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A tributação da locação residencial pura pelo IBS/CBS

Artigo analisa se a locação residencial pura pode ser tributada pelo IBS/CBS, confrontando LC 214/25 com Constituição, STF e doutrina, e aponta limites e exceções.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Atualizado às 14:16

A tributação da locação residencial pura pelo IBS/CBS: Uma análise sistemática da LC 214/25 à luz da natureza civil do instituto e dos limites constitucionais do tributo sobre consumo

O presente estudo examina a incidência do IBS - Imposto sobre Bens e Serviços e da CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços - instituídos pela LC 214/25 no contexto da reforma tributária do consumo, promovida pela EC 132/23 - sobre a locação residencial pura de imóveis. Demonstra-se que, embora a lei complementar tenha incluído a locação no conceito de "fornecimento oneroso de bens", não se encontra assegurada, no plano constitucional, a plena incidência sobre a locação residencial desprovida de caráter empresarial, por força da natureza civil do contrato, da jurisprudência consolidada do STF e dos princípios da segurança jurídica, da legalidade estrita, da capacidade contributiva, do art. 110 do CTN e da função social da propriedade. Conclui-se pela existência de relevante espaço hermenêutico para defender a não incidência em hipóteses estritamente patrimoniais, bem como a incidência ampliada quando a operação revele perfil econômico, empresarial ou prestacional típico de consumo.

1. Introdução

A reforma tributária do consumo, materializada pela EC 132/23 e pela LC 214/25, constitui a mais profunda reorganização do regime jurídico-tributário brasileiro desde a CF/88. Ao substituir o mosaico de tributos indiretos por um IVA dual - IBS e CBS -, pretendeu-se simplificar, ampliar a base e uniformizar a incidência sobre "operações com bens e serviços".

Nesse cenário, um dos temas que mais tem provocado perplexidade hermenêutica é a tributação das locações residenciais puras. Historicamente inseridas no campo do Direito Civil Patrimonial e tratadas como fato gerador de renda imobiliária, as locações tendem, pela literalidade da LC 214/25, a ser enquadradas como "fornecimentos onerosos", passíveis de IBS e CBS.

O objetivo deste artigo é investigar se essa conclusão se sustenta diante da natureza jurídica do instituto, da jurisprudência constitucional consolidada e dos princípios da tributação.

2. O marco normativo: EC 132/23 e LC 214/25

A EC 132/23 redesenha o sistema tributário de consumo, instituindo:

  • IBS - Imposto sobre Bens e Serviços;
  • E a CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços;
  • Com incidência ampla e não cumulativa sobre operações onerosas com bens e serviços.

A LC 214/25 define como hipótese de incidência "todo fornecimento oneroso de bem ou serviço", elencando expressamente locação, arrendamento e cessão entre as operações tributáveis. De forma inédita em nosso sistema, contempla capítulo específico sobre locações imobiliárias e, inclusive, locações residenciais.

Em complemento, a lei:

  • Admite pessoas físicas como contribuintes em certas hipóteses;
  • Cria limites mínimos de enquadramento (p.ex., faturamento anual e quantidade de imóveis);
  • E estabelece, em período transitório, alíquota reduzida e possibilidade de dedução de despesas estruturais.

À primeira vista, portanto, a locação residencial seria alcançada pelo IBS/CBS.

Mas essa interpretação literal é suficiente?

A resposta exige leitura principiológica, sistemática e histórica do ordenamento.

3. Natureza jurídica da locação: Obrigação de dar e fruição patrimonial

O primeiro marco hermenêutico é o CC, que caracteriza a locação como contrato mediante o qual se transfere uso e gozo de coisa infungível, mediante aluguel.

A doutrina tributária clássica é unânime ao afirmar que:

  • A locação pura é obrigação de dar, não de fazer;
  • Não envolve prestação humana economicamente qualificada;
  • Não constitui operação de circulação econômica típica de mercado;
  • E, assim, não se insere materialmente no conceito de consumo.

Roque Antonio Carrazza, Hugo de Brito Machado e Paulo de Barros Carvalho - dentre outros - afirmam que a essência jurídica da locação é patrimonial, e que a sua tributação, desde sempre, se dá pela via do Imposto de Renda sobre aluguel, e não por tributos sobre consumo.

Esse entendimento encontra suporte no art. 110 do CTN, que impede que o legislador tributário altere o conteúdo de institutos de direito privado para fabricar competência tributária onde ela não existe.

4. O STF e a jurisprudência constitucional sobre locação

A jurisprudência do STF sobre o tema é clara desde o início dos anos 2000, com o julgamento do RE 116.121/SP, consolidado posteriormente na súmula vinculante 31.

