Enriquecimento sem causa e quantificação do proveito injustificado
Analisa-se a incompatibilidade entre reconhecer o enriquecimento sem causa e determinar sua quantificação em liquidação de sentença.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
Atualizado às 14:15
Se é verdadeiro que o enriquecimento sem causa pressupõe enriquecimento de alguém; empobrecimento correspondente de outrem; relação de causalidade entre ambos, como é possível reconhecer sua ocorrência e, ao mesmo tempo, determinar a quantificação, em liquidação de sentença, do valor a restituir.
Enriquecimento com base em valores ilíquidos?
Ao tratar da liquidação de sentença, o CPC, nos arts. 509 a 512, estabelece ser necessária quando a condenação for ilíquida. Vale dizer, condenação cuja apuração do valor não depender apenas de cálculo aritmético.
Embora seja expressamente vedado rediscutir de novo a lide na liquidação ou modificar a sentença condenatória, tratando-se de liquidação por arbitramento será possível a produção de prova pericial e tratando-se de liquidação pelo procedimento comum viável até a alegação e prova de fato novo.
Até aqui nada de novo.
A problemática apresenta-se em casos concretos quando o Poder Judiciário, mesmo ciente de que a comprovação do enriquecimento do réu ligado ao empobrecimento do autor é pressuposto essencial à caracterização do enriquecimento sem causa, condena o requerido a restituir ao autor valor ilíquido, que ainda deverá ser apurado em liquidação de sentença.
Situações como esta exigem redobrado cuidado de juízes e demais operadores do Direito. Pois podem configurar manifesta violação ao art. 884 do CC, uma vez que - não sendo líquido o valor do suposto proveito injustificado que gerou enriquecimento/empobrecimento -, fica inviável afirmar a própria existência dos requisitos legais estabelecidos na referida norma para a caracterização do enriquecimento sem causa.
Pressupostos à caracterização do enriquecimento sem causa
O enriquecimento sem causa, fonte especial de obrigação expressamente previsto nos arts. 884 a 886 do CC/02, está ancorado na dignidade da pessoa humana - fundamento do Estado Democrático de Direito que é a República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da CF) - e no objetivo fundamental de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, da CF).
Cediço que a permissão do enriquecimento sem causa não condiz com os padrões que emergem dos fundamentos e objetivos da Constituição Cidadã.
Segundo a doutrina, a previsão expressa do enriquecimento sem causa no CC/02 representou a adequação entre a liberdade individual e o interesse coletivo, no sentido de que, para consagrar a socialidade como diretriz fundamental do sistema do código, devem prevalecer os valores coletivos sobre os individuais.
Não obstante a relevância do instituto, deve ser tratado como excepcionalidade e só ser reconhecido quando, efetivamente, comprovado o preenchimento legal dos pressupostos previstos no art. 884 do CC.
À verificação da correta aplicação do art. 884 do CC/02 faz-se imperiosa a compreensão sobre qual é o rol de pressupostos eleitos pelo legislador Federal para a caracterização do enriquecimento sem causa no Direito brasileiro.1
A partir na norma Federal em questão, para que seja possível o exercício da ação de enriquecimento no Direito brasileiro, o autor da demanda terá que comprovar: a) O enriquecimento à custa de outrem: qualquer situação de vantagem patrimonial concreta e objetiva ou de afastamento de despesas ou perdas. b) O seu empobrecimento: transferência patrimonial de bens do empobrecido para o enriquecido, de tal sorte que um aumente e outro diminua. c) O nexo de causalidade: entre o empobrecimento e o enriquecimento deve existir um nexo de correlação. d) A ausência de justa causa: falta de utilização de um meio válido, com um adequado título jurídico, legal ou convencional.2
Recorde-se, também, que, nos termos do art. 886 do CC, a ação de enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, só podendo ser utilizada se a lei não conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.
A Corte Especial do STJ, com base na melhor doutrina pátria, referendou que "a pretensão de enriquecimento sem causa (ação in rem verso) possui como requisitos: enriquecimento de alguém; empobrecimento correspondente de outrem; relação de causalidade entre ambos; ausência de causa jurídica; inexistência de ação específica ..." (EREsp 1.523.744/RS, Corte Especial, DJe 13/3/19).
Logo, até como decorrência da teleologia do instituto, não há autorização legal para reconhecimento do enriquecimento sem causa quando não estiver comprovado durante a instrução processual - de forma concreta e objetiva - que houve enriquecimento da parte requerida em decorrência do empobrecimento da parte autora da ação de locupletamento.
Teleologia do instituto do enriquecimento sem causa
Na lição de Giovanni Ettore Nanni, "O enriquecimento sem causa, desígnio adotado pela nova legislação civil brasileira, é a vantagem ocorrida em benefício de uma pessoa sem a devida contraprestação. Portanto, é uma atribuição injusta, injustificada, indevida, indébita, ilegítima, obtida à custa alheia. Todas essas expressões sinônimas conduzem à mesma conclusão e não permitem dúvida quanto à identificação e ao alcance do instituto".3
Ressalte-se que, a noção de causa, na teoria do enriquecimento injustificado, tem o sentido de contraprestação - como acima apontado pela doutrina -, de retribuição a uma vantagem proporcionada.
