Relatório ou decisão: Ser ou não ser, eis a questão
Crítica ao decisionismo judicial: relator indeferiu testemunha e dissolveu agravo interno na ação rescisória.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:58
No universo processual, há momentos em que a forma tenta se sobrepor à substância. O recente episódio em que um relator, diante de agravo interno contra decisão que indeferiu prova testemunhal em ação rescisória, optou por elaborar um relatório que apenas menciona o recurso e sinaliza o julgamento conjunto com a ação rescisória, é exemplo emblemático dessa tensão.
À primeira vista, parece um ato neutro, meramente informativo e descritivo. Mas, na essência, trata-se de uma decisão implícita que esvazia o agravo interno e compromete o contraditório.
É nesse ponto que se revela a armadilha: o advogado é obrigado a defender duas matérias distintas no mesmo tempo de sustentação oral, sem saber se o agravo será realmente enfrentado ou absorvido pelo julgamento da rescisória.
O tribunal não pode se comportar como oráculo. Se não há decisão, não pode haver absorção do agravo.
A advocacia não é exercício de adivinhação, mas de técnica e contraditório.
Entenda o caso
Na ação rescisória, a parte autora requereu, como prova nova, a oitiva de testemunha. O relator indeferiu o pedido sob o argumento genérico de que já constariam dos autos provas suficientes dos fatos em discussão, sem indicar quais seriam essas provas. Vejamos:
"Outrossim, não vejo necessidade da tomada do depoimento do Sr. .... por considerá-la desnecessária, já constando dos autos prova suficiente dos fatos em discussão."
Contra essa decisão, foi interposto agravo interno, sustentando que a negativa de produção da prova testemunhal configuraria cerceamento de defesa e violação aos princípios constitucionais do contraditório.
O desembargador, ao elaborar o relatório, afirmou que "os fundamentos do agravo interno e a razões que justificam sua apreciação conjunta integram o mérito", entendendo que o relatório seria mera peça informativa, sem efeito decisório.
Contudo, na prática, essa postura implicou alteração da ordem de julgamento e comprometeu o direito de defesa da parte autora, não é?
Foi interposto embargos de declaração. Foi decidido no seguinte sentido:
"O ato impugnado é o relatório de fls. 1.679/1.682, peça de natureza exclusivamente descritiva, destinada a apresentar, de forma sintética, o histórico processual e a contextualização do julgamento, sem veicular comando ou definição jurídica passível de integração. Por se tratar de instrumento informativo, sem conteúdo decisório, eventual ausência de menção a fatos ou alegações não configura omissão nos termos do art. 1.022 do CPC".
Incrível: O desembargador diz que não tem decisão, mas ao mesmo tempo decide quando diz:
"os fundamentos do agravo interno e as razões que justificam sua apreciação conjunta integram o mérito que será enfrentado no voto oportunamente proferido pelo colegiado",
Se há "razões que justificam": o julgamento será conjunto pela lógica jurídica.
O truque do relatório invisível
O relatório é apresentado como peça descritiva, mas nele se esconde uma decisão: a absorção do agravo interno. É o truque do relatório invisível - decide sem parecer decisão, mas com efeitos concretos contra o contraditório.
Há decisões que se escondem atrás de palavras. O caso em análise é exemplar: o relator afirma que o relatório não possui conteúdo decisório, mas, contraditoriamente, declara que "os fundamentos do agravo interno e as razões que justificam sua apreciação conjunta integram o mérito que será enfrentado no voto oportunamente proferido pelo colegiado.
Ora, não se trata de antecipar o mérito do agravo interno. O que está em jogo é algo anterior e mais grave: a definição da forma de julgamento.
Ao afirmar que existem razões que justificam a apreciação conjunta, a decisão deixa claro que o julgamento não será autônomo.
A decisão de reunir o agravo interno à ação rescisória já foi tomada, ainda que disfarçada de informação.
Trata-se de conteúdo decisório implícito, que produz efeitos imediatos e, por isso, exige fundamentação clara e expressa.
Contradição exposta
- O relator afirma que não decide, mas ao dizer que "as razões que justificam a apreciação conjunta integram o mérito", já decidiu que o julgamento será conjunto.
