesso igualitário à justiça (16.3). Também incluem combater fluxos ilícitos de dinheiro e armas, recuperar ativos roubados e desmantelar o crime organizado (16.4), combater a corrupção e o suborno (16.5), garantir instituições transparentes e eficazes (16.6) e decisões públicas inclusivas (16.7). Outras metas visam ampliar a participação de países em desenvolvimento nas instâncias globais (16.8), assegurar identidade legal para todos (16.9), garantir acesso público à informação e liberdades fundamentais (16.10), fortalecer instituições nacionais para prevenção da violência, terrorismo e crime, inclusive via cooperação internacional (16.a), e promover leis não discriminatórias (16.b).
Essa ampla gama de metas reflete a visão de que paz, justiça e instituições fortes são interdependentes e fundamentais para o desenvolvimento sustentável. A corrupção endêmica, o crime organizado e a violência sistemática corroem a confiança nas instituições, drenam recursos públicos e violam direitos, afetando desproporcionalmente as populações mais vulneráveis. Por isso, o ODS 16 é bastante específico ao propor a redução dos fluxos de ativos ilícitos e do dinheiro sujo no planeta, o aperfeiçoamento da recuperação de ativos desviados ou lavados, e o combate a todas as formas de corrupção. Tais medidas estão no cerne da agenda de integridade global, pois há consenso de que a corrupção - frequentemente viabilizada pela lavagem de dinheiro - mina a capacidade dos Estados de enfrentar a pobreza e a marginalização, dificulta investimentos em saúde, saneamento básico e educação, e compromete o desenvolvimento socioeconômico. Em suma, sem coibir fortemente a corrupção e os fluxos ilícitos (inclusive pela prevenção à lavagem), os recursos para promover os demais ODS ficam escassos e as instituições permanecem fragilizadas.
Lavagem de dinheiro: Conceito, legalidade e bens jurídicos tutelados
Lavagem de dinheiro é o processo pelo qual se "ocultam ou dissimulam a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade" de bens ou valores provenientes de infrações penais, de modo a esconder sua origem ilícita e reintegrá-los na economia formal. Em termos simples, é o ato de "limpar" o dinheiro sujo obtido com crimes (corrupção, tráfico, fraude, etc.) para que seus autores possam usufruir dos lucros sem levantar suspeitas. Classicamente, a lavagem envolve três etapas: colocação (inserção dos recursos ilícitos no sistema financeiro, muitas vezes fracionando valores ou usando empresas de fachada), dissimulação ou ocultação (circulação e transformação desses recursos através de transações complexas, dificultando o rastreamento da origem) e integração (reintrodução do dinheiro já "limpo" em atividades econômicas aparentemente legítimas). Ao final do ciclo, torna-se difícil conectar o patrimônio ao crime que lhe deu origem, garantindo impunidade financeira aos criminosos.
Do ponto de vista jurídico-penal, o crime de lavagem de capitais levanta discussões sobre qual bem jurídico está sendo protegido por sua tipificação e sobre o princípio da lesividade/ofensividade. Diferentemente de crimes que causam dano direto a uma vítima identificável, a lavagem de dinheiro é frequentemente classificada como crime de perigo abstrato, no qual o legislador presume um potencial ofensivo à coletividade (como à ordem econômico-financeira ou à administração da justiça) mesmo que não haja um lesado individual imediato. Alguns juristas argumentam que o bem jurídico tutelado na lavagem de dinheiro seria derivado dos crimes antecedentes, ou seja, a lavagem prolongaria a ofensa aos bens jurídicos desses delitos (como saúde pública no caso do narcotráfico, ou patrimônio público no caso da corrupção). Outros, porém, defendem que a lavagem ganhou autonomia e possui bem jurídico próprio, violando a ordem econômico-financeira e a administração da justiça, ao impedir ou frustrar a efetiva aplicação da lei sobre os autores dos delitos antecedentes.
Esse debate teórico se relaciona ao princípio da ofensividade, segundo o qual não há crime sem lesão ou perigo concreto a um bem jurídico (nullum crimen sine injuria). Críticos da criminalização ampla da lavagem indagam se, sem demonstrar um prejuízo concreto, punir a mera ocultação de recursos ilícitos seria compatível com tal princípio. No entanto, a tendência contemporânea - consagrada em convenções internacionais e leis nacionais, reconhece que a lavagem de dinheiro acarreta graves danos sociais e econômicos, ainda que difusos, justificando sua repressão penal enérgica. Estudos indicam que a lavagem prejudica a ordem econômica ao introduzir capitais de origem criminosa no mercado, distorcendo a concorrência, podendo elevar a inflação de ativos, desestabilizar instituições financeiras e afastar investimentos lícitos. Ademais, as finanças públicas são afetadas, seja pela evasão de divisas e sonegação associadas a fluxos ilícitos, seja pelo desvio de recursos que deveriam ser tributados, enfraquecendo a capacidade fiscal do Estado. Tais efeitos negativos geralmente passam despercebidos pela sociedade, já que ocorrem de forma indireta, mas são profundamente lesivos ao bem-estar coletivo.
