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Como notários e registradores devem tratar a renda em imóveis HIS/HMP

A decisão do CSM confirmou que o registro não avalia renda em imóveis HIS/HMP, assegurando segurança jurídica a notários, registradores e ao mercado.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Atualizado às 15:04

1. Introdução

As unidades de HIS - Habitação de Interesse Social e de HMP - Habitação de Mercado Popular tornaram-se centrais na política habitacional paulistana. No entanto, seu tratamento nos registros de imóveis gerou uma zona de insegurança para notários, registradores, incorporadores, investidores e advogados, especialmente em torno de duas questões fundamentais: (i) o papel da renda do adquirente; e (ii) a força jurídica da destinação social prevista no PDE - Plano Diretor Estratégico e nos decretos municipais que o regulamentam.

Antes da recente decisão do CSM - Conselho Superior da Magistratura, muitos oficiais passaram a exigir comprovação de renda, declarações de destinação futura, comunicações à municipalidade e, em alguns casos, até negar o ingresso de títulos envolvendo unidades classificadas como HIS/HMP. Essas exigências vinham sendo justificadas pela necessidade de preservar a finalidade social da política urbana, mas careciam de base na LRP - Lei de Registros Públicos e no CC.

O acórdão do CSM - proferido na apelação cível 1061947-92.2024.8.26.0100 - recolocou cada peça do sistema em seu devido lugar. Reconheceu a relevância da política habitacional, mas reafirmou os limites do controle notarial e registral. E, com isso, devolveu segurança jurídica à prática dos atos envolvendo essa tipologia de imóvel.

2. A nulidade absoluta e seus limites: Diniz, Afrânio e Loureiro

Para responder se a renda é ou não requisito registral, é indispensável retomar os fundamentos clássicos da teoria das nulidades.

Maria Helena Diniz ensina que a nulidade é medida excepcional e só incide quando houver previsão legal expressa1. A mera finalidade social da norma, sem comando direto de nulidade, não basta para atingir a validade do negócio jurídico.

Afrânio de Carvalho, pilar da doutrina registral brasileira, reforça que o registrador somente pode recusar um título quando houver vício formal ou substancial da manifestação da vontade2. O registrador não é fiscal urbanístico, nem órgão de controle de políticas públicas.

Esses fundamentos foram integralmente adotados pelo desembargador Francisco Loureiro no julgamento do CSM. Em seu voto, afirma que sanções urbanísticas recaem sobre o incorporador e não geram nulidade civil, nem impedem o ingresso do título no registro3. Este ponto é central: a violação da política urbana não contamina a esfera civil, tampouco a registral.

Conclusão doutrinária:

A renda do adquirente, por não integrar os elementos fundamentais do negócio jurídico, não pode, por si só, impedir o registro. Políticas administrativas não alteram a substância civil do ato.

3. O coração do debate: Renda do adquirente é requisito registral?

3.1. Antes de 2024: O PDE como matriz urbanística

A lei municipal 16.050/14 instituiu as diretrizes gerais da política habitacional, classificando as tipologias:

  • HIS 1: renda de 1 a 3 salários mínimos;
  • HIS 2: até 6 salários mínimos;
  • HMP: até 10 salários mínimos ou critério per capita.

Essas faixas sempre tiveram natureza urbanística. Elas regulam o licenciamento, produção e contrapartidas dos empreendimentos, e não se projetam na esfera civil.

O PDE fala com o incorporador, não com o comprador nem com o registrador.

3.2. O marco de 2024: Decreto 63.130/24

Em 19/1/24, o decreto 63.130/24 regulamentou o art. 47 do PDE e trouxe avanços importantes:

  • Definiu procedimentos de verificação administrativa;
  • Reforçou a responsabilidade do incorporador;
  • Criou mecanismos de sanção urbanística;
  • Previu a possibilidade de convênio entre a municipalidade e Registros de Imóveis para comunicação de alienações.

Mas é decisivo destacar o que não fez:

  • Não criou nulidade civil;
  • Não instituiu impedimento registral por renda;
  • Não atribuiu ao RI a função de fiscal da política urbana;
  • Não autorizou a negativa do ingresso do título.

O decreto é administrativo, e não civil ou registral.

3.3. A atualização de 2025: Decreto 64.244/25

O decreto 64.244/25 apenas atualizou valores e critérios, mantendo:

  • A atribuição administrativa do município;
  • A responsabilidade exclusiva do incorporador;
  • A inexistência de qualquer óbice registral.

Nenhuma das normas transformou renda em requisito para registro.

3.4. O equívoco interpretativo que gerou o conflito

Sem convênio vigente e temendo responsabilização, alguns registros passaram a:

  • Exigir comprovação de renda;
  • Exigir declarações especiais de uso/destinação;
  • Comunicar automaticamente a SEHAB;
  • Condicionar o registro ao enquadramento socioeconômico;
  • Negar ingresso do título por alegada "inadequação à política pública".

Nada disso possui amparo normativo. Foram exigências criadas por interpretações defensivas.

3.5. Síntese normativa

O modelo atual é claro:

  • Renda = critério urbanístico;
  • Destinação = obrigação do incorporador;
  • Fiscalização = competência exclusiva da Prefeitura;
  • Registro = controle civil e formal, sem ingerência urbanística.