- A expressão "apreciação conjunta" não é hipótese, é definição. Se há razões para a apreciação conjunta, então o agravo interno não será julgado separadamente.
Ora, ora, isso configura um conteúdo decisório implícito, ainda que o relator tente negar. Decidir sem decidir: o relator nega a decisão, mas impõe a apreciação conjunta.
É arte de decidir sem fundamentar!
O que é relatório?
A doutrina é clara quanto à importância do relatório. Ensina Alexandre Freitas Câmara1:
"O relatório é a síntese do processo. Trata-se de um resumo, no qual o juiz narrará sinteticamente, tudo aquilo de relevante que tenha ocorrido ao longo do processo. Estabelece o inciso I, do art. 489 que o relatório 'conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo'. A exigência de que a sentença contenha relatório do processo está, obviamente, ligada à necessidade de que o juiz, ao sentenciar, conheça bem o processo que será decidido."
Assim, o relatório não é mera formalidade: ele garante que o julgador conheça bem o processo e registre as principais ocorrências. A omissão compromete a completude da decisão e viola o art. 489, I, do CPC.
Relatório seletivo
O relatório apresentado não é neutro. Ele descreve alguns os fatos da ação rescisória. "Esquece" de dizer que os réus confessam que os conviventes A e B tinham a mesma residência , para que os desembargares conheçam bem o processo que vão julgar.
Mas em relação ao agravo interno - que versa sobre o direito à prova, a oitiva de testemunha já negada pelo relator - limita-se a dizer que foi interposto. Nada mais.
Isso é seletivo e parcial. O colegiado, ao ler esse relatório, não tem ciência de fato relevante: a negativa de prova. E sem essa informação, não há julgamento justo.
O relatório, disfarçado de decisão, oculta o ponto central do agravo interno e compromete o contraditório e a ampla defesa. O resultado é simples: o colegiado não sabe de nada, porque o relatório escondeu o essencial.
Decisionismo travestido de neutralidade
Chamar de "relatório" aquilo que, na essência, contém decisão, é negar a própria hermenêutica constitucional que exige que os atos judiciais sejam transparentes e fundamentados (CF, art. 93, IX; CPC, art. 11).
O direito não pode ser reduzido a um jogo de conveniências em que o tribunal escolhe, sem fundamentação, absorver ou esvaziar recursos. O agravo interno tem função própria e autônoma (CPC, art. 1.021).
Trata-se de mais um exemplo de como o processo pode ser capturado por práticas que relativizam o contraditório e a ampla defesa (CF, art. 5º, LV). Quando o contraditório é reduzido a mera formalidade, as garantias constitucionais se transformam em ornamentos retóricos, sem efetividade prática.
Vamos falar o óbvio: o direito não é aquilo que o relator quer que seja, mas aquilo que a Constituição determina.
O rito do agravo interno
O CPC é cristalino. O art. 1.021 estabelece que, diante de agravo interno, o relator tem duas opções:
- Retratar-se da decisão monocrática; ou
- Submeter o recurso ao colegiado para julgamento autônomo.
Não há terceira via. Não há espaço para soluções híbridas ou criativas.
O agravo interno é instrumento de defesa contra decisões monocráticas e, por isso, exige apreciação independente.
Ao absorver o agravo no julgamento da rescisória, o relator cria um vício procedimental.
O recurso perde sua função prática e a parte é obrigada a sustentar duas matérias distintas no mesmo tempo de sustentação oral. O contraditório, nesse cenário, transforma-se em mera formalidade.
O que diz o art. 55, §3º, do CPC
Nos termos do art. 55, §3º, do CPC, o julgamento conjunto de processos distintos exige demonstração de risco concreto de decisões conflitantes ou contraditórias, o que não se verifica no presente caso.
De outro modo: O art. 55, §3º do CPC/15 autoriza o julgamento conjunto mesmo sem conexão, mas exige justificativa clara:
"Serão reunidos para julgamento conjunto os processos que possam gerar risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão entre eles."