Exemplificando a resposta normativa a essa ameaça, o Brasil e muitos países reformularam suas legislações para fortalecer o combate à lavagem de capitais. No caso brasileiro, a lei 9.613/1998 inaugurou o tipo penal de lavagem de dinheiro, inicialmente vinculado a um rol restrito de crimes antecedentes (tráfico de drogas, terrorismo, contrabando de armas, corrupção, etc.). Com a evolução dos padrões internacionais, a lei foi atualizada pela lei 12.683/12, eliminando a lista de crimes antecedentes e permitindo que qualquer infração penal possa gerar ativos passíveis de lavagem (modelo de "terceira geração"). Essa mudança refletiu o entendimento de que qualquer ganho ilícito, independentemente da origem, ao ser lavado representa ameaça à ordem econômica e à justiça, devendo ser combatido de forma abrangente. Assim, hoje punem-se não apenas os autores dos delitos iniciais, mas também terceiros que atuem como lavadores, ocultando patrimônio alheio criminoso - uma estratégia crucial para desmantelar organizações criminosas complexas e recuperar ativos.
Lavagem de dinheiro como obstáculo à paz, justiça e instituições fortes
A partir do conceito e das implicações da lavagem de dinheiro, torna-se evidente sua íntima conexão com as metas do ODS 16. A seguir, analisamos como a lavagem impacta ou impede o alcance de pontos-chave do ODS 16 - da redução da violência e proteção dos vulneráveis, passando pelo combate à corrupção, até o fortalecimento institucional e garantia de transparência.
Alimentando a violência, o crime organizado e o terrorismo (Metas 16.1, 16.2 e 16.a)
A lavagem de dinheiro é o combustível financeiro que alimenta redes de crime organizado, grupos terroristas e demais empreendimentos criminosos violentos. Sem a possibilidade de "esquentar" o produto de seus crimes, organizações criminosas teriam dificuldade em usufruir e reinvestir esses recursos, limitando seu poder de atuação. Entretanto, na realidade atual, os criminosos reinvestem vastos lucros ilícitos graças à lavagem, o que perpetua ciclos de violência e ilegalidade. Por exemplo, cartéis do narcotráfico canalizam bilhões de dólares para o sistema financeiro clandestinamente, garantindo recursos para corromper agentes, adquirir armas e expandir territórios - alimentando diretamente os indicadores de violência que a meta 16.1 pretende reduzir. De forma semelhante, traficantes de pessoas e exploradores lucram imensamente com a escravidão moderna e a exploração sexual; esses lucros, quando lavados, permitem que essas redes criminosas se fortaleçam e continuem vitimando populações vulneráveis (contrariando a meta 16.2, de acabar com abuso e tráfico de crianças, por exemplo). De acordo com o GAFI - Grupo de Ação Financeira Internacional, "criminosos vêm recorrendo cada vez mais ao tráfico de seres humanos e ao contrabando de migrantes dado o alto retorno dessas atividades ilegais. O dinheiro gerado por tais atividades invariavelmente encontra caminho para dentro do sistema financeiro", ou seja, acaba sendo lavado.
No caso do terrorismo, a relevância do combate à lavagem de dinheiro se tornou ainda mais clara após os atentados de 11/9/01, quando a agenda global passou a englobar o combate ao financiamento do terrorismo (CFT, na sigla em inglês) em conjunto com a AML - anti-money laundering. Grupos terroristas, embora às vezes recebam doações voluntárias, frequentemente dependem de atividades criminosas (sequestros, contrabando, tráfico de artefatos, extorsão etc.) cujo produto precisa ser ocultado para financiar atentados e recrutar membros. Assim, seguir o rastro do dinheiro tornou-se uma estratégia fundamental para prevenir ataques as investigações financeiras permitem identificar células terroristas e estrangular seu fluxo de recursos. A meta 16.a do ODS 16 enfatiza justamente fortalecer as instituições nacionais, via cooperação internacional, para prevenir violência e combater terrorismo e crime. Isso engloba capacitar policiais, promotores, unidades de inteligência financeira e aduanas para detectar e interceptar fluxos ilícitos que financiam organizações criminosas transnacionais. Vale salientar que as mesmas estruturas usadas para lavar dinheiro de corrupção ou tráfico servem para movimentar fundos terroristas, incluindo empresas de fachada, paraísos fiscais e até novas tecnologias como criptomoedas. Logo, reforçar os mecanismos antilavagem - desde legislação até tecnologias de rastreamento - contribui diretamente para salvar vidas, ao dificultar que recursos financiem violência, guerras e ataques terroristas (atendendo às metas de redução da violência 16.1 e de prevenção do terrorismo 16.a).
Em suma, sem combater a lavagem de dinheiro, as raízes financeiras dos conflitos e crimes violentos permanecem intactas. O fluxo ilícito de armas mencionado na meta 16.4 também caminha junto com fluxos financeiros ilícitos: traficantes de armamentos utilizam esquemas de lavagem para receber pagamentos e reinvestir em arsenais, fomentando guerras civis e criminalidade armada. Portanto, sanar o "sangramento" financeiro do crime organizado é crucial para reduzir a violência e a insegurança globalmente.
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