O CSM apenas reafirmou esse arranjo.

4. As cinco teses centrais firmadas pelo CSM

O acórdão estabeleceu, com precisão técnica, cinco pilares interpretativos:

4.1. A renda do adquirente não é requisito registral

Não há lei que determine sua verificação.

Violação urbanística não gera nulidade civil.

4.2. Sanções urbanísticas atingem apenas o incorporador

Multas, ajustes de projeto e restrições urbanísticas recaem sobre quem dialoga com a municipalidade.

4.3. Averbação HIS/HMP não cria indisponibilidade

É informativa, não restritiva. Não impede circulação, alienação, garantia ou oneração.

4.4. O registrador não exerce controle urbanístico

Sua função limita-se à legalidade do título, não ao cumprimento de políticas públicas.

4.5. Não há dever de comunicação automática sem convênio

O decreto fala em possibilidade, não em obrigação.

Sem convênio, não há dever funcional.

5. Impactos práticos para cada agente do sistema

5.1. Incorporador

Permanece responsável pelas obrigações urbanísticas.

A decisão impede que esse ônus seja indevidamente transferido ao comprador ou ao registrador.

5.2. Comprador

Ganha segurança:

  • Não precisa comprovar renda;
  • Não corre risco de nulidade;
  • Não é penalizado por política pública dirigida ao incorporador.

5.3. Investidor

Imóveis HIS/HMP são plenamente alienáveis, financiáveis e garantíveis.

5.4. Notário

A atividade notarial resta delimitada:

  • Não deve exigir renda;
  • Não deve inserir advertências indevidas;
  • Deve lavrar o ato conforme a legalidade civil.

5.5. Registrador

Retorna ao núcleo essencial da qualificação:

  • Forma, capacidade, objeto, vontade;
  • Análise conforme a LRP;
  • Sem controle urbanístico;
  • Sem comunicação automática.

6. Conclusão - da vulnerabilidade à segurança jurídica (e a lacuna que permanece)

Até o julgamento do CSM, notários e registradores viviam em um cenário de instabilidade: registrar poderia ser interpretado como descumprimento da política urbana; recusar poderia configurar violação da LRP; comunicar à municipalidade extrapolaria atribuições; não comunicar poderia sugerir omissão. Tratava-se de um ambiente institucional em que a insegurança se convertia, paradoxalmente, em risco para qualquer dos caminhos escolhidos.

A decisão da apelação cível 1061947-92.2024.8.26.0100 rompeu esse ciclo ao afirmar, de modo categórico, que:

  • A renda do adquirente não é requisito registral;
  • A violação urbanística não produz nulidade civil;
  • As sanções recaem exclusivamente sobre o incorporador;
  • O registrador não exerce controle de política habitacional;
  • Não há dever de comunicação automática à SEHAB ou ao Ministério Público sem convênio formal.

Com isso, o CSM devolveu clareza, previsibilidade e segurança jurídica ao sistema registral.

Contudo, permanece uma lacuna operacional relevante: o convênio previsto no decreto 63.130/24 ainda não foi celebrado. Até que isso ocorra, o sistema será:

  • Civil e registralmente seguro;
  • Mas administrativamente incompleto;
  • Sem um fluxo normatizado de comunicação entre município e RIs.

Orientação prudencial notarial

Diante desse cenário - onde o aspecto registral está pacificado, mas o aspecto administrativo ainda carece de instrumento formal -, considero prudente que as minutas notariais contenham, quando pertinente, uma orientação clara e equilibrada às partes, esclarecendo:

  • Que a tipologia HIS/HMP tem natureza urbanística;
  • Que as obrigações recaem sobre o incorporador;
  • Que a renda não integra os requisitos civis do ato;
  • E que o título é registrável independentemente de enquadramento socioeconômico.

Essa diretriz não cria ônus, não atribui responsabilidade às partes e não substitui dever administrativo, mas promove transparência, reforça segurança jurídica e evita interpretações equivocadas - sobretudo enquanto não houver convênio entre o município e os registros de imóveis.

Assim, a partir deste entendimento jurisprudencial e doutrinário consolidado, passo a adotar em minhas minutas uma redação orientativa sobre o tema, de cunho informativo, com a finalidade de:

  • Proteger o usuário do serviço notarial;
  • Mitigar incertezas operacionais;
  • E preservar a coerência técnica entre a finalidade urbanística e a legalidade civil.

Em síntese:

o CSM devolveu segurança jurídica ao sistema; cabe agora ao Poder Público devolver segurança operacional - e ao notariado, atuar com clareza, prudência e rigor técnico.

___________________

1 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro - Teoria Geral do Direito Civil.

2 CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis.

3 CSM/SP, ApCív nº 1061947-92.2024.8.26.0100, voto, pp. 8-18.

Lucas Peloso Silva Ferreira

VIP Lucas Peloso Silva Ferreira

Profissional com 20 anos no 23º Tabelião de SP, especialista em atos notariais complexos, inventários, cessões, usucapião, família e pareceres. Pós-graduação EPM e formação contínua.

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