Especificamente sobre o alcance teleológico do instituto, Luís Menezes Leitão ensina que a verdadeira função do enriquecimento sem causa é reprimir o enriquecimento injustificado e não compensar os danos sofridos.4
No mesmo sentido a lição de Mário Luiz Delgado, para quem o "objetivo do instituto é o de restabelecer o equilíbrio patrimonial das partes (daí a razão de se fazer referência expressa à incidência de atualização monetária sobre o montante a ser restituído), removendo o enriquecimento ou locupletamento. O seu principal fundamento é a equidade. Ao contrário da responsabilidade civil, cuja meta a ser alcançada é o "indene", afastando o dano pela indenização, reparatória ou compensatória, no enriquecimento sem causa pretende-se obstar o enriquecimento de alguém às custas do patrimônio de outra pessoa, ou seja, o proveito injustificado".5
Portanto, quando o Poder Judiciário reconhece que houve enriquecimento sem causa deve demonstrar, no mínimo e sem sobra de dúvidas: 1º) a existência de enriquecimento; e 2º) a ausência de causa jurídica no enriquecimento.
Não obstante, tem-se verificado na prática forense a postergação da apuração do valor a restituir para a fase de liquidação de sentença, inclusive com possibilidade de designação de perícia para averiguação de valores de bens no mercado, compensação de montantes já pagos entre as partes ou perante terceiros etc., inviabilizando concluir com segurança que, efetivamente, houve proveito injustificado.
Quando o Poder Judiciário posterga a quantificação do valor do proveito injustificado para liquidação de sentença está desconsiderando as exigências do art. 884 do CC
Como já referido linhas acima, a comprovação de que houve enriquecimento do requerido e empobrecimento da parte autora não comporta mera presunção, uma vez que o efetivo valor do proveito obtido deve ser apurado durante a instrução processual de forma concreta e objetiva: deve se tratar de valor líquido.
A exigência de liquidez do valor do proveito obtido pelo requerido, embora não expressa no art. 884 do CC, decorre do fato de que para a caracterização do instituto do enriquecimento sem causa é essencial a prova de que houve o enriquecimento patrimonial do requerido em detrimento do empobrecimento da parte demandante.
Nessa senda, quando no processo não há valores líquidos que demonstrem concreta e objetivamente o preenchimento dos pressupostos do enriquecimento à custa de outrem e do empobrecimento, há possível violação ao art. 884 do CC. Isso porque não há como reconhecer judicialmente a ocorrência de enriquecimento à custa de outrem quando não definido nos autos o valor do proveito supostamente injustificado obtido pela parte requerida.
Ademais, também é essencial a demonstração de que está preenchido o pressuposto do nexo de causalidade entre enriquecimento e empobrecimento.
Cediço que incumbe à parte autora comprovar que o enriquecimento e o empobrecimento são a consequência de um mesmo fato (nexo de causalidade como ligação ao fato).
Segundo a jurisprudência, o nexo de causalidade deve ser direto, no sentido de que o empobrecimento seja causa do enriquecimento ou que ambos sejam decorrentes da mesma causa.
Este nexo de causalidade como ligação de fato permite estabelecer a relação de causa e efeito apta a subsidiar o exercício da ação de enriquecimento.
Registre-se que, além do enriquecimento de alguém, empobrecimento correspondente de outrem e relação de causalidade entre ambos, para a configuração do enriquecimento injustificado a lei também exige, cumulativamente, a comprovação da ausência de causa jurídica no enriquecimento e a demonstração de que o lesado não tinha outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido (inexistência de ação específica).6
Portanto, a par dos requisitos da ausência de causa jurídica e da inexistência de ação específica, dos quais não nos ocupamos neste ensaio, para a caracterização do instituto do enriquecimento sem causa previsto no art. 884 do CC é necessária a determinação prévia, concreta e objetiva do valor imputado ao requerido como enriquecimento injustificado, além do empobrecimento correspondente e da demonstração de ligação de fato entre enriquecimento e empobrecimento.
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1 "Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restitui-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido."
2 Tratando-se de enriquecimento sem causa por "lucro da intervenção", há precedente do STJ entendendo não ser imprescindível a existência de deslocamento patrimonial, com o empobrecimento do titular do direito violado, bastando a demonstração de que houve enriquecimento do interventor" (STJ, REsp 1.698.701, rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 08.10.2018). Esclarece-se que" lucro da intervenção" é a vantagem patrimonial auferida a partir da exploração não autorizada de bem ou direito alheio (Enunciado n. 620 da VIII Jornada de Direito Civil). No mesmo sentido: o Enunciado n. 35 da I Jornada de Direito Civil.
3 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 106.
4 LEITÃO, Luís Manuel Teles Menezes. O enriquecimento sem causa no direito civil: estudo dogmático sobre a viabilidade da configuração unitária do instituto, face à contraposição entre as diferentes categorias de enriquecimento sem causa. Lisboa: Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n. 176, 1996, p. 876.
5 Código civil comentado: doutrina e jurisprudência / Anderson Schreiber ... et al.. - 5. ed., rev., atual. E ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 667.
6 "A existência de negócio jurídico válido e eficaz é, em regra, uma justa causa para o enriquecimento" (Enunciado n. 188 da III Jornada de Direito Civil), afastando a pretensão in rem verso.


