Epistemologia da prova técnica
A validade da perícia exige método científico explícito. Pela não adstrição, o juiz valora a prova via crítica racional, rejeitando o laudo dogmático desprovido de lastro técnico robusto.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2025
Atualizado às 14:24
I. Introdução: A prova pericial como instrumento de redução de incertezas
No Estado Democrático de Direito, o processo não é mero rito, mas um método de reconstrução histórica de fatos visando à aplicação justa da norma. Quando a quaestio facti transcende a cultura média do magistrado e adentra as ciências da saúde, a prova pericial médica deixa de ser um simples meio de prova para tornar-se uma condição de possibilidade da própria jurisdição.
A perícia médica não transfere o poder decisório ao expert, mas fornece as premissas menores do silogismo judicial que o juiz, por limitação técnica, é incapaz de formular autonomamente.
II. A validade da prova pericial: O trinômio admissibilidade, pertinência e cientificidade
Para que a prova pericial médica ingresse no mundo jurídico com eficácia (validade), ela deve superar o filtro da admissibilidade e cumprir rigorosos requisitos formais e materiais, positivados mormente no art. 473 do CPC/15.
2.1. A qualificação e a imparcialidade (requisito subjetivo)
A validade primária reside na figura do perito. Exige-se não apenas a habilitação legal (registro no CRM), mas a expertise específica. A nomeação de um ortopedista para avaliar um erro médico em neurocirurgia, embora não ilícita per se, fere o princípio da eficiência e compromete a validade técnica do laudo. Ademais, a imparcialidade (equidistância das partes) é pressuposto de existência válida; a suspeição ou impedimento do perito fulmina a prova de nulidade absoluta.
2.2. O dever de fundamentação científica (requisito objetivo)
O CPC/15 inaugurou uma nova era ao vedar o laudo lacônico. Sob a ótica do art. 473, § 1º, é inválido o laudo que se limita a ratificar a conclusão sem explicar o itinerário lógico-científico percorrido.
Nota doutrinária: A validade do laudo depende da explicitação do método. O perito deve demonstrar que o método utilizado é aceito pela comunidade científica internacional (Medicina Baseada em Evidências). Opiniões pessoais do perito ("eu acho"), desprovidas de lastro bibliográfico atualizado, tornam a prova imprestável.
2.3. O contraditório técnico
A validade da prova pericial é indissociável da atuação dos assistentes técnicos. O contraditório não se exerce apenas sobre o laudo pronto, mas durante a sua produção (acompanhamento das diligências). A obstrução à participação dos assistentes gera nulidade por cerceamento de defesa.
III. Patologias da prova: O que torna a perícia "não válida" (nulidade e preclusão)
A imprestabilidade da prova pericial médica ocorre quando há ruptura da cadeia de custódia da verdade científica. Elencam-se as principais causas de invalidade:
- Dogmatismo sem justificativa: Respostas monossilábicas aos quesitos ("sim", "não") sem a devida justificação clínica ou fisiopatológica.
- Extrapolação de competência (Ultra Vires): Quando o perito médico emite juízos de valor jurídico (ex: "houve culpa", "é nulo o contrato"). O perito narra o fato técnico (o nexo causal biológico); o juiz qualifica o fato jurídico (o nexo de imputação).
- Utilização de métodos obsoletos: A aplicação de técnicas diagnósticas superadas pela literatura médica atual retira a credibilidade epistêmica da prova.
- Violação do princípio da inércia: Quando o perito, sem autorização judicial, atua como investigador, coletando provas alheias ao objeto da perícia para incriminar ou absolver uma parte.
IV. A valoração e o peso da prova: O princípio da não adstrição
O art. 479 do CPC consagra o princípio da não adstrição ou liberum iudicium: "O juiz apreciará a prova pericial [...] não estando adstrito ao laudo". Contudo, na prática da "livre docência", deve-se interpretar este dispositivo com cautela crítica (cum grano salis).
4.1. A superação do Judex Peritus Peritorum
O brocardo medieval de que "o juiz é o perito dos peritos" é uma ficção jurídica perigosa. O magistrado não possui o conhecimento enciclopédico. Portanto, para recusar a conclusão do perito (o peso da prova), o juiz deve fazê-lo com base em outros elementos técnicos robustos presentes nos autos (pareceres de assistentes técnicos, literatura médica, laudos divergentes de outros órgãos).
4.2. O peso da prova e a carga dinâmica
O peso da prova pericial médica é, via de regra, decisivo. Ela goza de uma presunção de veracidade técnica (juris tantum).
- Peso máximo: Laudo bem fundamentado, com citação bibliográfica, exame físico detalhado e concordância (total ou parcial) dos assistentes técnicos.
- Peso relativo/nulo: Laudo contraditório em seus próprios termos (conclusão dissocia da fundamentação) ou que ignora documentos médicos prévios essenciais (prontuários).
4.3. Nexo causal: O "coração" da valoração
O ponto nevrálgico da valoração é o nexo de causalidade. O juiz deve avaliar se o perito estabeleceu o nexo com base em critérios científicos sólidos (como os critérios de Simonin ou de Penteado, na Traumatologia Forense):
- Natureza da lesão;
- Adequação temporal;
- Continuidade sintomática;
- Exclusão de causas preexistentes ou supervenientes.
Se o laudo falha em estabelecer essa cadeia lógica, seu peso probatório é esvaziado, devendo o juiz determinar nova perícia ou julgar com base na distribuição do ônus da prova.
V. Conclusão
A prova pericial médica não é um oráculo, mas um ato processual complexo de inteligência técnica. Sua validade depende estritamente da aderência ao método científico e ao rito do contraditório (arts. 464 a 480, CPC).
Para o jurista de alto nível, a "vitória" em uma demanda envolvendo medicina não se dá apenas na retórica, mas na capacidade de dissecar a prova pericial, apontando suas inconsistências metodológicas (invalidade) ou reforçando sua coerência científica (peso probatório). O juiz moderno não aceita a autoridade do perito, mas sim a autoridade dos argumentos científicos que o perito foi capaz de demonstrar.