O Tribunal reconheceu que:

  1. Locação não é serviço;
  2. O núcleo do instituto é fruição do patrimônio;
  3. Lei complementar não pode, para fins fiscais, deformar o conceito civil de locação;
  4. A locação pura é objeto de tributação pelo IR, jamais pelo ISS.

Embora IBS/CBS não sejam ISS, a ratio decidendi permanece aplicável:

Se a locação não contém serviço e não revela circulação econômica típica de consumo, tributá-la como operação de mercado viola o conteúdo jurídico do instituto e afronta o art. 110 do CTN.

5. O conflito sistêmico: Renda versus consumo

A dúvida hermenêutica nasce justamente da interseção entre dois campos tributários distintos:

Tributação Histórica da Locação

Tributação Proposta pela LC 214/2025

Regime de renda (IR)

Regime de consumo (IBS/CBS)

Obrigação de dar

Operação econômica onerosa

Fruição patrimonial

Fornecimento de bens

Sem cadeia de valor

Inclusão em cadeia de consumo

A reforma desloca a locação do terreno da renda para a materialidade do consumo.

Mas essa conversão é juridicamente sustentável?

Tudo depende da essência econômica e social da locação.

Se a locação residencial pura:

  • Não envolve prestação;
  • Não compõe cadeia mercantil;
  • Não cria valor agregado;
  • Não se estrutura como atividade empresarial;
  • É legítimo sustentar que ela permanece fora da materialidade típica do IBS/CBS.

6. Princípios constitucionais aplicáveis

a) Legalidade estrita

A lei afirma a incidência, mas não supera a análise constitucional, sobretudo quando a base tributável é artificialmente ampliada.

b) Segurança jurídica e proteção da confiança

Por mais de três décadas, o sistema tratou a locação como fato patrimonial submetido ao IR, consolidado pela jurisprudência do STF. Mudanças bruscas exigem ponderação.

c) Capacidade contributiva e não confisco

Tributar a locação residencial pequena e pessoal significa tributar duplamente a mesma riqueza (IR + IBS/CBS), o que afronta proporcionalidade e progressividade, além de encarecer o acesso à moradia.

d) Função social da propriedade

A locação é instrumento de concretização da função social ao colocar imóveis no mercado de habitação. Tributação excessiva desestimula oferta e reajusta preços.

e) Art. 110 do CTN

O núcleo civil do instituto não pode ser manipulado para finalidades fiscalistas. Locação não vira operação econômica de consumo por mera disposição legal.

7. Diferenciação essencial: Quando a locação deixa de ser pura

Não se confunde locação residencial com hospedagem ou exploração empresarial de imóveis.

As seguintes hipóteses indicam incidência robusta de IBS/CBS:

  • Flats e apart-hotéis;
  • Locações com serviços agregados;
  • Imóveis mobiliados para estadias curtas;
  • AirBnB profissionalizado;
  • Exploração empresarial de portfólio locatício.

Nesse caso, há:

  • Utilidade econômica ofertada ao mercado;
  • Input produtivo;
  • Estrutura empresarial;
  • E circulação mercantil.

Aqui, a tese de incidência é juridicamente sólida.

8. Síntese conclusiva

A LC 214/25 positivou a locação como operação tributável, mas não esgotou o debate.

A locação residencial pura, civilmente compreendida, permanece como expressão patrimonial da propriedade, sem integração direta à cadeia de consumo. A jurisprudência e a doutrina confirmam sua natureza de renda imobiliária, não de fornecimento mercantil.

Dessa conjugação de elementos resulta uma conclusão técnico-sistemática:

Há robusto espaço constitucional, hermenêutico e jurisprudencial para sustentar que a locação residencial pura - sobretudo quando exercida por pessoas físicas e sem caráter empresarial - não deve ser submetida ao IBS/CBS, preservando-se o núcleo conceitual do instituto, o art. 110 do CTN, a segurança jurídica, a função social da propriedade e a lógica tributária histórica.

Por outro lado, quando a locação revela perfil empresarial, dinamismo econômico, serviços agregados ou exploração organizada do ativo, encontra-se perfeitamente inserida na esfera de incidência do IVA dual, transformando-se, aí sim, em operação de consumo.

Conclui-se, portanto, por uma interpretação restritiva, capaz de harmonizar a LC 214/25 com a Constituição, com a doutrina civil-tributária e com a jurisprudência constitucional, sem negar os espaços legítimos de incidência naqueles casos em que a locação transcende sua natureza estática e ingressa no domínio econômico das utilidades prestadas ao mercado.

Alessandro Ragazzi

VIP Alessandro Ragazzi

Advogado, formado pela PUC/SP, especialista em Direto Tributário pela PUC/COGEAE. Sócio da RAGAZZI ADVOGADOS ASSOCIADOS, com ênfase em Direito Tributário e Holdings Patrimoniais.

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