Tem que verificar risco concreto de decisões conflitantes ou contraditórias, nos termos do art. 55, §3º, do CPC, que, aliás, são as hipóteses taxativas do artigo. Não vale inventar.
É bem simples observar que não há nenhuma conexão formal ou conexão imprópria entre o agravo interno e a ação rescisória. Não, mesmo!
Aliás, não existe conexão entre as ações, pois a causa de pedir e o pedido de cada uma são divergentes.
Logo, não cabe o julgamento conjunto!
No presente caso, não há risco concreto de decisões conflitantes, uma vez que o agravo interno trata de questão preliminar e não de mérito. A reunião dos feitos, portanto, não se justifica à luz do dispositivo legal.
Cabimento dos embargos de declaração
A interposição dos embargos de declaração não depende da forma ou da nomenclatura do ato judicial, mas sim da sua natureza decisória. O art. 1.022 do CPC prevê embargos de declaração contra qualquer decisão judicial que contenha omissão, obscuridade, contradição ou erro material.
O que importa é se o ato impugnado produz efeitos jurídicos ou contém algum tipo de comando decisório.
Assim, mesmo que o ato seja chamado de "relatório", "despacho" ou outro nome, se nele houver conteúdo decisório, ele pode ser atacado por embargos.
O STJ já consolidou entendimento nesse sentido:
"Independentemente do nome que se dê ao provimento jurisdicional, é importante deixar claro que, para que ele seja recorrível, basta que possua algum conteúdo decisório capaz de gerar prejuízo às partes" (REsp 1.219.082/GO, rel. min. Nancy Andrighi, DJe 14/12/2011).
Assim, ainda que denominado "relatório", no caso concreto, o ato contém decisão implícita e, portanto, pode e deve ser impugnado por embargos de declaração.
Decisão implícita
Contudo, ao incluir o agravo interno e a ação rescisória em um mesmo relatório, o relator sinalizou que ambos seriam apreciados conjuntamente, retirando do agravo sua apreciação autônoma.
Esse gesto, ainda que travestido de mera síntese informativa, possui efeito decisório concreto, pois altera a ordem de julgamento e compromete o contraditório e a ampla defesa.
Portanto, não se trata de simples relatório, mas de decisão implícita, contra a qual cabem embargos de declaração para sanar a contradição e a omissão verificadas
Conteúdo decisório e méritos distintos
Ainda que o relator tenha denominado sua manifestação como "relatório", nela se encontra inequívoco conteúdo decisório, ao afirmar que os fundamentos do agravo interno e as razões que justificam sua apreciação conjunta integram o mérito da ação rescisória, o relator praticou ato de natureza decisória quanto à forma de julgamento.
Ocorre que se trata de méritos distintos:
- De um lado, o agravo interno, cujo objeto é a revisão da decisão monocrática que indeferiu a produção de prova ou limitou o direito da parte.
- De outro, a ação rescisória, cujo mérito consiste em verificar a presença de fundamento legal para desconstituir decisão transitada em julgado.
Ao confundir tais esferas, o relator esvazia o agravo interno, retirando-lhe a apreciação autônoma e privando a parte de ver seu recurso analisado pelo colegiado.
Essa conduta, além de revelar conteúdo decisório disfarçado de relatório, configura omissão e contradição aptas a ensejar embargos de declaração, nos termos do art. 1.022 do CPC, violando o art. 93, IX, da Constituição e do art. 11 do CPC, acarretando nulidade do julgamento
Não se pede antecipação de juízo de valor sobre o agravo interno, mas apenas que se fundamente a decisão de conexão que retira sua apreciação autônoma.
Conclusão
O problema não é apenas procedimental, mas hermenêutico. Quando se chama de relatório aquilo que, na essência, é decisão, o direito é capturado pelo decisionismo e o contraditório vira ornamento.
O agravo interno dissolvido na rescisória não é detalhe: é a negação da Constituição pela via da retórica.
O direito não pode ser o que o relator quer que seja. O direito é o que a Constituição diz que é. Simples assim!
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1 CÂMARA, Alexandre Freitas. Manual de Direito Processual Civil, p. 481, 2023, Gen/Atlas).


